Ateu ou agnóstico?

Já repararam em que são muito raros os escritos a discutirem e a defenderem o ateísmo? Parece que é um tabu, coisa que ofende o sentir da maioria da população humana. Ou que é sinal de excessivo respeito pelo direito humano de liberdade de religião, como se uma discussão séria pudesse ser ofensiva para alguém. Vai no senso comum de que, para preservar a amizade, não se deve discutir nem política nem religião. E, no entanto, toda a gente discute política, mas não religião.

É frequente eu ver posições de visão cosmológica essencialmente materialistas e conformes à ciência atual, mas que concluem com uma declaração de agnosticismo. Parece ser uma defesa contra a atitude censória generalizada dos que rejeitam o ateísmo, alojando-se no campo dominante do deísmo sob todas as suas formas, desde as religiões mais ou menos primitivas até a versões modernas como o “desenho inteligente”. Precisamos de uma ideia de compreensão global, deterministicamente explicativa. O caos, o acaso, o jogo das probabilidades, a incerteza, causam-nos desconforto e inquietam-nos.

No limite, a posição agnóstica parece razoável: eu não posso negar o que fica para além dos sentidos, da capacidade da crítica racional e objetiva da sua existência. De facto, é uma generalização abusiva do princípio da dúvida com base na evidência. Não posso negar, em princípio, o que não posso provar que é verdadeiro? É a velha questão do ónus da prova. Quem propõe uma hipótese irracional e disruptiva é que tem de a provar, não os seus antagonistas a terem de provar o contrário.

Cada um de nós tem um anjo da guarda? Há uma fada dos dentes que nos dá um presente por cada dente infantil caído? O Espírito Santo confere certeza absoluta ao discurso papal? O meu vizinho tem um unicórnio no seu jardim? Sou eu que tenho de demonstrar que tudo isto é fantasia? Devo dizer que não posso saber se isto é verdade ou falsidade? Esta é a base do agnosticismo, uma posição pouco corajosa de olhar para os grandes dilemas. Na base está a racionalidade. As ideias e hipóteses começam à partida por avaliação da sua razoabilidade. É necessário um filtro prévio antes da análise, senão somos submersos por toda a fantasia.

Há quem diga que o ateísmo só é aceitável se conseguir demonstrar que deus não existe. É esse vício do ónus da prova. A questão real é outra: preciso da ideia de deus para explicar o universo e o homem? Se não preciso, se tenho outras explicações, é como não precisar de fantasias como Neptuno a criar os vulcões e os terramotos.

Na minha vida profissional, conheci gente da maior qualidade. De uma forma geral, todos eram religiosamente crentes, à sua maneira, e em particular os americanos. “In God we trust”, dizem as notas de dólar. Porque é que o atavismo religioso se sobrepõe à sua cultura científica e racional?

Porquê a importância da ideia de Deus? Não é difícil imaginar respostas. Em primeiro lugar, a grande conquista humana da interrogação: como foi criado o mundo, que lógica tem, como nos situamos nele? A ciência atual dá-nos respostas que dispensam a ideia de uma entidade criadora, mas que são difíceis de compreender pelo saber vulgar. 

Como se pode imaginar que tudo começou com a singularidade do Big Bang? Que não faz sentido pensar-se no que era “antes”, porque esse “antes” pressupõe a existência do tempo, que, com o espaço, só apareceu com essa singularidade explosiva. Por isso mesmo, não podemos localizar o ponto de origem do universo, porque não havia então pontos porque não havia espaço. É por isto que ainda estamos rodeados pela radiação de fundo, que não nos ultrapassou para o espaço infinito à velocidade da luz. O universo expandiu-se como aumenta a superfície de um balão a encher-se de ar. É nessa superfície que tudo existe, independentemente da sua velocidade.

E como nos reduzirmos a um produto do acaso evolucionista? Porque julgamos ser o centro e destino final da criação? O chamado “princípio antrópico” da cosmologia atual dá uma resposta simples, mas contra o senso comum. O leque de observações possíveis que podem ser feitas sobre o universo é limitado pelo facto de as observações só poderem ocorrer num universo capaz de desenvolver vida inteligente. O universo que conhecemos e as suas constantes físicas essenciais só se explicam porque foram essas características essenciais que possibilitaram a vida, a aparição do homem e da capacidade de conceber intelectualmente este universo. Ele só “existe” porque dele damos conta. Se o universo tivesse outras características fundamentais, não estaríamos cá para o observar e ele não “existiria”. Mas será que não existem outros universos que não conhecemos? 

A segunda explicação para a força do instinto deísta vem da perceção ancestral da nossa fragilidade. Tivemos de encontrar uma explicação para as calamidades, para a doença, para o sofrimento. A explicação imediata foi a vontade de uma entidade superior, com desígnios ilógicos ou cruéis mas que aceitamos. Por isto também recorremos a ela, nas múltiplas manifestações históricas da imolação, do sacrifício redentor, da oração.

Os primeiros racionalistas, entre os filósofos gregos, defrontaram-se com um paradoxo essencial, que nos chegou na formulação de Epicuro: 

“1) ou Deus quis eliminar o mal e não pôde; 2) ou Deus pôde eliminar o mal e não quis; 3) ou Deus não quis nem pôde; 4) ou Deus quis e pôde.

Então, 1) Deus não seria omnipotente; 2) Deus seria malvado, não infinitamente bom; 3) Deus seria tanto impotente como malvado; 4) e então Deus é incoerente e desinteressado, logo não infinitamente perfeito.

Logo, não existe deus omnipotente, infinitamente bom e infinitamente perfeito. Logo, como Deus só pode ser isto e não é, Deus não existe.”

Só muitos séculos depois é que a teologia cristã tentou dar resposta a este tetralema, com a tese de Tomás de Aquino do livre arbítrio, que transfere a responsabilidade do criador para a criatura. Mas isto leva a outra discussão, noutro artigo.

No fundo, todas as religiões são um caso de humor perverso. Deus é um brincalhão maldoso. Sendo ele perfeito, podia ter criado um mundo perfeito mas, ao invés, deixou aos homens a tarefa de o divertir com todos os erros humanos que a sua ideia criadora permitiu. Não é mesmo um Deus sádico? O Velho Testamento mostra mesmo que esse Jeová, terrível, castigador, belicista, racista, não é flor que se cheire!