João Vasconcelos Costa
Créditos ECTS à portuguesa (23.12.2003)
Anoto um dado curioso do relatório Trends 2003, apresentado à reunião de Berlim. Tendo os autores (Reichert e Tauch) inquirido todos os governos signatários de Bolonha sobre o uso do sistema ECTS ou equivalente, o governo português respondeu que havia um sistema de créditos, mas não do tipo ECTS. Todos conhecemos esse sistema, baseado no número de horas de aulas, dos vários tipos e com pesos diferentes. O mais interessante é que a mesma pergunta foi feita a todas as instituições de ensino superior e, no caso português, 66% responderam que usavam os ECTS. Dá para acreditar?
Sei que há casos em que o sistema ECTS está a ser utilizado correctamente, na sua tendência actual, que é a de, mais do que um sistema de transferência, serem um sistema de acumulação e de organização de currículos. Acompanhei com muito interesse, por exemplo e sem desprimor para outros, a experiência de reorganização curricular na Universidade de Évora, baseada num uso criterioso dos créditos ECTS.
Não tenho ilusões sobre a sua utilização generalizada nos tempos mais próximos. Em debates recentes em que tenho participado, noto uma grande falta de informação sobre as tendências actuais do uso dos ECTS segundo o método que chamo de organizativo, em que eles são os “building blocks” da estrutura curricular. Estou a escrever um artigo de fundo, há muito projectado, “De Bolonha a Berlim”, em que abordo este assunto com maior profundidade. Esse irá para a minha página, com a divulgação habitual.
Para já só duas notas, que julgo exemplares da nossa maneira de ser e proceder. A primeira diz respeito àquilo que, ironicamente, incluo nas minha descrições de cálculo de créditos ECTS como o “método convertivo”. Consta-me que se pratica muito. Não é mais do que um fórmula de conversão dos nossos créditos em créditos ECTS. É converter alhos em bugalhos. Como todos sabem, os nossos créditos medem ensino, os ECTS medem aprendizagem. Desafio os utentes deste “método convertivo” a justificarem-no de forma ajustada a todas as actividades de aprendizagem, à grande variedade de disciplinas, à diversidade dos tipos de avaliação, à exigência ou não de trabalhos individuais ou de grupo ou de seminários, etc.
A segunda nota, que escrevo com algum desgosto, tem a ver com a contradição a que assisti na exposição, num colóquio recente, da reorganização de um curso de uma das universidades por que tenho a maior consideração. O processo de reorganização desse curso pareceu-me excelente. As concepções de base, quanto ao seu carácter de banda larga e ao primado da aprendizagem e da aquisição de competências, eram perfeitamente actuais. A permeabilidade de vias e a estrutura curricular eram muito imaginativas. Como não podia deixar de ser, o curso era descrito em termos de ECTS. Aqui é que foi o problema. Como aparentemente os professores não gostaram da importância relativa das suas disciplinas que resultava do cálculo da carga de aprendizagem, resolveu-se distribuir equitativamente, a posteriori, os 30 créditos semestrais por todas as disciplinas. No bom pano cai a nódoa!
A estrutura de graus na Europa (7.1.2004)
Muitos dos meus leitores, mesmo não directamente ligados ao ensino superior, sabem que o chamado processo de Bolonha, originado pela declaração de Bolonha, de 1999, assinada por 29 ministros europeus da Educação (hoje já são 37), está a pautar o grande movimento de reforma do ensino superior a que se assiste por todo o nosso continente. Não é tanto pelo que a declaração significa, mas porque ela coincidiu com o culminar de numerosos desafios que se vinham a pôr ao ensino superior, em virtude da sociedade do conhecimento, das alterações na estrutura e na dinâmica do mercado de trabalho, da necessidade de um novo balanço entre informação e competências, e muito mais. Tudo isto misturado com o desinvestimento público, a desregulação, os riscos da mercantilização e as ameaças do GATS.
Obviamente, não posso expor no espaço de um blogue o que tem sido o processo de Bolonha, em que estamos vergonhosamente atrasados. Os interessados têm acesso à documentação essencial na minha página sobre Bolonha e aos vários artigos que eu e outros temos escrito a este respeito.
Aqui, quero apenas referir um dos aspectos do processo, talvez o que tenha merecido mais atenção da opinião pública. Trata-se da estrutura e duração dos graus. Até Bolonha, a maioria dos países europeus tinha, antes do doutoramento, apenas um grau, de duração relativamente longa (5-6 anos), como a nossa licenciatura. Pelo contrário, a tradição inglesa e de alguns países do norte da Europa era a de dois graus pré-doutorais, ou dois ciclos: um grau de “bachelor”, em regra de 3 anos, que é o grau que lança para o mercado de trabalho a maioria dos quadros universitários, e um grau de “master”, mais especializado ou preparatório do doutoramento, geralmente com duração de 2 anos. É o que se chama o esquema 3+2. Portugal tem uma situação atípica. Tem dois níveis, mas o primeiro com dois graus, bacharel e licenciado, sendo o segundo nível o do mestrado; e a duração da licenciatura, de 4 ou 5 anos, é superior à norma dos sistemas europeus de dois graus.
