A guerra com fair play

“Há alguma gente de esquerda, assim os próprios se qualificam, que  defende abnegadamente que a guerra deve ser travada com “fair play”, segundo regras éticas de conduta bélica. Suponho que tenham o râguebi como padrão”. (José Manuel Correia Pinto, Facebook)

Em comentários nessa página, critiquei este post na generalidade, mas, sendo ele, a meu ver, um exercício de vestimentas elaboradas de uma ideia errada, vale a pena despir uma a uma essas vestimentas e mostrar que o rei vai nu. Essencialmente, o que JMCP fez foi um truque muito antigo e de que não o julgava capaz. Caricaturou as posições dos seus antagonistas e argumentou não contra as verdadeiras posições desses antagonistas mas sim contra a caricatura que inventou. Depois, usou uma série de factos incontroversos para captar a adesão dos leitores, mas sem que eles tenham alguma coisa a ver com o essencial da questão. O essencial não é o fair play, mas sim a condenação do terrorismo. Confundir ambas as coisas é atirar poeira para os olhos.

“Gente de esquerda que defende que o Hamas deve lutar com fair play, segundo as regras”. É uma afirmação demagógica, um argumento aparentemente apelativo, emocionalmente construído sobre uma inverdade. Quem defende que o Hamas atue segundo regras de fair play do tipo das de um jogo? Como se pode confundir questões de valores humanos básicos com meros jogos de poder ou de combate desportivo? Condenar o terrorismo, a morte de civis inocentes, seja pelo Hamas seja por Israel, é transpor isso para um exercício intelectual de jogo de poder e de regras de jogo? 

A seguir, o exemplo da retaliação nazi em Lídice, contra o que teria sido, aparentemente, um ato de resistência comparável à ação do Hamas. Ironiza JMCP que a resistência devia ter feito só uma ação simbólica e avisando Heydrich do atentado, segundo as regras do fair play. Detesto que brinquem com a minha inteligência. Há alguma comparação entre os dois casos? Heydrich era um alto quadro militar-político nazi, fardado, um criminoso contra a humanidade. A sua morte não tem nada de censurável, é um ato mais que legítimo de guerra e moralmente  e só é de lamentar que não tenha sido mais cedo, antes de tudo o que ele fez. Comparar a sua execução pela resistência checa a este ataque do Hamas é pôr tudo no mesmo saco de terrorismo, é ofender o heroísmo da resistência e o sacrifício dos massacrados em retaliação.

No parágrafo a seguir, a crítica a Guterres e Borrell por terem criticado o curto prazo dado pelos israelitas para evacuação de Gaza pelos civis. Seria um exemplo do tal respeito pelas regras. É óbvio que a condenação não se pode ficar por aspetos secundários, mas lá por isso vamos criticar qualquer atitude de quem não gostamos, mesmo que até contribua, mesmo que parcialmente, para a nossa luta? Posição estranha em quem frequentemente reproduziu aqui afirmações de gente pouco recomendável, até neofascistas, só porque eram contra o inimigo comum.

Depois, tinha de vir a identificação da esquerda “moral”, a que discorda do esquematismo geopolítico e tem princípios de conduta, como “arautos da grande civilização ocidental”. É vantagem negativa das redes sociais e do seu esquematismo e facilitação dos sound bites demagógicos. Se fosse num debate científico a sério, eu questionaria logo JMCP sobre essa afirmação e ele teria de a justificar.

Por fim, o enumerado de exemplos históricos a favor da sua tese de que não há fair play na guerra, uma pseudo-tese contra moinhos de vento, porque nunca ninguém disse tal coisa. A lista é de facto a mistura incongruente de duas coisas muito diferentes. Muitos casos, desde a padeira de Aljubarrota às guerras napoleónicas e à guerra de independência americana, são vistas e bem do ponto de vista do agredido ou do revoltado. Mas o que é que têm a ver com a atualidade, em que é que evocam terrorismo ou crimes? Em todos os casos, foram lutas convencionais contra soldados, não chacinas de civis.

A outra parte da lista, opostamente, refere casos de guerras em que o agressor procedeu criminosamente. Claro que estamos de acordo, e também em que isto se aplica a Israel e à sua violência contra o povo palestiniano, mas em que é que a prática do Vietcong dá lições em relação à situação atual? A comparação legítima está no sofrimento dos dois povos, no seu igual direito à liberdade na sua pátria, mas se há lições sobre condutas, então onde e quando é que o Vietcong praticou terrorismo, usou violência contra civis?

Com essa extensa lista histórica, JMCP só consegue demonstrar o óbvio e com que todos concordamos: os opressores não se sujeitam a regras na luta pela manutenção do seu domínio. Que novidade! Mas em que é que daí deriva o “padrão que permita aos povos ocupados, historicamente humilhados e agredidos, preparar e executar a sua resposta sem críticas  e, se possível, até com aplausos?” (sic). Será Talião? Ou o relativismo moral, que permite considerar que um ato é ilegítimo quando praticado pelo lado opressor mas não pelo nosso lado da razão?

Finalmente, que isto já vai muito longo, uma afirmação inaceitável: “esse padrão não pode buscar- se numa abstração, em algo que nunca aconteceu, mas numa conduta historicamente vivida que possa agora ser repetida”. É uma exemplo surpreendente de conservadorismo, de imobilismo histórico. Não há progresso nas ideias, afinal também uma força imaterial que com duz a humanidade?