Uma nova via alternativa para a esquerda

Por toda a Europa cresce a ultradireita. Ela é também alimentada do outro lado do oceano pela sua versão americana, o trumpismo e também, indiretamente, pelo apoio mais ou menos visível de outros Estados com regimes políticos autoritários. Entretanto, a esquerda parece ausente, principalmente porque não dá respostas consequentes de esquerda ao descontentamento de que se aproveita a ultradireita. Não é de admirar, porque o sistema dominante tem hoje contradições estruturais que são um desafio para a compreensão dos partidos e movimentos, pela sua complexidade e transversalidade.

É fácil (?) acompanhar e combater as crises conjunturais, mas é muito mais difícil, principalmente para quem tem de lutar no dia-a-dia, ter disponibilidade e principalmente a possibilidade de concentração intelectual no domínio da reflexão e da análise profunda e dialética da crise global. Onde estão os “intelectuais orgânicos”? Há muita discussão académica sobre a crise estrutural, mas que não consegue fazer a ponte para a ação. É por isto que me suscitas esperança um novo dirigente partidário <> que enumera como questões essenciais o que designei no meu livro “Utopia Hoje” <> como determinantes de um novo momento Polanskyi, que, não pronunciando uma mudança iminente de sistema, lhe traz mudanças qualitativas a ter em conta na prática: a crise ambiental e a sustentabilidade, as migrações, a globalização, a mudança na estrutura do trabalho em consequência da digitalização.

Esta debilidade da esquerda (em que, para efeitos desta discussão, não considero a social-democracia europeia atual) é agravada por duas formas de alienação da realidade atual. A esquerda comunista, a herdeira da tradição dos partidos comunistas marxistas-leninistas, vai-se estiolando no conservadorismo defensista, nos seus arquétipos desatualizados e não consegue vencer a negação pela opinião geral derivada da derrota do sistema soviético. A sua integridade política e o seu empenhamento na luta não conseguem vencer tudo o que em contrário conseguiu hegemonicamente o pensamento neoliberal: o individualismo, a perda de consciência de classe por uma nova classe trabalhadora alargada, a derrota do sentido de solidariedade face ao espírito de competição.

Noutro setor de esquerda, “nova esquerda” (BE, Podemos, Syriza, movimentos identitários americanos, etc.) desvalorizou-se a temática social e revolucionária e ficou refém de modismos intelectuais de pequena burguesia, privilegiando “causas fraturantes” e principalmente o identitarismo fraccionista, a descambar no wokismo ridículo, que lhes aliena muita gente de boas intenções mas também de bom senso. O seu pós-modernismo, o relativismo cultural e moral, a ênfase nas narrativas subjetivas podem não transparecer no seu discurso político mas estão bem visíveis a qualquer analista arguto. Felizmente, no nosso caso do BE, tudo isto ainda não vai prejudicando notoriamente a sua luta no domínio social clássico.

A ultradireita aproveita-se da complexidade da crise do sistema, afastando as pessoas de uma reflexão sistemática. Em vez disso, e como se passou nos anos 20 do século passado, isola como “leit motives” alguns aspetos superficiais que tocam irracionalmente os instintos primitivos de muita gente. Um caso exemplar é o da imigração. Não se discute como ela é consequência da globalizaçção, como ela só é possível pelas mudanças do mercado de trabalho do mundo rico, como esses mundo rico se serve dos deserdados do mundo como reserva agora global de uma forças de trabalho a explorar. O homem comum, acossado pela crise, é presa fácil para transformar em hostilidade política e social o sentimento instintivo de “estranheza” e de refúgio na proteção da sua tribo.

Boa parte da esquerda alimenta inconscientemente esta dinâmica, ao mitificar sem sentido prático a bondade das migrações, ao eliminar mecanismos de controlo e abrir largamente as fronteiras e ao misturar sem critério as migrações por razões humanitárias e de fuga á guerra e calamidades com a pura ve simples imigração económica, a que mais problemas acarreta.