O que o processo de Bolonha estipula é que: a) deve haver dois níveis, sendo o primeiro nível (bacharel, licenciado, ou outra designação) o relevante para o mercado de trabalho; b) a duração do primeiro grau deve ser de 3-4 anos (com excepções como a medicina), mas, consensualmente, a duração total dos dois ciclos, incluindo o mestrado (“master”) não deve ultrapassar os 5 anos. No nosso caso, actualmente, é de 6 ou 7 anos.
Por razões que me parecem facilmente entendiveis, esta questão da duração dos estudos não é menor. Envolve questões essenciais do que deve ser a formação, do que é adequado à empregabilidade actual e, só depois disto, o tempo que é necessário para cumprir os objectivos de um novo ensino superior. Por isto, as reformas na generalidade dos países foram precedidas de amplos debates e de discussão com os empregadores, com os sindicatos e com as organizações profissionais. Em Portugal, houve alguns debates pontuais, não conclusivos (participei em muitos e sei o que foram) e houve um inquérito na Internet promovido, e bem, pelo ministério, mas a que só responderam umas dezenas de pessoas. Não obstante, o governo sentiu-se à vontade para apresentar uma proposta de lei de bases da educação que organiza o ensino superior de nova forma, sabe-se lá com que fundamentos, e ao arrepio das tendências do processo de Bolonha. Seguiu uma proposta do Conselho de Reitores, o CRUP, não fundamentada e simbólica da ligeireza com que tudo isto é tratado no nosso país, mesmo pelos que deviam ser os mais altos responsáveis e conhecedores dos problemas. Reitores eleitos pelos jogos corporativos e, muitas vezes, pelo apelo demagógico aos estudantes, não são obrigatoriamente os dirigentes mais qualificados do ensino superior.
Ao fim destes quatro anos do processo de Bolonha, a situação das estruturas de graus do ensino superior na Europa é a seguinte. Vou usar, como atrás, o esquema “B+M”, em que o primeiro número é a duração do primeiro grau (a nossa licenciatura) e o segundo é a duração do segundo grau (o nosso mestrado).
Quinze países adoptaram, ou preparam-se para adoptar, o esquema 3+2: Áustria, Dinamarca, Estónia, Finlândia, Bélgica, França, Hungria, Itália, Liechtenstein, Luxemburgo, Noruega, Polónia, Roménia, Suíça e Reino Unido.
Apenas dois países adoptaram o esquema 4+1: Bulgária e Chipre. Esta minoria justifica-se porque há a convicção generalizada de que, em muitas áreas formativas, um ano pode ser curto para o mestrado.
Nove países adoptaram um esquema mais flexível que, conforme as áreas formativas, pode ser de 3+2 ou de 4+1 (note-se que, conforme o consenso, em ambos os casos o total é de 5): Alemanha, Croácia, R. Checa, Eslováquia, Holanda, Irlanda, Islândia, Letónia e Espanha. No entanto, o esquema 4+1, nestes casos, tende a ser restrito apenas a algumas áreas, pelo que, na prática, estes países convergem muito com o primeiro grupo, formando um largo consenso europeu.
Finalmente, 4 países fugiram ao consenso da duração total de 5 anos e propõem um esquema 4+2. São a Grécia, Lituânia, Portugal e Turquia. Em termos de qualidade do ensino superior, e não só, estamos em excelente companhia!
Doutoramentos no Politécnico? (21.1.2004)
Os institutos politécnicos pretendem uma total equiparação de graus com as universidades, indo até ao doutoramento. Dizem os jornais que o parecer do Conselho Nacional de Educação agora aprovado aceita esta reivindicação, desde que os institutos tenham condições para conferir o grau. E vem logo dizer o novo presidente da Coordenadora dos Politécnicos que há institutos que têm tantos doutores para constituir júris de doutoramentos como muitos departamentos universitários.
Obviamente, a questão não é esta. Um júri arranja-se com dois doutorados da casa e outros tantos de fora. O que não concebo é que possa conferir doutoramentos uma instituição que não tenha condições para os preparar do princípio ao fim. E esta é que é a questão. Quantos institutos têm esses tais doutorados a fazer realmente investigação de qualidade? Quantos têm as condições logísticas e científicas (massa critica, interdisciplinaridade, ambiente científico)?
Para mostrar que não estou a ser corporativo ou preconceituoso, lembro tudo o que tenho escrito, mesmo neste blogue, em defesa do politécnico. Até digo que não me repugna que haja no ensino politécnico um grau de alto nível, com duração total de estudos equivalente ao do doutoramento, como há recentemente, por exemplo, na Noruega. Podem até chamar-lhe doutoramento técnico, que premeie altas qualificações técnico-profissionais e alta capacidade de inovação. Não pode é ser confundido com o doutoramento académico tradicional, concebido como o grau que comprova as capacidades para a investigação científica.
Um artigo de Vital Moreira (2.3.2004)
Concordância a 100% com o artigo A Fórmula de Bolonha de Vital Moreira, no Público de hoje. Como diz VM, o processo de Bolonha permite dois esquemas: 3+2 ou 4+1. Isto quer dizer a duração do primeiro grau (chame-se-lhe bacharelato ou licenciatura) + duração do segundo grau (mestrado). Desde há uns anos e certamente pelas razões que VM bem aponta, o Conselho de Reitores (por coisas como esta, cada vez com menos credibilidade), defende o esquema abstruso de 4+2, ao arrepio de Bolonha e que, no entanto, foi vertido para a proposta de alteração da lei de Bases do Sistema Educativo.
