O que é a social-democracia?

Alexandra Leitão passa por ser uma política séria, honesta e com princípios. Por isso, fico perplexo quando leio o que escreveu no Expresso de 20.7:

“E, mesmo no contexto de crescimento da extrema-direita populista, a verdade é que hoje os partidos sociais-democratas governam nas maiores economias europeias: na Alemanha, na França (apesar de, na data em que escrevo, a solução de governo ser ainda incerta), na Espanha e no RU. Isto demonstra que é a social-democracia a principal barreira ao avanço da direita radical, reacionária, misógina e xenófoba e também a alternativa ao neoliberalismo individualista.”

Isto quase parece uma afirmação pós-modernista, de validação de qualquer narrativa em que cada um se reveja. Alexandra Leitão construiu a sua visão da social-democracia e isto é o que lhe interessa como fundamento da sua argumentação política doméstica. Esta sua visão da social-democracia europeia não é mera narrativa subjetivista; é uma entorse ao mínimo do rigor intelectual.

É um caso claro de o nome valer mais do que a coisa, o nome da rosa. Por essa lógica, o representante da social-democracia em Portugal não é o PS mas sim o que a tem no nome, o PSD…

Como é possível entender uma determinada categoria por simples enumeração de alguns casos – nem sequer os mais paradigmáticos – ligados só por uma etiqueta já anacrónica e correspondendo a realidades muito diferentes? 

O que tem a ver a NFP com o partido de Starmer que expulsou o mais destacado dos seus membros genuinamente sociais-democratas, Jeremy Corbyn? Aliás, a NFP nem sequer é um partido, mas sim uma coligação em que o PS, social-democrata é só um dos componentes, juntamente com os comunistas, os ecologistas, e a esquerda anticapitalista da France Insoumise (LFI)? E em que o PS fica atrás da LFI?

O que é que há de social-democrata no Labour, se pensarmos no excelente retrato da social-democracia do filme “Espírito de 45”, de Ken Loach (outro excluído do partido)? Havia, sim, no Momentum, o movimento de base estimulado por Corbyn mas depois asfixiado por Sir Keir Starmer (um líder de esquerda que aceita ser tratado com um título monárquico…).

E o que é a social-democracia de Olaf Scholz, na Alemanha, continuador fiel do ordoliberalismo tradicional da direita alemã e cada vez mais rendido ao neoliberalismo? E governando com os liberais que sempre foram muleta da direita (ou são mesmo direita) e com os Verdes, cada vez mais “realos” e renegados, inseridos no sistema e, para cúmulo, agora até belicistas e atlantistas? Um governo que tem dado total cobertura (provavelmente a maior na Europa) à política criminosa de Israel, talvez para dar a ideia pública de rejeição penitencial de um passado anti-semita.

E é o passado e carácter da verdadeira social-democracia, a do “espírito de 45”, que norteiou a abertura à esquerda de António Costa e depois de Pedro Sánchez, ou pura e simplesmente o aproveitamento de uma maioria conjuntural, mais aritmética do que realmente política, para garantir a formação de um governo que só muito limitadamente corresponde às propostas da “esquerda à esquerda” que os sustenta?

Partidos socialistas, social-democracia, esquerda, populismo de esquerda (falsamente atribuído à LFI), centrão, pântano, muitos mais termos, estão a precisar de redefinição ou, pelo menos, de desambiguação. Estamos a precisar de uma revisão do vocabulário político, até por razões práticas, já que muitos termos adquiriram na opinião pública uma conotação negativa que prejudica a riqueza ou importância do conceito em si.

Um desses termos, a esquerda, tem grande tradição e significado histórico mas também, com a já longa evolução/involução dos diversos setores dessa esquerda, foi crescendo a sua indefinição e ambiguidade. Assim como “democracia” ou “socialismo” exigem hoje, em rigor, adjetivação caracterizadora, o mesmo se passa com “esquerda”. Temos tendência a mitificá-la, lembrando-nos de tempos em que a unidade de esquerda era fundamental, embora sempre difícil de conseguir (por vezes com culpas de sectarismo, de parte a parte). 

Também muito depende do objetivo concreto, em cada situação. Por exemplo, é importante ver toda a esquerda tradicional quando pensamos em luta antifascista, mas já não faz sentido em casos em que a “esquerda à direita” está muito próxima da direita, como por exemplo, a política externa e o alinhamento com a NATO ou a política em relação à União Europeia. Para maior clareza e eficácia política, temos de pensar numa esquerda de geometria variável.