A ideologia neoliberal e toda uma série de correntes de pensamento que se apresentam como a alternativa à esquerda convencional, com destaque para o pós-modernismo e o populismo “de esquerda” convergem na negação do papel da luta de classes como motor da História. A nova esquerda só pode combater eficazmente esta visão se atualizar a sua análise da estrutura de classes. Na perspetiva dialética da História, as grandes mudanças, com novos modos de produção, têm como motor a luta de classes e os partidos de classe têm de saber quais são, neste momento, as forças e os interesses da(s) classe(s) que representam, qual o grau do seu papel na determinação do processo histórico e quais as outras classes com que devem convergir para a construção de um bloco histórico, no sentido gramsciano. É certo que a metamorfose atual do capitalismo – financeirização extrema, globalização, efeitos do desenvolvimento tecnológico ·– trouxe consigo alterações consideráveis da estrutura de classes. Para tradução prática posterior, é urgente que sejam devidamente analisadas essas alterações.
É preciso rever-se perceção que se tem do que é hoje a classe trabalhadora — o proletariado, para usar a terminologia clássica – e como ele se relaciona com outras classes, em conflitos e em alianças. A classe operária diluiu-se numa grande massa proletarizada, muito diversa mas com forte afinidade no que respeita aos elementos definidores de classe: o seu papel na divisão social do trabalho, a não propriedade dos meios de produção, o seu trabalho assalariado, a sua exploração por apropriação da mais-valia ou de mais-trabalho (não produtivo). Esta atual classe trabalhadora inclui não só os operários da indústria, transportes, construção e conservação/reparação mas também os assalariados do setor primário (agricultura e pescas), os assalariados da administração das indústrias e os assalariados da função pública, do comércio e dos serviços, com trabalho de natureza essencialmente não criativa e de rotina; e os trabalhadores indiferenciados.
A outra grande alteração na estrutura de classes em relação à visão clássica diz respeito ao que geralmente se chama a “classe média”. São novas classes que intersectam de forma variável as classes tradicionais, burguesia, proletariado e pequena burguesia. Considero como tais “classes de intersecção”: 1. pequenos empresários (ou médio-pequenos), de indústria, comércio e serviços, que empregam um pequeno número de trabalhadores assalariados; 2. profissionais independentes (profissionais liberais, técnicos superiores trabalhando por sua conta, artistas e outros criadores, etc.); 3. dirigentes e supervisores (quadros de alto nível, empresariais ou do estado, que asseguram o enquadramento económico-social, político e jurídico do sistema de produção e da sua reprodução, com controlo do trabalho de outros; 4. técnicos e intelectuais assalariados, com grau considerável de autonomia e que podem desempenhar funções de controlo do trabalho em grau variável mas menos preponderantes do que as funções de mera supervisão técnica; 5. técnicos de base (especialistas diretamente participantes na produção ou noutras atividades económicas e sociais, com semiautonomia (dependência funcional mas com capacidade de iniciativa criativa) e sem controlo social do trabalho de outros.
Esta classificação tem como base os seguintes critérios (as especificações referem-se à tabela anexa): 1. Modo de produção (C – capitalista; S – produção simples de mercadorias e serviços; H – híbrido). 2. Propriedade dos meios de produção. 3. Trabalho assalariado.4. Controlo da aplicação do capital-dinheiro e do capital fixo. 5. Controlo social (não técnico) do trabalho de outros e participação na reprodução social (garantia da apropriação e do funcionamento do poder político). 6. Exploração (apropriação de mais-valia ou de mais-trabalho). 7. Natureza do trabalho, criativo (C) ou de rotina (-). 8. Interesses convergentes com a burguesia (B) ou com os trabalhadores (T). 9. Caracterização ideológica, em termos de contribuição significativa para a construção da hegemonia ideológica e cultural da burguesia, por meio das suas classes ideologicamente subsidiárias (ou não fosse eu um confesso seguidor da importância gramsciana da esfera cultural e ideológica).
As relações de interseção e de posicionamento relativo entre as diversas classes podem ser vistas na figura em anexo. Em fundo estão representadas as classes fundamentais e sobre elas as classes de intersecção. No caso das classes 6, 7 e 8 – respetivamente dirigentes/supervisores, técnicos e intelectuais e técnicos de base – a sua posição vertical denota o grau de partilha contraditória com as características da burguesia e da classe trabalhadora.