Defensor de há muito do esquema 3+2 (embora admita, em alguns casos excepcionais, a coexistência do esquema 4+1 – veja-se, por exemplo, entre muitos outros artigos meus na minha página, a carta que mandei para a AR), é com agrado que vejo cada vez mais alargar-se o campo dos defensores do 3+2.
Chamo a atenção para um aspecto que tenho discutido e que VM aborda com a minha total concordância: o da qualificação mínima para certas profissões. Praticamente, vou repetir o que ele escreveu, mas porque isto é importantíssimo para combater eventuais objecções não fundamentadas ao esquema 3+2. Esta é uma questão que toca muito os profissionais, e com inteira razão. Os advogados, para começar pelo domínio do VM, acham que 3 anos de licenciatura são insuficientes para o exercício profissional. Opinando sobre matéria alheia, estou convencido de que têm razão. Os engenheiros dizem o mesmo. E, provavelmente, por aí fora. Ora o que é preciso ter presente é que Bolonha tem como base que, em geral, “o primeiro grau deve ter relevância para o mercado de trabalho”. Mas, como muito bem diz VM, nada impede que, em certos casos, não se estabeleça como condição de exercício profissional, como para os advogados, o grau de mestre, de 5 anos, ou até mesmo, como em Inglaterra, pioneira do esquema 3+2, formações obrigatórias em exercício, como para os “chartered engineers”. Mas a Inglaterra, como foi também, ao que ouço, uma boa experiência entre nós, tem vários níveis profissionais de engenheiros. Bolonha permite que haja o “engenheiro de estaleiro”, com o primeiro grau de 3 anos (como tínhamos o engenheiro técnico, que o mercado de trabalho sempre prezou) e o “engenheiro de projecto”, com mestrado.
Bacharelatos e licenciaturas (14.3.2004)
Muito se discute sobre universidade e politécnico. Em geral, a discussão é ideológica e vazia de sentido prático, mesmo de coerência teórica. Para se discutir, é preciso saber-se e reflectir em termos racionais. Vamos falar no concreto. Quando começou o ensino politécnico, os seus cursos, conferindo o grau de bacharel, eram geralmente o que se espera deste tipo de ensino: formações vincadamente práticas, com um objectivo imediatamente profissionalizante, correspondente a profissões em que, sem prejuízo da necessidade de alguma base teórica, o “know how” avulta sobre a aplicação científica. Eram cursos de três anos e o mercado deu-lhes boa aceitação. Esta duração era inegavelmente adequada ao tipo de cursos, em alguns casos até talvez um pouco prolongada.
E assim tínhamos, entre muitos outros, bacharelatos em engenharias técnicas, contabilidade, secretariado, educação de infância, fisioterapia, análises clínicas, técnico de radiologia, hotelaria e turismo, topografia, design, publicidade, fiscalidade, informática de gestão, zootecnia, intérpretes, mecânica de automóvel, pilotagem, marketing, etc. A lista vai extensa, mas já perceberão porquê. Refiro estes exemplos, entre muitos outros, como indiscutivelmente cursos de politécnico.
Por razões que julgo terem tido a ver principalmente com factores de imagem, de auto-estima de professores e autarcas, a revisão da Lei de Bases do Sistema Educativo, em 1997, introduziu um grande factor de perturbação no sistema: a possibilidade de o ensino politécnico poder conceder licenciaturas, de 4 anos. Criou-se também a ficção das licenciaturas bietápicas. Ao fim de 3 anos obtém-se o bacharelato, com mais um ano obtém-se a licenciatura. Digo ficção porque, por razões evidentes de prestígio e oportunidades de emprego (o que até nem é verdade), é insignificante a percentagem dos alunos que se ficam pelo bacharelato e não prosseguem para a licenciatura.
O resultado foi o seguinte: no sector público, em 2002, tínhamos no politécnico 20 cursos de bacharelato e 468 licenciaturas (não distinguindo, pelas razões já apontadas entre as bietápicas e as contínuas). Praticamente todos os bacharelatos que referi como exemplos, ao princípio, foram convertidos em licenciaturas. O país e os estudantes passaram a gastar 4 anos de estudos e o equivalente custo financeiro para formar uma secretária, um contabilista ou um guia turístico. Podia dar exemplos caricatos de como se “encheu” o balão curricular de alguns desses cursos para o inchar até aos 4 anos, mas nem vale a pena. O que a vaidade, apoiada pela inépcia institucional e pela complacência política, pode custar! E não se pense que estou só a criticar o politécnico. A (in)cultura do ensino superior, a mediania dos dirigentes eleitos, o provincianismo alheio a toda a evolução galopante do ensino superior pelo mundo, a falta de visão estratégica, o comodismo de bem sentados à mesa do orçamento, são comuns a universidades e politécnicos, afinal filhos da mesma mãe (que é honesta mas pobrezinha de espírito, a mentalidade nacional).
Bolonha vem complicar tudo isto: um único grau para o ensino universitário ou politécnico, tendência logo previsível para uma duração de 3 anos. O nosso estimado CRUP não teve dúvidas nem precisou de qualquer estudo, embora tenha demorado dois anos a emitir um parecer: “delenda” bacharelato, viva a licenciatura, logo 4 anos. Ainda agora, na descoberta do processo de Bolonha pelo Público, o presidente do CRUP diz o mesmíssimo, como se nada mais se tivesse passado. E o que me faz pena é que o Prof. Pimpão e alguns dos outros reitores são pessoas muito estimáveis, de alta qualidade profissional, intelectual e moral, com quem eu simpatizo imenso, mas estão tão presos na engrenagem que não há volta a dar.
