Três “posts” no Facebook, em dias diferentes, a começas em 9.5.2024, dia das eleições para o Parlamento Europeu:
(I)
Compreensivelmente, as atenções estarão hoje viradas para os resultados das eleições em Portugal, para as variações dos vários partidos. Muitos também se interessarão, a nível europeu, pelos resultados das ultradireitas. Infelizmente, nada leva a pensar que a esquerda à esquerda tenha um grande sucesso e já será bom que resista, de forma a combater, como só ela o pode fazer, a barbárie que se anuncia.
Mas há na esquerda europeia um fenómeno novo, creio que muito pouco conhecido entre nós. Um novo partido alemão, que se espera que tenha um bom resultado, veio prenunciar uma alteração do quadro da esquerda (no sentido amplo), fixado tripolarmente pela social-democracia (incluindo o Livre português), a esquerda comunista tradicional e a “nova esquerda”, isto é a família relativamente indefinível em que se situam os mais conhecidos BE, Podemos, Die Linke, Sinn Féin e não sei bem se ainda o degradado Syriza.
Trata-se do novo partido alemão Aliança Sarah Wagenknecht Razão e Justiça (BSW) – não gosto nada do nome personalizado – um partido de esquerda radical criado formalmente este ano, resultante de uma cisão no Die Linke no ano anterior, encabeçada por aquela conhecida deputada alemã. Muito resumidamente, é um partido radical de esquerda ideologicamente bem definido mas antissectário, com marcada perspetiva de classe (com uma noção atualizada da estrutura de classes), contra o populismo também de esquerda, sem concessões aos modismos “fraturantes” ou identitários e procurando ter uma nova pedagogia política com uma linguagem adaptada aos nossos tempos.
Vale a pena conhecê-lo. Hoje falta-me o tempo, mas tentarei escrever amanhã alguma coisa mais sobre esta nova experiência e as perspetivas que abre. Desde já, o facto notável de, logo desde a sua fundação, ser creditado pelas sondagens com uma simpatia potencial de até 20%, à frente dos neofascistas do AfD. Será que esta experiência – a de um retorno, em novos termos e por um novo partido alternativo, às raizes essenciais da luta socialista – alastrará para outros países europeus? Não o percamos de vista e, para já, atenção ao seu resultado de hoje.
(II)
Afinal, o BSW ficou nestas eleições no limiar inferior do que as sondagens de há meses indicavam, não como previsões eleitorais mas sim como manifestação de apoio: então 6%, agora 6,2% como resultado eleitoral de facto, o que, a repetir-se em legislativas, lhe assegura a entrada no Bundestag. De qualquer forma, é um resultado notável, para primeira candidatura de um partido novo e numa conjuntura nada favorável à esquerda. Ultrapassou largamente o seu partido de origem, Dia Linke, que obteve só 2,7%, muito abaixo dos 5% exigidos como mínimo para acesso ao Bundestag. O Die Linke tinha tido nas anteriores eleições europeias, antes da cisão, 5,5%, menos do que agora sozinho o BSW.
Hoje vou dar uma nota biográfica-política sobre Sahra Wagenknecht (SW), a fundadora e figura pública mais conhecida do BSW. Não gosto nada da personalização, muito menos num partido de esquerda, mas devo admitir que, nestes tempos de política mediática, superficial, de “panem et circenses”, é romântico esquecer que a figura do líder conta muito.
SW nasceu em 1969 em Jena, na então RDA. No início da década de 90, com a grande transformação política do seu país, aderiu ao Partido da Democracia Socialista (PDS), o sucessor do antigo partido no poder na RDA, o SDE. Integrou logo de início a Plataforma Comunista, um grupo marxista radical do PDS e, ao longo da evolução do PDS, por vezes com alguma deriva revisionista, manteve-se sempre na ala esquerda do partido, de que foi eleita deputada desde 2009, tendo chegado a líder do grupo parlamentar.
Em 2007, acompanhou a criação do novo partido Dia Linke (A Esquerda), pela fusão do PDS com a ala esquerda saída do Partido Social-Democrata, a Alternativa Eleitoral para o Trabalho e a Justiça Social (WASG), dirigida por Oskar Lafontaine, com quem mais tarde casaria.
Em 2020, lançou um movimento político unitário no âmbito ainda do Die Linke, o Aufstehen (De pé), com a defesa das posições políticas agora constituintes do BSW e que resumo a seguir. Tendo tido dificuldade em fazer aceitar pelo partido a sua posição radical de esquerda e a visão de classe e radicalmente anticapitalista, acabou por romper definitivamente no fim de 2023, com outros deputados e dirigentes do Die Linke, constituindo já esterno o novo partido.
