Há quem diga que as eleições americanas só devem ser vistas na perspetivas geopolítica, apreciando-se apenas o que cada candidato representa como peça do xadrez do conflito entre o imperialismo americano e o Sul global. Assim, temos entre nós muitos trumpistas, que só têm em conta a esperança que têm em que Trump vá por caminho oposto ao do belicismo da maioria democrata, liderada por Biden.
É não saber ver o grande conjunto de aspetos em que o perfil e estilo do presidente dos EUA influencia todo o mundo, desde a economia e as finanças internacionais às instituições da ordem internacional, da forma prática da globalização até ao alimento ideológico do neoliberalismo e, no extremo trumpista, da ultradireita por todo o mundo. E sem esquecer o seu poder de carregar no botão vermelho do armamento nuclear, o que nos deve fazer pensar na alegoria de “O Ditador” de Chaplin, na brincadeira com o globo terrestre.
Pode-se dar o voto a uma pessoa a quem não se compraria um carro em segunda mão?
Na mesma onda vai a simpatia que por aí se vê para com a candidatura independente de Robert Kennedy Jr (RKJ), com a vantagem para os seus defensores de não estarem a avalizar a boçalidade e venalidade de Trump. Mas será que não nos deve preocupar a possibilidade de ter RKJ como presidente dos EUA? Apoiá-lo só porque parece ser menos falcão do que Biden e crítico da guerra da Ucrânia? E tudo o resto em que o mundo pode ser influenciado ou condicionado por um presidente dos EUA? Quem garantia devemos ter de que, ao menos, o POTUS é um homem estável, com solidez mental e racionalidade, com bom senso? E RKJ cumpre estes desideratos?
Vou lembrar só um aspeto particular da personalidade de RKJ: tem uma enorme propensão para defender apaixonadamente toda uma série de teorias da conspiração. É um militante antivacinas, foi um negacionista do impacto da COVID. Na COVID, defendeu a tese absurda de que o vírus tinha sido fabricado de forma a ser mais agressivo para caucasianos e negros, com maior resistência de chineses e judeus. Falsifica repetidamente dados objetivos sobre vacinação. Defende todas as vaiadas teorias conspirativas sobre os assassinatos do seu pai Robert Kennedy e do seu tio, o presidente Kennedy. Que o excesso de prescrição médica de antidepressivos contribui para os tiroteios nas escolas. Que houve um entendimento entre Bill Gates e Anthony Fauci para exagerar a gravidade da COVID, no sentido de forçar a venda de vacinas.
Mas, ao mesmo tempo, como político oportunista, vai-se desmentindo para efeitos eleitorais: afinal não é antivacinas, só quer é garantia de total segurança das vacinas; não é antissemita e não acha que os judeus sejam os responsáveis pelo tal fabrico do vírus; e por aí fora.
Essa sua irresistível atração pelas teorias conspirativas é capaz de ser reflexo de um espírito saudavelmente rebelde e contestatário, mas será então uma forma intelectualmente medíocre e perigosa de exercer a contestação. Em termos gerais, mostra irracionalismo e incultura, mas talvez se possa dizer que isto não é fundamental na escolha de um político. O pior é que, pela minha experiência de muita observação de tudo o que por aí se vai dizendo, parece-me que, na área política, é frequente a correlação entra a mentalidade conspiracionista e outros aspetos pouco recomendáveis: o sectarismo, o maniqueismo, o clubismo cego, o amoralismo político com base na exclusividade da real politik.