Até há bem pouco, este era para nós um problema menor mas agora começa a ser relevante, com a xenofobia do Chega. Na Europa, desde há muito que é a principal bandeira da ultradireita. Não admira, portanto, que seja o principal fator de mudança no refranjo do quadro partidário, nomeadamente à esquerda.

O primeiro sinal veio da Espanha, com a publicação de um artigo provocador, em 2018, de três respeitadas líderes deve esquerda, Héctor Illueca, Manuel Monereo e Julio Anguita. Analisavam o chamado “decreto dignidade” do governo reacionário italiano e defendiam que muito nesse decreto, nomeadamente sobre o trabalho, se dirigia a questões que eram feudo tradicional da esquerda mas agora negligenciadas, chamando a atenção para a necessidade de a esquerda voltar a ser a porta-bandeira das reivindicações popular es. Os três foram alvo de uma campanha feroz por parte da “nova esquerda”, como casos exemplares de “rojo-pardos”, cúmplices do fascismo.

Mais tarde, emergiu na Alemanha um movimento na mesma linha, o Aufstehen (De Pé), liderado pela dirigente do Die Linke Sahra Wagenknecht. Essencialmente, defendia a preocupação central com o domínio social, em termos da velha linha de combate socialista revolucionário, mas mantendo o corte do Die Linke com o velho marxismo-leninista. Ao mesmo tempo, e distanciando-se da “nova esquerda”, a rejeição de modismos lesivos dessa luta, apontando, como caso principal, para a necessidade do controlo de fronteiras e de adequação da imigração às necessidades da economia nacional. Da mesma forma, defendendo a necessidade de total e eficaz integração dos imigrantes “necessários”. Também a crítica forte à União Europeia, o que, com a questão da imigração, já lhe vai valendo a acusação de cumplicidade com a direita, nomeadamente a AfD.

De facto, como disse S. Wagenknecht numa entrevista, “a AfD é eleita porque tanta gente está com raiva! Esta é a verdade amarga que os políticos da ‘coligação semáforo’ não querem entender. Ignoram que é a sua política que está a empurrar muitas pessoas para os braços da AfD”. Julgo que isto se aplica a toda a Europa, Portugal incluído. Disse também que “há muitas pessoas que não são de direita mas votam na direita porque estão zangadas”. Quantos eleitores do Chega não encaixam nesta definição?

Este movimento manteve alguma ambiguidade até ao ano passado, quando se autonomizou e se transformou em partido, cortando a ligação ao Die Linke. Só não gostei da personalização em Sahra Wagenknecht, como mostra a substituição do nome Aufstehen por “Aliança Sahra Wagenknecht” (BSW). Note-se a adição ao título do lema “Pela Sensatez e Justiça”. Embora ainda não comprovada nas urnas, a previsão de sucesso eleitoral é animadora, com resultados à volta de 20% nas sondagens.

E, em muito coincidindo com o que escrevi atrás, assim justificou Sahra Wagenknecht a sua rotura com o seu partido: “Os conflitos dos últimos anos têm girado em torno da direção política da esquerda. Argumentámos repetidamente que as prioridades desajustadas e a falta de enfoque na justiça social e na paz diluem o perfil do partido. Recordámos repetidamente que a concentração nos meios urbanos, juvenis e activistas está a afastar os nossos eleitores tradicionais. Tentámos repetidamente travar o declínio do partido mudando a sua orientação política. Não fomos bem sucedidos e, como resultado, o partido tem tido cada vez menos sucesso entre os eleitores.” A história do partido A Esquerda desde as eleições europeias de 2019 é a história de um fracasso político. As respectivas direcções partidárias e os funcionários que as apoiam a nível estatal estavam determinados a não discutir este fracasso de forma crítica em nenhuma circunstância. Não foi assumida qualquer responsabilidade por ele, nem foram retiradas quaisquer consequências substanciais do mesmo. Além disso, aqueles que confrontaram criticamente a direção da liderança do partido foram apontados como culpados pelos resultados e foram cada vez mais afastados.”