Este esquema é isto mesmo, um esquema, forçosamente com muita simplificação. Há situações, principalmente respeitantes a algumas profissões, que não têm uma correspondência simples a classes. Veja-se o caso de um professor. Se é proprietário de uma escola, é um capitalista; se só dá explicações, em casa, é um pequeno burguês tradicional. Mas se é empregado por uma escola pública ou privada, como é a maioria, passa a ser um técnico e intelectual (trabalhador semiautónomo no sentido de Wright) e, mesmo assim, com duas possibilidades – ser ou não expropriado de mais-valia conforme trabalhar numa escola privada ou numa pública. Da mesma forma, um médico pode ser de manhã um técnico (trabalhador semiautónomo) num hospital do Serviço Nacional de Saúde e à tarde um pequeno burguês no seu consultório particular ou, mais frequentemente, um pequeno empregador se tiver contratado uma recepcionista no consultório. Esta complexidade torna-se cada vez mais frequente com a empresarialização das atividades intelectuais, em particular das chamadas profissões liberais.
Pode haver também dúvidas sobre a diferenciação como classes individualizadas – também seria admissível a designação de “semiclasses” ou “quase.classes” – das classes 5 (profissionais independentes), 6 (dirigentes e supervisores), e 7 (técnicos e intelectuais). Partilham características essenciais, a nível económico e das relações sociais de trabalho: não possuem meios de produção, não têm domínio sobre a aplicação do capital, não extraem mais-valia ou mais-trabalho e praticam essencialmente trabalho intelectual. No entanto, diferenciam-se significativamente pela capacidade de domínio do controlo do trabalho de outros e pelas suas características ideológicas e, em boa parte, por interesses de classe diferentes. Estas diferenças individualizam mais nitidamente os dirigentes e supervisores mas são mais esbatidas no caso dos técnicos e intelectuais e dos profissionais independentes. Estes, por sua vez, partilham características com a pequena burguesia, fundamentalmente a de não serem assalariados.
Gostaria de ilustrar este modelo com dados concretos sobre a importância numérica relativa destas classes, pelo menos em Portugal. É praticamente impossível apresentá-los para quem não se dedica profissionalmente a este tema da sociologia, tanto mais que a classificação censitária é de difícil tradução em termos de classes sociais, privilegiando os aspetos profissionais e de nível de rendimento. Não consigo transpor esses dados estatísticos oficiais para uma classificação com base na estrutura de classes que apresentei.
Finalmente, uma consideração essencial, quando falamos de estrutura de classes. Estrutura remete para uma ideia de morfologia estática, mas há que pensar na dinâmica: há um componente ideológico e de consciência de classe que é importante para a própria definição de classes, não obstante esta ter como base essencial o seu lugar e o seu papel no processo produtivo e na atividade social em geral. O processo de classes, como qualquer processo social, não tem existência a não ser como lugar de convergência das influências exercidas por todos os demais processos sociais. Uma classe começa por ser uma “classe em si” pelo mero processo de desenvolvimento do modo de produção. Mas é no conflito, inter-relacionado com a consciência de classe, que ela se transforma em “classe para si”. A classe operária clássica já tinha conquistado este patamar mas, com um “emburguesamento geral” da sociedade e com a sua diluição em massas trabalhadoras com menor consistência ideológica, perdeu em grande parte a sua consciência de classe. Por mais que isto contradiga os nossos desejos, uma nova fase de luta pelo socialismo só será possível quando a nova classe trabalhadora adquirir consciência de classe, passar a ser uma “classe para si”, o que ainda está longe de ser.
Assim, é preciso pensar a cada momento o que é a “classe trabalhadora”. Na prática, ela resulta em muito das alianças variáveis que se vão processando continuamente. Estas alianças influenciam a luta e é na luta que as classes se vão formando, não sendo entidades pré-determinadas numa perspetiva essencialista. A nova classe trabalhadora vai-se reforçando e homogeneizando à medida que os seus novos membros vão ganhando consciência de classe e motivação para a luta. Se a antiga classe operária já tinha conquistado o estatuto de “classe para si”, aguardemos pela fase em que esta nova classe trabalhadora, ainda objetivamente “classe em si”, se converta novamente em “classe para si”.