Como se pode ver por toda a minha discussão do processo de Bolonha e pelas minhas intervenções junto dos legisladores, tenho mantido uma posição coerente a favor da duração de 3 anos para o primeiro grau (chame-se-lhe bacharelato ou licenciatura), mas com distinção clara de natureza entre cursos universitários e politécnicos. Durante algum tempo preguei no deserto, hoje esta posição ganha força. A propósito, num artigo recente, Vital Moreira refere um exemplo especial de um vice-reitor, Mário Vieira de Carvalho, que, contra o CRUP, também defende os 3 anos; faça-se justiça, José Ferreira Gomes, também vice-reitor, na UP, e um dos nossos maiores especialistas de Bolonha, há muito que defende o esquema dos 3 anos. Mas, voltando ao fio da meada, duas notas finais sobre as consequências da posição do CRUP, vertida reverencialmente pelo MCES para a proposta de lei de bases.
1. todo o problema do absurdo dos bacharelatos empolados a licenciaturas, de que dei bastos exemplos, fica consagrado com carimbo de lei, e logo uma lei de bases!
2. os poucos bacharelatos de 3 anos que ainda restam, das duas uma: ou são extintos ou passam a licenciaturas de 4 anos. Vejam-se os exemplos: higiene oral (para quem não sabe: limpeza dos dentes), topografia, engenharia de automóvel, computação gráfica, design paisagístico (?), fotografia e … produção de cavalos!
Bolonha e a falta de interesse português (17.3.2004)
Quando as reitorias e membros de órgãos universitários receberam a declaração de Bolonha, enviada pelo ministério, ela vinha acompanhada de um documento anexo. Era uma posição sobre a declaração, preparada pela Direcção Geral do Ensino Superior e manifestando a posição oficial portuguesa de então sobre Bolonha. Como está escrito em inglês, suponho que tenha sido usado em Bolonha como posição portuguesa. É obviamente reticente, questiona o interesse de um espaço europeu do ensino superior, considera que uma tendência para convergência na estrutura de graus é uma sobre-simplificação, e muito mais. Mas o mais marcante é que esta posição portuguesa termina afirmando que o 8º parágrafo da declaração não é aceitável. Ora o que é este parágrafo? É exactamente o verdadeiro conteúdo do processo, o que define a nova estrutura de graus, o sistema de créditos, a promoção da qualidade, a mobilidade. E, no entanto, no final, o ministro português assinou a declaração. Contradições que não se entendem.
Penso que isto é um exemplo de que Portugal – governo, instituições e, em grande parte, comunidade académica – sempre deram reduzida importância a Bolonha, limitando-se a ir na onda e muito tardiamente. Estão aflitos agora com a antecipação para o próximo ano da entrada em vigor das suas disposições. Às vezes, desconfio de que todos desejariam, no fundo, que nunca tivesse havido a declaração e depois o processo de Bolonha e que assim pudessem continuar na sua apagada tranquilidade.
As notícias de hoje sobre a reforma britânica (31.3.2004)
A reforma britânica do sistema de educação superior que os jornais de hoje noticiam limita-se a um novo modelo de financiamento, surpreendente num governo trabalhista, que eleva as já altas propinas actuais de 1000 libras para 3000 libras. Se fosse em Coimbra, não haveria à venda cadeados que chegassem. Mas não se fique a pensar, com esta notícia parcelar, que não está a decorrer no Reino Unido uma importante reforma da educação superior. Como dois dos aspectos fundamentais de Bolonha já estavam adquiridos, a estrutura de graus e o sistema de créditos, o que está a ser discutido são aspectos mais avançados do que o próprio processo de Bolonha estipula, embora eles decorram naturalmente do processo de Bolonha.
O primeiro aspecto diz respeito aos quadros de qualificações. O ministério encarregou a QAA (Quality Assurance Agency for Higher Education) de estabelecer para cada grau, independentemente da disciplina, um “framework” ou quadro de descritores de “outcomes”, isto é, o que se espera que um diplomado tenha adquirido. Sendo geral, claro que não especifica conhecimentos, embora aponte, em geral, para o nível de profundidade, cientificidade e compreensão dos conhecimentos, em cada grau. Mais importante, dirige-se principalmente para as aptidões e competências, com realce para as transversais, aquelas que devem ser comuns a todos os cursos do mesmo grau: a análise critica, o espírito de rigor, a capacidade de iniciativa, o domínio da comunicação, as relações sociais, a capacidade de continuar aprendendo, etc.
Voltando às qualificações, aquele trabalho foi seguido por uma concretização disciplina a disciplina (“subject benchmark statements”), que está quase concluída, e que foi feita por comissões inter-universitárias. Mas não se pense que estes descritores conduzem à uniformidade. Pelo contrário, apontando para objectivos comuns, permitem e até mesmo desafiam a experiências diversificadas e inovadoras. No resto da Europa, com a excepção da Holanda (sempre um pais surpreendente na reforma da ES) há bastante atraso, não obstante dois projectos no mesmo sentido: o projecto Tuning, da UE e o projecto Joint Quality Initiative, da EUA (não é o que pensam, é a “European University Association”). Os leitores que pretendam ler uma discussão mais vasta e aprofundada sobre esta questão dos descritores podem ver no meu “site” um artigo sobre “benchmarking”, em que este assunto se enquadra.
