Bifes e bifes

Pode haver a ideia de que um açoriano, conhecida que é a qualidade e variedade do peixe das ilhas, seria mais de peixe do que de carne. Não é bem assim, para a minha geração. Os portos de pesca não eram os melhores, o mar era muito bravo dias e dias durante o inverno, rareando a pesca e o circuito de distribuição era limitado aos vendilhões de pé descalço que faziam quilómetros a pé, com os dois cestos de peixe pendurados do varal ao ombro. Com os vendilhões de fruta, as mulheres das lapas e muitos outros, faziam parte da minha “gente feliz com lágrimas”.

Com isto e talvez por gosto familiar, fiz-me apreciador de carne. Uma diferença entre o apreciador e o glutão é que este come o que lhe derem daquilo de que gosta, enquanto que o apreciador detesta má qualidade daquilo de que gosta. E, para quem gosta de carne, o simples (?) bife é uma pedra de toque. Por isto, cozinhar bem um bife é para mim um ator de esmero e rigor culinário

Sempre houve bons bifes na restauração lisboeta, principalmente nos cafés e depois nas cervejarias, embora a carne, no continente e ao contrário dos Açores (onde o pasto até permite que a vaca frísia, tipicamente leiteira, também seja muito boa raça para carne), nunca fosse da mais alta qualidade. Infelizmente, para meu gosto, muitos dos bifes que apreciava em jovem degeneraram e já são poucos os restaurantes e cafés que merecem uma visita para provar o bife. E já nem falo da modernice parola de quem entende que bife “à” café tem de levar café no molho, como se fosse bife “com” café (já agora, experimentem um tudo nada de chocolate, que é ingrediente de algumas pratos de carne latino-americanos; vale a pena).

Para além do bife à café lisboeta, hoje mais ou menos maltratado nas cervejarias de centro comercial e em dois ou três cafés, e do mais plebeu bife à portuguesa, na frigideira e com presunto, recordo também um ótimo bife de que também tenho a receita genuína e que está esquecido, o bife à Jansen.

Um dos bifes lisboetas que têm mantido fama é o do Café de S. Bento. Gosto, mas sempre tive a ideia de que não era mais do que uma variante de um clássico, sem nada lhe acrescentar ou ao bife idêntico que faço desde há muito tempo. Encontrei agora a receita do bife à café de S. Bento e confirmei o que pensava. A cozinha tem muito de Lavoisier. Nada se cria, tudo se transforma. Este bife de que estou a falar é, com ligeiras modificações irrelevantes, o célebre e perdido bife à Marrare, do Marrare do Polimento, um café do Chiado oitocentista que não podia deixar de ter lugar em Os Maias, o romance-mor de Eça que também é um imprescindível roteiro gastronómico da sua Lisboa.

Parece nada ter de especial mas como sempre acontece com “oh, simple things!”, só é especial porque é preciso saber conquistar a sua confecção, para além da exigência da melhor carne. Por sua vez, o bife à Marrare prolonga uma maior lista internacional de bifes com natas, como também o consagrado “steak au poivre”. Apanhei a receita num livro da maior confiança, hoje esquecido, o Culinária Portuguesa, de Oleboma (acrónimo do gastrónomo António Maria de Oliveira Belo). A receita vai na figura. Se a compararem com a do café de S. Bento publicada pela Time Out (googlem) será difícil encontrarem diferenças significativas que não seja o irrelevante uso de mistura de manteiga com e sem sal em vez de manteiga simples do Marrare.

Note-se que Oleboma localiza o Marrare na esquina da Rua dos Sapateiros com a de S. Justa. A localização inicial era no Largo de S. Carlos, tendo depois mudado para a atual R. Garrett e mais tarde, na época do bife e até ao seu encerramento em 1866, para .a R. Das Portas de S. Catarina, também no Chiado.

Mas não fico por aqui em bifes, entusiasmando sempre os meus convidados (e começou logo pela minha mulher, de tão longínqua tradição gastronómica) com a minha confecção de um bife sem nada da sofisticação das natas, um bife rústico mas excelente e também difícil de fazer para bom resultado: o bife à regional micaelense. Numa casa de família com duas grandes cozinheiras de tradição terceirense, as honras do bife cabiam ao meu pai, com quem aprendi e que por sua vez era herdeiro da boa tradição de cozinha tradicional micaelense da minha avó paterna, com versões de polvo guisado em vinho e de torresmos de molho de fígado gabadas por toda a gente, e que eu sigo fielmente. Para o meu pai, o bife tinha uma importância simbólica, porque numa família com catorze filhos e com um ordenado de professor, bife de lombo (ou lagarto, na nomenclatura micaelense) não era coisa de todos os dias.

Vou transcrever a minha receita. Há algum tempos faltava cá um ingrediente essencial, a malagueta ou “pimenta da terra”, mas hoje já se encontra em alguns supermercados ou nas mercearias açorianas de Lisboa.

Usar bifes do lombo, com 2 cm de espessura. Uma hora antes, preparar a pasta de tempero, no almofariz: para dois bifes, 6 dentes de alho pisados com sal a gosto, pimenta preta em grão, 1 folha de louro esmagada, 1 colher de sopa de massa de malagueta (e, versão minha, 6 grãos de pimenta da Jamaica, um tempero típico da cozinha açoriana). Barrar ambos os lados dos bifes e deixar no frigorífico. Aquecer muito bem uma frigideira, untar os bifes com uma boa porção (1 ou 2 colheres de sopa) de manteiga e fritar a lume forte, até ao ponto desejado. Remover os bifes para um prato coberto e desglacear os restos na frigideira com 1 dl de vinho branco e mais água, se necessário, para molho apurado, a que se junta o suco da carne entretanto libertado pelos bifes.

Aspetos críticos são a qualidade da carne, a espessura do bife e o ponto de fritura. Cada um prefere o seu mas, para mim, é sempre o médio-mal (“medium rare”) , bem rosado no interior mas já seco. Em algumas tabernas ou restaurantes de S. Miguel, a confecção é mais simples. O bife não é marinado e vai a fritar em manteiga em que primeiro se fritaram os dentes de alho esmagados (mantendo a pele interior) e malagueta curtida, em pedaços.

A acompanhar, claro que batatas fritas, embora haja quem acrescente ovo estrelado. No meu caso, a batata frita é mais trabalhada. Palitos grossos fritos durante 5 minutos a 140-150º, escorridos enquanto se eleva a temperatura para 190º e fritos novamente a alourarem no exterior. Bom proveito