Ao longo da sua carreira política, SW notabilizou-se por algumas posições políticas marcantes:
— Posição anticapitalista firme e radical;
— Crítica da configuração atual do projeto europeu;
— Defesa da dissolução da NATO, do reforço do sistema de segurança europeu baseado no acordo de Helsínquia e da necessidade de relações estreitas de cooperação entre a Alemanha e a Rússia;
— Condenação da ação militar da Rússia ao invadir a Ucrânia, mas com entendimento do processo provocatório desenvolvido durante anos pelos EUA e seus aliados, tendo promovido muitas iniciativas a favor da paz na Ucrâmia.
O lado mais polémico das suas propostas políticas é o da imigração, que até lhe valeu (como também a outros expoentes de esquerda europeus, como Julio Anguita ou Manolo Monereo) a acusação de cúmplice objectivo com os fascistas xenófobos. SW defende, essencialmente, que: 1. Se deve distinguir a política de maior acolhimento possível em relação a refugiados por razões humanitárias e a política de imigração de natureza económica e laboral; 2. Que o direito de acolhimento implica deveres de integração e de respeito pela cultura e valores do país, desde que facultados os meios para tal; 3. Que a imigração deve ser regulada em termos de garantia de condições de vida digna dos imigrantes, da sua integração e, por outro lado, de não perturbação do mercado interno de trabalho.
Finalmente, um aspeto particular em que, se eu fosse alemão, teria alguma dificuldade em apoiar SW. Na pandemia da COVID-19 combateu o processo de compra de vacinas pela UE. É certo que houve muita coisa duvidosa, mas SW talvez não tenha tido o cuidado de se desmarcar de todos os que usavam o mesmo argumento a favor do negacionismo primário. Da mesma forma, contra a opinião científica dominante, e que se mostrou correta, foi contrária à vacinação geral, defendendo que a vacina só devia ser administrada aos velhos e outras pessoas com risco.
No próximo e último “post” sobre este assunto, resumirei as propostas programáticas do BSW.
(III)
O posicionamento e biografia política de Sara Wagenknecht, que resumi no “post” anterior, são importantes para compreendermos o novo partido, por ela ser uma peça essencial, mas não basta, Convém ler os documentos oficiais do partido. Muitos são em alemão e só posso confiar nas traduções online, mas outros estão disponíveis em inglês. O que ase segue é uma coletânea, a meu ver significativa, de passagens desses documentos.
“Os lucros triunfam sobre o bem comum, a violência sobre o direito internacional, o dinheiro sobre a democracia, o desperdício sobre a produção sustentável. Quando apenas os valores bolsistas contam, a humanidade é posta de lado. É contra isso que nos levantamos: pela justiça e pela coesão social, pela paz e pelo desarmamento, pela preservação dos fundamentos naturais da nossa vida.”
“Vivemos numa terra de contradições. Construímos carros e máquinas que são procurados em todo o mundo, mas enviamos os nossos filhos para escolas em ruínas, sem professores suficientes, onde o ensino tem de ser regularmente cancelado. O governo salva os bancos e subsidia as empresas, mas não está disposto a proteger os idosos da pobreza. A promessa de mobilidade social da economia social de mercado – de que todos os que trabalham arduamente irão prosperar – já não se aplica na era do emprego temporário e do trabalho com baixos salários. O número de empregos que não pagam o suficiente para viver, quanto mais para alimentar uma família, está a aumentar constantemente. A classe média está a diminuir. As diferenças salariais entre homens e mulheres são mais elevadas do que em quase todos os outros países europeus. As pessoas que têm de prestar cuidados a outras pessoas recebem muitas vezes um salário insultuosamente baixo. A origem de cada um determina muito mais as oportunidades de uma boa vida do que o desempenho efetivo.”
“Particularmente dramáticas são as mudanças no mercado da habitação, uma vez que já não são as cidades e os municípios que marcam o ritmo, mas sim os investidores com fins lucrativos. As pessoas com rendimentos normais, sobretudo as famílias monoparentais e as famílias com filhos, já quase não conseguem comprar apartamentos nos bairros centrais das grandes cidades.”