Deixo aqui algumas passagens significativas dos documentos políticos do novo partido.

“As coisas não são justas. Nem no nosso país, nem na Europa, nem no grande palco da política mundial. Os lucros triunfam sobre o bem comum, a violência sobre o direito internacional, o dinheiro sobre a democracia, o desperdício sobre a produção sustentável. Onde só contam os valores da bolsa, a humanidade fica pelo caminho. Estamos a lutar contra isso: pela justiça e pela coesão social, pela paz e pelo desarmamento, pela preservação da base natural das nossas vidas.

(…) As grandes empresas e os seus proprietários são os principais beneficiários da globalização, do comércio livre, da privatização e do mercado único da UE. Para os ricos, as promessas da “Europa” foram cumpridas. Os trabalhadores altamente qualificados e com mobilidade podem tirar partido das novas liberdades. Em contrapartida, cerca de metade da população alemã tem um rendimento real inferior ao que tinha no final da década de 1990.

(…) A destruição da coesão social, a insatisfação crescente e a sensação de impotência criam o terreno fértil para o ódio e a intolerância. Embora a principal razão para a ansiedade em relação ao futuro seja a crise do Estado-providência e as instabilidades e ameaças globais, o aumento do número de refugiados conduziu a uma maior insegurança. Os ataques a pessoas devido à sua aparência ou religião estão a aumentar. Rejeitamos todo o tipo de racismo, antissemitismo e xenofobia. Por isso, consideramos irresponsável a forma como o governo de Merkel tem lidado com os desafios da imigração. Mesmo agora, as cidades, os municípios e os voluntários são, na sua maioria, deixados a lidar com o problema sozinhos. Muitos problemas pré-existentes, como a falta de habitação social, escolas sobrecarregadas ou espaços insuficientes para o acolhimento de crianças, agravaram-se. Em última análise, os já desfavorecidos são os que sofrem.

(…) As ameaças globais estão a aumentar. Nas relações internacionais, a força militar está a substituir cada vez mais as negociações e a diplomacia. As guerras são travadas sem restrições pelo acesso a recursos cobiçados ou a esferas alargadas de influência geopolítica. Isto é particularmente verdade para os Estados Unidos. Estas guerras devastaram regiões inteiras, reforçaram as redes terroristas islâmicas e são uma das principais razões para os movimentos globais de refugiados. O conceito de segurança partilhada na Europa e de equilíbrio de interesses entre o Leste e o Oeste, entre os Estados mais pequenos e os maiores, foi abandonado. A corrida aos armamentos está a destruir todos os progressos alcançados em matéria de desarmamento na década de 1990. As relações com a Rússia estão profundamente congeladas. Os governos alemães estão a participar cada vez mais frequentemente em guerras, na exportação de armas para regiões em crise e no desrespeito pelos direitos humanos. O perigo de uma conflagração militar entre as duas grandes potências nucleares voltou a agravar-se.

(…) É uma mentira quando nos dizem que as políticas actuais não têm alternativa na era da globalização e da digitalização. A desigualdade crescente não é uma força da natureza. O capitalismo financeiro globalizado que liberta as empresas e os ricos da responsabilidade social não é o resultado de desenvolvimentos tecnológicos, mas de decisões políticas. A digitalização só nos pode trazer novas liberdades e tornar as nossas vidas mais diversificadas e ricas se a sua conceção não for deixada ao sabor dos interesses lucrativos dos gigantes globais da Internet.

E, como lemas programáticos:

“Uma nova política de paz. Empregos seguros, bons salários, impostos justos e um Estado-providência forte e renovado. Economia sustentável, conservação dos recursos e proteção do ambiente. Parar e inverter a privatização. Educação de qualidade para todos. Salvar a democracia e tornar possível a democracia direta. Segurança na vida quotidiana. Uma Alemanha europeia numa Europa unida de democracias soberanas. Ajudar as pessoas necessitadas.”