Em épocas de crise, defendemo-nos com crenças absolutas, reconfortantes, que funcionam como carapaças mentais, como muitos animais se defendem nas suas conchas ou no exoesqueleto dos artrópodes. A natureza não precisa de inventar o que já está inventado. No fundo, está sempre a defesa contra o predador. Na evolução humana, o predador é o detentor do poder e é centrado nele que construimos as nossas ficções defensivas. Contra ele, construímos mecanismos ideológicos de defesa que, sendo muitas vezes baseados em fundamentos reais, acabam por derivar para teorias de conspiração irracionais.
No virar do primeiro milénio, tivemos o milenarismo, um fenómeno social e cultural com duas facetas complementares. Por um lado, a eclosão de propostas messiânicas, de redenção dos pecados por purificação dos costumes e dos valores, nomeadamente os da dominante Igreja Católica. Voltaram séculos depois, por exemplo com as ideias do Quinto Império, a que está muito ligada a cultura portuguesa e o padre António Vieira, no rescaldo do grande trauma coletivo de Alcácer Quibir.
Por outro lado, nas massas, outra eclosão, a da histeria coletiva, dos penitencialismos, da intolerância, do misticismo traduzido em manifestações de irracionalismo por quem não tinha instrumentos mentais para confrontar a crise.
O milenarismo de hoje não tem o primeiro componente, porque não se veem propostas de superação da crise. As que estão mais em voga, no conjunto que podemos designar como wokismo, são só, afinal, uma forma intelectualizada do segundo componente, o irracionalismo.
Todas as bases da conquista intelectual do iluminismo são questionadas, desde a emergência, nos anos 60-70, do pós-modernismo. Rejeita-se a noção operacional de “verdade”, assente na ciência. Dá-se igual valor a todas as narrativas individuais e subjetivas. Realça-se o individualismo (Reagan e Thatcher aplaudiriam). Por consequência, defende-se o relativismo moral e cultural, considerando que não há valores civilizacionais adquiridos no progresso históricos e muito menos que esses valores possam ter universalismo. Rejeita-se o conflito social de classe como motor da história, substituido por um complexo difuso de poderes fragmentados.
O conspiracionismo é a junção em aliança objetiva deste irracionalismo com o facciosismo ideológico, sectário e dogmático. Ainda vem em boa parte do maniqueismo dos tempos da guerra fria, sem nuances entre os dois polos que apelavam a que cada um se situasse, sem crítica. Escolhido o inimigo, não há lugar para o espírito crítico. Tudo o que diz o meu amigo é verdade absoluta; tudo o que nos acontece de mal tem inevitavelmente a marca dos serviços secretos do inimigo.
É certo que o conspiracionismo, conjugado com o esoterismo e a ficção, já vêm muito detrás. Na minha juventude, tinha muita difusão a coleção do Planète, havia os fanáticos dos OVNI e da teoria da ocultação da base secreta, a área 51 e logo em 1969 apareceram as primeiras teorias a negarem o pisar da Lua por Neil Armstrong. Para já não falar de toda a efabulação sobre o assassinato de Kennedy.
Mas creio que hoje, com o poder da net e das redes sociais, o conspiracionismo tomou uma dimensão qualitativamente diferente. Em boa parte, reflete a mentalidade dogmática e esquemática de setores extremos mesmo que opostos. Não vou falar do conspiracionismo de ultradireita, as coisas boçais e facilmente desmentíveis do QAnon, do fundamentalismo bíblico, da substituição demográfica pelos muçulmanos e coisas que tais.
Preocupa-me mais o conspiracionismo de esquerda, com algum impacto em pessoas que sofrem de um enquistamento dogmático, quase religioso, num esquema ideológico ultra-simplificado. Sofreram uma epifania que os confortou na ideia de que há uma providência histórica e também uma entidade maléfica, outro Belzebu, a quem se deve atribuir, por natureza, todos os males.
No início da COVID, tive de responder, com informações científicas que a minha experiência profissional abalizava, a teses convictas de algumas pessoas de esquerda sectária, algumas com alto nível intelectual, que defendiam com a maior convicção que o vírus era uma criação americana, com a CIA por detrás. Diga-se também que o oposto também se viu, que o SARS-CoV-2 foi uma criação artificial chinesa. Está tudo louco?
A seguir, foi o conspiracionismo contra as vacinas. Muito já escrevi sobre isto e não vou voltar ao assunto, mas é importante ter-se a ideia de que este conspiracionismo tem maior impacto em alguns setores de esquerda. Porquê?
Quais as raízes e fatores favorecedores do conspirativismo? Podemos listar alguns elementos explicativos: a noção de que o poder estatal tem muito de opaco e de engano dos cidadãos; de que o grande capital domina a decisão política, contra os interesses sociais; de que as relações internacionais e as instituições do ordenamento mundial estão condicionadas pelas relações de poder.
Tudo isto é inegável mas a sua invocação direta e primária como explicação imediata para todos os acontecimentos leva a posições que, pela sua menoridade intelectual, prestam mau serviço a causas justas. Lembro-me, por exemplo, de um opinador conhecido que sempre defendeu Trump como mal menor, menos belicista do que Biden. Era uma opinião discutível mas aceitável como tema de debate. Depois, o seu entusiasmo trumpista levou-o a perfilhar todas as teorias conspirativas de Trump sobre a viciação das eleições. Uma posição duvidosa mas respeitável descambou na descredibilização pelo conspiracionismo.
Voltemos ao exemplo da vacina COVID. Nos comentários ao que escrevo no Facebook, vejo que muita gente negacionista das vacinas é bem intencionada, com posições progressistas em relação a muitos assuntos. O que as leva a esse negacionismo pontual? Falta de informação, emotividade numa situação de crise, é natural. Mas suspeito de que também um pensamento primário de que, por natureza, a Big Pharma é maléfica e como tal tudo o que dela vem. Tudo preto ou branco, deixou de haver cinzentos de milhões de tonalidades. A credibilidade global da esquerda sofre dramaticamente com isto. E, como dizia Clinton da economia, “é a dialética, estúpido!”