“A destruição da coesão social, a insatisfação crescente e a sensação de impotência criam o terreno fértil para o ódio e a intolerância. Embora a principal razão para a ansiedade em relação ao futuro seja a crise do Estado-providência e as instabilidades e ameaças globais, o aumento do número de refugiados conduziu a uma maior insegurança. Os ataques a pessoas devido à sua aparência ou religião estão a aumentar. Rejeitamos todo o tipo de racismo, antissemitismo e xenofobia. Por isso, consideramos irresponsável a forma como o governo tem lidado com os desafios da imigração. (…) Muitos problemas pré-existentes, como a falta de habitação social, escolas sobrecarregadas ou espaços insuficientes para o acolhimento de crianças, agravaram-se. Em última análise, os já desfavorecidos são os que sofrem.”
“As ameaças globais estão a aumentar. Nas relações internacionais, a força militar está a substituir cada vez mais as negociações e a diplomacia. As guerras são travadas sem restrições pelo acesso a recursos cobiçados ou a esferas alargadas de influência geopolítica. Isto é particularmente verdade para os Estados Unidos. (…) O conceito de segurança partilhada na Europa e de equilíbrio de interesses entre o Leste e o Oeste, entre os Estados mais pequenos e os maiores, foi abandonado. A corrida aos armamentos está a destruir todos os progressos alcançados em matéria de desarmamento na década de 1990. As relações com a Rússia estão profundamente congeladas. (…) O perigo de uma conflagração militar entre as duas grandes potências nucleares voltou a agravar-se. (…) Consideramos errado que o Governo alemão se subordine a uma política externa dos EUA imprevisível e cada vez mais orientada para o conflito, em vez de se inspirar no meritório legado de política de paz e de desarmamento deixado por Willy Brandt, Egon Bahr e pelo movimento pacifista do Leste e do Oeste.”
“É uma mentira o que nos dizem, que as políticas atuais não têm alternativa na era da globalização e da digitalização. A desigualdade crescente não é uma força da natureza. O capitalismo financeiro globalizado que liberta as empresas e os ricos da responsabilidade social não é o resultado de desenvolvimentos tecnológicos, mas de decisões políticas. A digitalização só pode trazer-nos novas liberdades e tornar as nossas vidas mais diversificadas e ricas se a sua conceção não for deixada ao sabor dos interesses lucrativos dos gigantes globais da Internet.”
(…) Queremos trazer a política de volta ao povo. E o povo de volta à política. Porque estamos convencidos de que só assim a democracia pode ter um futuro. (…) A esquerda institucional está a centrar-se nos meios urbanos, jovens, intelectuais, ativistas, afastando-se dos seus eleitores tradicionais, isto é, os operários, os sindicalistas, outros trabalhadores, muita população rural. (…) Pretendemos dar novamente voz àqueles que se afastaram da política e reunir aqueles que atualmente lutam isoladamente. Ao fazê-lo, temos como objetivo uma mudança fundamental na política.”
“Desenvolveremos um programa pormenorizado num processo de discussão transparente. Connosco, todas as vozes contam. Apostamos numa nova proximidade e numa comunicação direta. Por essa razão, somos a primeira organização na Alemanha a utilizar a ferramenta de debate digital desenvolvida em torno do Occupy Wall Street, a Pol.is. Queremos educar, organizar discussões e, por sua vez, criar pressão social para as nossas exigências comuns. Iremos fornecer uma plataforma para ideias interessantes e pensamento criativo. Mas, acima de tudo, vamos levar para as ruas e para a política as reivindicações que mais interessam às pessoas.”
Npta final – o tema mais polémico nas posições do BSW é o da imigração. Tem gerado acusações de “política vermelho-castanha” (isto é, de convergência da esquerda com a ultradireita) e de transição à tradição do internacionalismo proletário. É um problema que discuti no “Utopia Hoje” e que ultrapassa o âmbito do Facebook. Mas, em relação ao caso concreto do BSW, vou tentar traduzir e analisar a vasta documentação do seu sítio da rede e, mais tarde, direi aqui mais qualquer coisa.
Mas relembro que há muitos temas atuais, da imigração ao relativismo cultural e ético, dos identitarismos extremados à intolerância fascizante do “wokeismo”, em que alguns setores de esquerda a se afastaram perigosamente do sentir popular, do senso comum, de tal forma que levam muita gente a sentir-se perplexa e facilmente atraída pela reação da ultradireita, sem perceberem a natureza reacionária e ultramontana dessa crítica, por falta de uma outra posição crítica, essa sim de esquerda, progressista, racional e inserida numa perspetiva global da dinâmica histórica.