Parlamento europeu, que parlamento?

Vou votar amanhã, não porque esse voto “europeu” seja para mim um dever cívico, como nas eleições nacionais, mas porque o voto é também sempre um instrumento de intervenção política prática. Neste caso, votando num partido crítico deste projeto atual de união dos povos europeus, um processo degenerado ao serviço da uniformização neoliberal, acrescento um pequeno aditivo ao combate. A meu ver, só há um partido na esquerda portuguesa em que vejo essa perspetiva sobre a UE.

De parlamento, o PE só tem o nome. É uma farsa, um órgão em grande parte cosmético, sem poder democrático. Mas será que eu quero mesmo um edifício democrático da UE? Vou alinhar com todos aqueles para quem a luta aparentemente positiva pela democratização das instituições europeias faz esquecer a própria natureza do projeto federativo europeu?

O argumento fundamental sempre esgrimido é o da ultrapassagem histórica do nacionalismo ou do Estado-nação por entidades supranacionais que refletem a ideia da “aldeia global”, do cosmopolitismo e até, para alguns, a criação de grandes blocos de poder. 

A legitimidade de um Estado ou de qualquer nova instituição política é, em última instância, a da vontade do povo que lhe corresponde. Parece-me óbvio que não existe um povo europeu, não obstante haver, em sentido amplo, uma cultura europeia. É certo que um povo se autoconstrói, mas com base em dinâmicas que faltam na Europa. Uma delas, que vemos na história de todos os atuais Estados federados, é a unidade na luta ou resistência a um inimigo comum, sejam os poderes feudais que rodeavam os cantões suíços, seja o colonizador comum de grandes comunidades relativamente isolados, baianos, gaúchos, mineiros, fluminenses, paulistas, etc. O povo americano, uma entidade hoje indiscutível, tinha inicialmente em comum a sua natureza WASP, mas forjou-se principalmente na luta pela independência, depois contra o vizinho espanhol-mexicano, também, em boa parte, pela “epopeia” constitutiva da expansão para o oeste e pelo inimigo central e comum, o índio.

Onde está o colonizador ou o índio da Europa? Pelo contrário, o inimigo na Europa foi sempre o outro europeu. E até este facto foi um determinante do projeto europeu, na primeira fase confederativa. A criação da CEE era vista como um contributo para que não mais pudesse haver uma guerra baseada na secular oposição entre a Alemanha e a França.

O nível nacional está longe de esgotado e, na Europa, é o nível de identificação comunitária que mais diz ao povo. Mesmo em termos instrumentais, de facilidade de lutas, “o inimigo principal de cada povo está no seu próprio país”, como lembrava Karl Liebknecht.

O Estado-nação está a ser atacado pelos economistas liberais e também pelos seus aliados objetivos, os cosmopolitas eurofanáticos. Mas continua a ser o principal locus de governação, bem como o principal determinante dos vínculos pessoais e da identidade. Na globalização, o Estado-nação é um obstáculo à obtenção de resultados económicos e sociais corretos. E, afinal, é a base do funcionamento da própria UE, com a centralização de poderes no órgão de concentração entre os Estados membros, o Conselho Europeu, que também domina de facto a toda-poderosa Comissão Europeia.

Nenhuma conquista ou resistência populares na época do neoliberalismo, mormente na Europa, teve por base uma movimentação à escala europeia. Quantas greves internacionais foram convocadas pela Confederação Europeia de Sindicatos? Que iniciativas de massas têm sido organizadas pelas classes trabalhadoras que extravasem as suas fronteiras?

A experiência tem demonstrado que, pelo contrário, são as lutas sindicais ou de movimentos populares à escala nacional que mais eficazmente defrontam os governos, que a este nível perdem o escudo do anonimato da política europeia.

A par da recuperação da soberania nacional lesada pelas regras de Maastricht, pela política monetária do BCE e, agora flagrantemente, pelo seguidismo da política internacional da UE, é necessário lutar por um novo projeto europeu, de natureza diferente e não só retocado para a sua “democratização”. Tem de ser a reinvenção de raiz de um projeto não federalizante mas sim confederal, no respeito integral pela soberania dos países membros, que tenha como eixos centrais a cooperação económica no sentido da potencialização das livres escolhas de cada povo, a valorização da cultura comum europeia, a solidariedade entre os trabalhadores europeus e a defesa dos seus direitos, um modelo de sociedade inclusiva, igualitária e ecologicamente sustentada.