Quanto ao outro aspecto a que aludi, não o vou discutir, porque disponho de pouca informação e não consigo imaginar muito bem como funcionará. É um passo à frente no conceito de créditos. Como todos sabem, os créditos tradicionais como os que ainda temos em vigor, medem ensino (horas de aulas). A revolução dos ECTS foi passarem a medir a carga de aprendizagem do estudante, com todas as actividades que estão para além das aulas convencionais. Agora, no projecto inglês, pretende-se que os créditos, para cada disciplina, dêem também uma medida das atitudes e competências adquiridas. Ainda não é para nós! Bem bom já seria se todas as nossas instituições de ES soubessem, ao menos, organizar os seus currículos escolares com base nos ECTS e não apenas, como é regra quase geral, contabilizar os ECTS a posteriori, quando os cursos já estão organizados em moldes tradicionais.
Bolonha e os estágios de licenciatura (2.4.2004)
Uma entrada no Holocénico, já com mais de uma semana, sobre estágios de licenciatura, suscitou a MJMatos a questão de ser ou não possível mantê-los com um esquema, à Bolonha, de 3+2 (duração do bacharelato/licenciatura + duração do mestrado). A minha resposta, quase imediata, é que, na maior parte dos casos, não me parece que se possam manter. Mas temos que ver se isto é obrigatoriamente negativo e um argumento de peso contra o esquema 3+2. A favor, já eu e outros demos muitos.
Comecemos pela universidade. Em muitos cursos, os estágios terminais já datam de há muitos anos, mas sem um quadro uniforme. Na mesma faculdade, pode haver cursos com ou sem estágio e até ao invés de uma lógica de profissionalização (cursos profissionalizantes sem estágio e cursos científicos com estágio). Nos cursos científicos, parece-me que o estágio terminal é dispensável e, segundo os novos paradigmas de aprendizagem, é vantajosamente substituído, em termos de formação geral, por um contacto estreito com o trabalho científico, quase desde o início do curso. Claro que, dito isto, não haverá boa formação científica do estudante se não houver bom trabalho científico dos professores. O estágio final num laboratório de investigação, como vi muitos, arrisca-se a ser um trabalho técnico, de mão de obra grátis, subordinado aos interesses do orientador (muitas vezes externo) e sem um verdadeiro objectivo pedagógico. Ele deve é ser substituído cada vez mais pelo mestrado científico.
A questão é mais delicada nos cursos profissionalizantes. A inclusão do estágio, que até pode não ser temporalmente significativa (por exemplo, um semestre nos cinco anos de engenharia), é um resto da noção do ensino para o saber-fazer ou “know how”. Julgo que as discussões do processo de Bolonha têm contribuído muito para mostrar que esta perspectiva está ultrapassada, em favor da crescente importância da aquisição de competências. Adquiridas essas competências, é no exercício tutelado que se faz a aprendizagem concreta. Se têm o meu livro, releiam a página 75 e seguintes. Essa aprendizagem deve ser feita em ambiente e enquadramento profissional, não universitário. A universidade dá a formação científica, mas hoje já tem reduzidas condições, face à complexidade do trabalho, para fornecer o saber-fazer profissional. Os profissionais de alta qualidade estão para isso muito melhor habilitados do que os professores com mentalidade académica.
A aprendizagem profissional pós-universitária é regra desde há muito, mesmo entre nós. Nos EUA e no Reino Unido, entre a saída da universidade e a habilitação para trabalho independente de um advogado, de um engenheiro, de um arquitecto ou de um médico podem decorrer vários anos. Mas não é já à universidade que compete a função de seguir essa formação. Ela deu a formação científica, que é para o que está preparada. Note-se, todavia, que me estou a afastar da questão inicial, referente aos cursos de primeiro grau de três anos. Os exemplos que estou a dar referem-se, sem contradição com Bolonha, aos chamados mestrados contínuos, de cinco anos de formação científica, a que se segue a formação profissional em exercício. Mas isto não afecta o essencial desta discussão.
Diferente é o caso do politécnico. Aí sim, sem prejuízo das competências, há um componente importante de aquisição de saber-fazer. Mas não me parece que uma boa prática profissional, num curso de politécnico, normalmente especializado, seja incompatível com a duração de 3 anos. Casos típicos, como contabilista, intérprete, secretária, agente de turismo, educador infantil, técnico de análises clínicas, topógrafo, etc., não me parece que exijam tal carga de ensino teórico que não permita, nos três anos, um bom contacto com a prática. Mas, se não, também há solução. A Holanda adoptou um esquema 3+2/4+1, mas em que os cursos de primeiro ciclo de 4 anos não são universi-tários mas sim do politécnico (ensino superior profissional ou “hoger beroepsonderwijs”, HBO). Que escândalo seria em Portugal, cursos do politécnico mais longos do que os da universidade…
Reconhecer os erros é sempre de aplaudir (21.4.2004)
Ontem critiquei a ministra, de forma irónica, hoje tenho que a felicitar pela abertura que mostrou em alterar algumas propostas da lei de bases, correspondendo assim às realidades europeias e às muitas posições discordantes da versão original da proposta de lei. Assim, em relação à estrutura de graus, a ministra anunciou ontem que o governo alterou a sua proposta do absurdo esquema 4+2 para um esquema flexível de 3+2 ou 4+1, conforme as disciplinas, mas sendo a duração total da licenciatura e do mestrado sempre de 5 anos, como é consensual no processo de Bolonha. Muito bem. Não sendo a tendência maioritária, que adopta apenas o 3+2, é, todavia, seguida por um número significativo de países, alguns deles com sistemas de educação superior desenvolvidos e de qualidade. Outras duas novidades anunciadas pela ministra são a possibilidade de, sob condições, os politécnicos poderem atribuir doutoramentos, presumo que doutoramentos específicos e não miméticos dos doutoramentos académicos universitários; e a consagração legal dos cursos curtos pós-secundários sem grau, como os “foundation degrees” ingleses e muitos cursos dos “community colleges” americanos, hoje muito valorizados pelo mercado de trabalho. Já por várias vezes, e desde há anos, tenho defendido estas propostas. É minha obrigação, por isto, felicitar a ministra.
