O “campismo”

Escrevo a palavra entre aspas porque com a sua origem francesa atraiçoa o português. O nosso campismo é camping para os franceses e o que eles chamam de campismo, e vou assim usar o termo, é outra coisa muito diferente, no terreno da ideologia e da política. Significa a tendência para reduzir uma situação política ao simples afrontamento entre dois campos antagónicos, nomeadamente imperialistas, alinhando-se num dos campos de forma a que considera que ele só tem virtudes e nenhum defeito, ao contrário do outro. É um caso extremo de maniqueísmo, de negação da capacidade humana de contemplar todas as subtilezas e contradições das situações complexas, como são sempre os problemas humanos e sociais.

Mas é reconfortante. Raciocinar, exercer a racionalidade, mais ainda aplicar a dialética, é muitas vezes custoso e doloroso. É mais fácil definir um quadro esquemático de verdade absolutas, limitando geometricamente a nossa área de reflexão e com a ilusão ética da verdade justa.

A necessidade de mantermos um espírito crítico e racional é cada vez mais necessária nestes tempos extremados, até de guerra, em que a nossa simpatia “campista” nos leva a procurar todos os argumentos que sustentem a nossa posição ideológica. O campismo relativiza a dimensão moral da política, reduzindo-a à crueza da “real politik”. Não há que fazer juízos de valor sobre a nossa parte, a que tudo se perdoa porque o inimigo do meu inimigo meu amigo é.

Isto vai de braço dado com o relativismo moral. É uma aliança estranha para alguma esquerda, porque essa posição é inerente ao pós-modernismo, que muitos ainda não perceberam que é o outro braço da ofensiva ideológica da hegemonia, a par do neoliberalismo. Dizem que não há moral universal, muito menos na vida política, e que é preciso respeitar os valores dos outros. Para os americanos, o uso livre de armas ou a pena de morte são apoiados pela maioria, e na Rússia os homossexuais são perseguidos; devemos segui-los? O Irão teocrático é um polo de resistência ao imperialismo. Então, há que aceitar como legítimo o obscurantismo religioso, a opressão das mulheres, as chibatadas públicas, as execuções por crime de pensamento, tudo aquilo que a minha esquerda antifascista combateu? Não se deve criticar as ações terroristas do Hamas porque cada povo oprimido tem o direito de escolher livremente as suas formas de luta, sem sujeição a valores universais, ou porque Israel pratica o terrorismo em muito maior escala?.

A crise mundial de sistema está a agudizar-se e é necessário que cada um tome posição de princípio, mas isto pode fazer esquecer que a justeza de uma posição de princípio pode ser maculada por ela se transformar numa posição acrítica, arregimentada, que pode ser um tiro nos pés no valor da nossa posição. Ao mitificarmos o inimigo do nosso inimigo, ao esquecermos o que ele tem de negativo e inaceitável só porque o outro lado ainda é pior, descredibilizamo-nos perante quem temos de conquistar: as muitas pessoas honestas que até sentem a injustiça, que têm valores enraizados mas que se chocam com o extremismo e o relativismo moral. O fanatismo, a incapacidade de objetividade, mesmo que motivados por causas justas, afastam o homem comum, mesmo que admitamos que esse homem comum é produto de uma inculturação pela ideologia hegemónica. O combate a essa ideologia é crucial, mas só vinga se se afirmar pela coerência, pelo rigor, pela superioridade moral.

Não há análise intelectual válida se não apoiada na filosofia, mesmo que seja só a “filosofia espontânea”. Razão e emoção têm de coexistir, mas dialeticamente harmónicas. Mas se a desarmonia descamba a favor da emotividade, entra-se no fanatismo. Coisa muito perigosa, como a história tem demonstrado.

O que é a moral, como evoluiu, como se articula com o progresso (há ou não uma tendência histórica para o progresso?), há ou não e até que grau universalidade moral? Não cabe neste artigo o que seria uma longa discussão. Mas, cingindo-nos ao político e na perspetiva revolucionária, transformadora, não se esqueça que, já dizia Gramsci, é preciso lutar pela realização de uma ideia que tem valor teórico mas, que, ao mesmo tempo, não se limita a uma construção especulativa; que é um “princípio ético-jurídico”. Esse projeto é também um projeto de filosofia moral.

P. S. – este artigo que agora publico como “post” foi escrito muito a pensar na guerra da Ucrânia e antes da crise de Gaza. Esta não evoca o “campismo”, a não ser para uma minoria de fanáticos. A brutalidade desumana da retaliação israelita ao também condenável ataque do Hamas desencadeou um protesto internacional, na rua e em algumas instituições, que nada têm a ver com o “campismo”.