O ensino curto pré-grau (12.5.2004)
O ensino profissionalizante tanto pode ocorrer a nível secundário como pós-secundário. O primeiro está previsto como uma alternativa ao ensino secundário conducente ao ensino superior mas enferma de limitações. A oferta é muito inferior à procura e os cursos, ministrados em escolas secundárias gerais, enferma por vezes de algum espírito académico, mais próprio da preparação para a continuação de estudos. A nível pós-secundário, a oferta ainda é mais estreita. Destacam-se as escolas profissionais e as escolas tecnológicas, fora do sistema de ensino e dependentes do sector governamental da economia. As escolas tecnológicas, apenas dez em todo o pais, foram criadas já há largos anos, se não me engano no governo de Mário Soares do bloco central, e nunca se expandiram. Ao que sei, têm tido bom sucesso na colocação dos seus formados no mercado de trabalho.
Este tipo de ensino pós-secundário pré-grau (para todos os efeitos, superior) está em acesa discussão, no âmbito do processo de Bolonha. Tem-se verificado, com a concordância dos empregadores, e com os resultados práticos do emprego, que o mercado de trabalho, necessitando cada vez mais de quadros altamente qualificados, ao nível dos dois graus universitários ou politécnicos definidos na declaração de Bolonha, também necessita vitalmente de executantes de menor nível mas com formação muito superior à do clássico operário ou empregado de comercio e serviços. As duas grandes experiências internacionais atestam bem isso. Uma, bem antiga, é a dos milhares de jovens americanos que tiram nos “community colleges” cursos curtos, de dois anos, muito ligados à prática, que os conduzem directamente para a profissão. A experiência mais recente é a inglesa. O governo Thatcher transformou os bons politécnicos ingleses em más universidades, que passaram a conferir graus de “bachelor” de segunda. Criou-se um vazio de qualificações intermédias que está agora a ser preenchido com muito sucesso pelos chamados “foundation degrees”, conferidos pelos “colleges for furher education”.
Julgo que, com a carência que temos deste tipo de mão de obra, para funções não muito qualificadas mas que cada mais requerem um “know how” bem fundamentado a um nível teórico básico e uma boa capacidade de adaptação à melhoria da qualidade, à inovação e à mudança, devíamos fazer um grande esforço no desenvolvimento deste ensino terciário ou superior curto (três a quatro semestres). Queria deixar algumas notas práticas. Em primeiro lugar, que fazer das actuais escolas tecnológicas? Creio que deviam ser integradas no sistema formal de ensino mas, porque já têm uma identidade e tradição firmada, sem integração ou diluição em outras instituições, sem prejuízo da articulação de outros estabelecimentos da sua área regional, para coordenação da politica de formação. Em segundo lugar, que tipo de estabelecimento privilegiar para esse ensino pré-grau? Ouço dizer que algumas universidades estão a pensar nisso, pressionadas como estão, por razões financeiras, para explorar todas as possibilidades de ensino. Creio que é um erro. A cultura universitária e a atitude típica dos seus docentes não são as requeridas para um tipo de ensino muito orientado para a prática, muito estreitamente ligado às necessidades das empresas e, por isto, dependente de ligações efectivas entre as empresas e as instituições de ensino superior. Penso, portanto, que os cursos profissionais pré-grau são, prioritariamente, uma vocação do ensino politécnico.
O ensino curto pré-grau (II) (12.5.2004)
Hoje antecipei-me na entrada anterior – ou atrasei-me a comprar o meu jornal habitual. O Público noticia que a ministra Graça Carvalho anunciou que “os Cursos de Especialização Tecnológica (CET) serão iniciados em ambiente universitário, já no próximo ano lectivo e terão consagração legal na nova Lei de Bases da Educação, a aprovar brevemente. A ministra da Ciência e do Ensino Superior, Maria da Graça Carvalho, apresentou ontem, nas instalações da Associação Empresarial de Portugal (AEP), o programa de lançamento, que conta com 19 novos cursos, os quais se juntam aos quatro que já estão a ser ministrados na Universidade de Aveiro, desde Janeiro de 2003”.
Aqui fica a manifestação do meu agrado, reforçada por dois aspectos que não mencionei antes: os candidatos podem ter ou o ensino secundário concluído ou experiência profissional de nível III; e os diplomados com os CET podem prosseguir o ensino superior sem necessidade de exame de acesso. Mas confirma-se uma preocupação que manifestei: as propostas existentes e as próprias palavras da ministra (“em ambiente universitário”) parecem mostrar que são principalmente as universidades que se estão a lançar neste tipo de ensino. Como disse, creio que não têm tão boas condições para ele como os institutos politécnicos, para além da muito maior cobertura geográfica destes últimos. Abre-se também a possibilidade de CET dados por escolas secundárias, que, até agora, mal conseguem dar a via tecnológica do ensino secundário. Estou para ver.
O plano português para Bolonha (15.5.2004)
O Público e o Diário de Notícias dão hoje notícia da apresentação pela Ministra Graça Carvalho do “Plano de Acção para a aplicação do Processo de Bolonha”, que pode ser consultado no “site” do MCES. Como aqui disse já há bastante tempo, logo que o plano foi apresentado nas universidades de Lisboa e Porto, a minha apreciação é bastante favorável e por isso felicitei a ministra.
Uma melhoria apreciável em relação à proposta inicial de esquema 4+2 (duração da licenciatura + duração do mestrado), aberrante em relação às tendências europeias, foi a adopção de um sistema misto, 3+2 ou 4+1, conforme as áreas. Para isto, há que determinar, com alcance nacional, qual dos esquemas deve ser adoptado em cada área disciplinar e definir o tipo e objectivos das formações, articulados com a duração adoptada. Para isto, foram constituídos 21 grupos de trabalho. Ao contrário do que eu tinha reclamado, para maior confiança pública no processo, a composição destes grupos não é conhecida, a não ser os nomes de três ou quatro coordenadores publicados nos jornais. A página do MCES não é mais elucidativa.
Isto é da maior importância, porque, desde a declaração de Bolonha, a estrutura de graus é sempre apresentada como estreitamente ligada à empregabilidade. Por isto, tenho escrito desde há muito, e repetidamente, que o estudo da duração do primeiro grau (mantendo-se, pelos vistos, a designação de licenciatura) depende fundamentalmente da definição das competências exigidas pelo mercado do trabalho para cada tipo ou área de formação, o que não pode deixar de ser feito em colaboração entre todos os envolvidos: universidades e politécnicos, estudantes, empregadores, sindicatos, associações profissionais.
Por aquilo que vejo, parece-me que os tais grupos de estudo são apenas académicos. Pelo menos, o Plano não refere qualquer forma de composição mista, o que é reforçado por, em relação às associações profissionais, se falar apenas em “contactos”. Fico preocupado, porque esta é uma oportunidade de reforma que não se pode perder e, como creio, nenhuma verdadeira reforma virá só das instituições. Por maior consideração que se deva ter por nomes já falados, os académicos muito dificilmente escapam à cultura universitária. Ora não é patente que, em relação ao planeamento de cursos tendo em conta a sua função social, as universidades já mostraram a sua incapacidade, em todos estes anos? Não é opinião geral – ainda agora manifestada pela própria Ministra – que a oferta de cursos tem sido um exercício irrealista, cujas razões práticas se conhecem, resultando em cursos considerados inadequados pelos empresários, criticados pelas ordens, conduzindo ao desemprego, outros ficando sem candidatos?
Agora, quando os desafios são muito maiores; quando os paradigmas do emprego e da educação estão em grande mudança; quando quase se é preciso já ser especialista em politica da educação superior, mais do que simples professor, por melhor que se seja científica e pedagogicamente, para se poder enquadrar teoricamente os problemas e dominar a vastíssima documentação internacional sobre a reforma; então agora, dizia, é que milagrosamente as universidades vão ser capazes, por si sós, de “fazer Bolonha”?
Dou um exemplo e daqui a algum tempo veremos se não tenho razão. Todos os países que adoptaram o nosso futuro sistema misto 3+2/4+1 têm escolhido o 4+1 apenas para uma minoria de áreas disciplinares. Ora eu tenho bem o palpite de que em Portugal será o contrário (basta ver que o CRUP, desde o início, sempre defendeu a licenciatura de 4 anos). Isto significaria que, na maior parte das áreas, o mestrado seria só de um ano. Não só me parece muito curto para uma verdadeira diferenciação de competências em relação à licenciatura, como certamente conduzirá à desvalorização do mestrado, em termos de empregabilidade. Qual é o empresário que compreenderá facilmente a diferença de saberes e competências (e salários, claro) entre um diplomado com um total de quatro anos de estudos superiores e um com cinco?
Bolonha e a jangada de pedra (21.5.2004)
Fiquei de explicar o que quis dizer com o risco de implosão do nosso sistema de educação superior na sequência do processo de Bolonha. Admito que o termo é exagerado, mas o que receio é que uma aplicação superficial do processo de Bolonha seja uma carga gravemente perturbadora de um sistema totalmente impreparado. Por aplicação superficial entendo a que provavelmente se verificará, limitada à forma e desligada da substância, sem a consciência de que o processo de Bolonha significa hoje uma verdadeira reforma da educação superior muito para além da declaração inicial. Não se tire daqui que sou contrario à aplicação a Portugal do processo de Bolonha, ideia ridícula face a tudo o que tenho escrito, ma sim que espero, embora não seja optimista, que essa aplicação ainda venha a ser feito em moldes muito mais sólidos.
Tenho que ir a um aspecto histórico muitas vezes esquecido, mas que está na base do sucesso do processo de Bolonha. Em 1999, a declaração de Bolonha parece caída dos céus (esquecendo agora a da Sorbonne, do ano anterior). Nada augurava o seu incontestado sucesso. As principais motivações eram uma coisa pomposa e eurocrática chamada de espaço europeu do ensino superior, a competição com os EUA na atracção de estudantes, melhores condições de empregabilidade e, principalmente, nessa época, a mobilidade dos estudantes europeus. Tudo isto visivelmente arredio da cultura universitária típica. Então o que se passou de novo?
É que a declaração de Bolonha aparece num momento de agudização de factores de crise que já vinham a acumular-se desde há uns anos. Governos, universidades e seus parceiros sociais, vinham a ter cada vez maior consciência da insustentabilidade estratégica da situação: 1. custos elevados de formações prolongadas, a pesar nos orçamentos universitários com crescente retracção do financiamento público; 2. em coincidência, queixas dos empregadores quanto à inadequação dessas formações, vindas da época da especialização industrial, às novas características do mercado do trabalho da polivalência criativa e da inovação; 3. consequentemente, a ênfase na formação de competências, contra o paradigma tradicional da informação, e na aprendizagem, contra o paradigma tradicional do ensino; 4. problemas na articulação entre ensino, investigação e ligação ao mundo empresarial; 5. a ameaça da concorrência por uma oferta desrregulada de educação transnacional; 6. o agravamento da situação financeira e as “guerras das propinas”; e muito mais. Tudo isto ressalta bem de reacções precoces à declaração de Bolonha de algumas conferências de reitores ou de entidades como a CRE e a EUA (então Confederação das Conferências de Reitores). Governos e universidades, mas principalmente estas, viram uma importante janela de oportunidade para um processo de reforma sob o guarda-chuva europeu (um argumento que conhecemos, a Europa é que nos vai forçar a modernizar-nos). O processo tem sido muito frutuoso porque, na generalidade dos países, foi às últimas consequências, com reformas profundas dos sistemas.
A Declaração de Bolonha é hoje apenas um símbolo. De Bolonha a Praga, de Praga a Berlim, os avanços ultrapassaram-na e daí a expressão mais correcta de processo de Bolonha. De uma discussão sobre esquemas e durações de graus, passou-se para a discussão de “outcomes”, de diversidade e entrecruzamento de percursos, de novo paradigma educacional. Dos ECTS de transferência, passou-se para os de acumulação e, agora, para os ECTS organizativos ou estruturantes. A garantia de qualidade, embora menos avançada, está em grande mudança, com a avaliação institucional e o “benchmarking”. É impossível, neste espaço, dar uma ideia do que tudo isto tem sido, como verdadeira reforma da educação superior europeia, só comparável em profundidade à reforma napoleónica-humboldtiana. Vejam, por exemplo, o excelente relatório Trends III (quantos universitários portugueses o terão lido, para já não perguntar quantos reitores?) e os relatórios nacionais para a reunião de Berlim.
O que se passa em Portugal? Julgo que tenho autoridade para falar. Conheço praticamente tudo o que é documentação sobre Bolonha, já levo muitas palestras sobre isto e sei ver o que é a atitude e o conhecimento dos públicos para que tenho falado. Mas vou-me pôr de parte, porque já estou fora do sistema e, ao contrário do provérbio, na universidade só os santos de casa é que têm direito a fazer milagres. Pelo menos segundo o meu grau de exigência para a noção de perito, conto pelos dedos das mãos as pessoas em Portugal que tenham efectivamente demonstrado uma ampla e aguda visão global do processo de Bolonha. Do resto, responsáveis incluídos, leio banalidades. Segui todas as muitas reuniões internacionais destes anos, infelizmente não presencialmente, mas com estudo rigoroso da documentação. Nas listas de participantes, só ocasionalmente vi um ou outro nome português. As posições do CRUP são muito pobres, só compensadas por muito bons documentos do Prof. Luís Soares, enquanto presidente do CCISP. Os trabalhos de várias universidades sobre Bolonha, que só tardiamente apareceram, ainda estão ao nível da declaração e, como é nosso hábito, não conseguem ler a vida para além dos documentos. Podia dizer mais, mas já chega. Como vêem, isto não são jeremíadas vagas. São factos duros atirados para a mesa. Que me respondam.
Finalmente, porque é que falei de implosão? Imaginem que o processo de Bolonha é um peso de 100 Kg. Por toda a Europa, os sistemas de educação superior estão a treinar-se desde há muito tempo para o campeonato de elevação deste peso. Um raquítico concorrente português, franzino mas daqueles lutadores terríveis que gritam sempre “agarrem-me, senão eu mato-o” (talvez a mais significativa expressão portuguesa) entra no palco à última hora, começa a levantar o peso, eleva-o até à barriga, mas depois cai, com o peso em cima e uma hemorragia interna por rotura do baço. Tenho receio que venha a ser o destino do processo de Bolonha em Portugal. Ou então, coisa ainda mais ridícula: uma Lili Caneças universitária, com lifting, nova maquilhagem, mas com a nudez crua da idade sob o manto diáfano da pseudo-reforma. Podia ainda dar outra imagem. Neste espantoso processo de reforma da educação superior que varre a Europa, e de que, como em todos os grandes processos históricos, sempre nos demos conta nos cafés ou nas barbearias, arriscamo-nos a lançar ao mar uma jangada de pedra. Mas esta, ao contrário da de Saramago, tem limites no Caia, não nos Pirinéus.
28.10.2009