O desconfinamento e a imunidade de grupo

João Vasconcelos Costa

O Expresso de 14.6.2020 traz uma notícia, “Covid-19: Médico português defende menos restrições em nome da imunidade de grupo” que insere declarações de Nelson Olim, médico português experiente em medicina das emergências e consultor da Academia da OMS. É pena que não seja um artigo integralmente do próprio, tendo de se dar desconto a eventuais más interpretações do jornalista que o entrevistou. Já estamos bem habituados a isto.

A sua tese é que, podendo haver algum exagero, nesta fase, das medidas de controlo, “estamos a atrasar em muito o adquirir da imunidade de grupo que nos iria proteger a todos. (…) O país arrisca-se a enfrentar uma segunda vaga do SARS-CoV-2 quase nas mesmas condições em que enfrentou a primeira. O facto de estarmos a atrasar esta imunidade de grupo faz com que uma possibilidade de segunda vaga vá na mesma atingir uma população que ainda não criou imunidade, portanto, uma população que se vai comportar mais ou menos como foi atingida há dois ou três meses”.

Do ponto de vista científico a tese é inteiramente aceitável para discussão, embora não possa ainda ser demonstrada. 

Note-se que Nelson Olim se refere apenas à atual fase de desconfinamento. Não deduzo do que diz discordância (não sei se terá ou não) com a necessidade de uma fase inicial de ataque a trazer a epidemia para dimensões que permitam uma forma controlada de aquisição de imunidade de grupo. Controlada quer dizer, principalmente, com minimjzação das consequências para os mais vulneráveis, em particular o grupo etário de risco, e com garantia de funcionamento satisfatório do SNS, tanto para tratamento da COVID-19 como de todas as demais patologias até agora prejudicadas.

Mesmo assim, teria sido inteiramente legítimo que Nelson Olim tivesse exprimido dúvidas sobre eventuais exageros nessa primeira fase de ataque, podendo eu ou outros estar ou não de acordo com a sua opinião. Pessoalmente nem é seguro que não partilhasse alguma da sua eventual opinião nesse sentido, mas seria uma discussão com escassas bases objetivas. Em termos muito gerais, podemos servirmo-nos de um índice global, “government response stringency index”, da Univ. de Oxford, que avalia a severidade do conjunto de medidas adotadas numa escala de 0 a 100. No entanto, sem uma análise mais fina, este índice não permite conclusões, como se vê na figura seguinte, que mostra, sem ser possível detetar uma correlação, o posicionamento de cada país em função das medidas globais e do número de casos de infeção.

Recorde-se também que não houve unanimidade na estratégia de ataque inicial à epidemia (falo de epidemia e não de pandemia, por me referir a casos nacionais). As três estratégias, de confinamento rigoroso, de testagem intensiva e de alguma conciliação controlada com a epidemia, até tiveram na prática aplicações mistas, com grau diferente de medidas de um ou outro tipo. E também ninguém pode saber, nesta fase, qual foi a melhor forma de baixar a transmissão, de um R0 inicial de 3 ou mais até ao actual valor de Rt consideravelmente inferior a 1 em muitos dos países europeus que estão já na segunda fase, de desconfinamento.

Mesmo em relação à fase inicial de ataque, pode haver dúvidas pertinentes. Não há dúvida de que as medidas, globalmente, resultaram em menor número de casos e, logo, de mortes, mas é difícil apurar, num grande conjunto de medidas, quais as que foram necessárias e suficientes e quais as que, eventualmente, pecaram por exagero, sem que isto seja uma crítica a decisões políticas tomadas por prudência e com escasso conhecimento científico.

Nelson Olim insere-se num grande consenso no sentido de que o baixo grau de imunidade resultante das diversas medidas de ataque, na primeira fase, ameaça o aparecimento de uma segunda vaga. Apenas 23 países ou territórios se podem afirmar livres do vírus, por ausência de novos casos num período superior ao de incubação. Mas, com exceção do Montenegro e do Laos, são casos especiais, de ilhas, que não poderão manter o seu isolamento em relação ao resto do mundo. Nos outros, mesmo nos melhor sucedidos na estratégia de confinamento (China, por exemplo) ou de seguir e rastrear (“track and trace”), por exemplo a Coreia do Sul, continua a haver um número baixo de novos casos permanentes, na ordem de duas a três dezenas, sempre uma ameaça em potência.

Independentemente das previsões de modelos como o do Imperial College, provavelmente exageradas, podemos pressupor as consequências da evolução da epidemia a uma dimensão suficiente para a aquisição da imunidade de grupo. Sendo o R0 de cerca de 3, e pela fórmula 1-1/R0, essa imunidade tem um limiar de 67%, o que corresponde a cerca de 6700.000 portugueses.. É certo que, segundo dados anunciados recentemente, uma alta proporção dos verdadeiros assintomáticos talvez não transmitam a infeção, o que, para efeitos práticos, diminui o limiar da imunidade de grupo. Por exercício de estilo e com muita arbitrariedade, desça-se o limiar para 50%, 5 milhões. Admita-se também, segundo alguns estudos serológicos em outros países, que o número de infetados é 10 vezes maior do que os referenciados, o que faria a nossa taxa de letalidade baixar para 0,4%. Mesmo assim, a imunidade de grupo (mesmo que com algum simplismo aritmético) custaria cerca de 20000 mortes, 13 vezes mais do que até agora e representando uma mortalidade de 2000 mortes por milhão de habitantes – embora ainda estejamos só a sair da primeira fase.

É claro que estas estimativas não estão a contar com a dimensão temporal. O que interessa é prever o número de mortes e internamentos, no objetivo de aquisição de imunidade de grupo, até ao outono/inverno, quando a segunda vaga é mais provável. E prevê-lo em função do grau de compromisso entre o controlo de número de mortes e a conciliação com o número de novos casos que nos aproximem da imunidade de grupo. É um exercício particularmente difícil, por falta de estudos de impacto de cada medida em particular. O confinamento teve de ser feito por “bom senso”.

Parece manifesto que uma estratégia de mitigação, com aquisição paralela de imunidade, podia ter altos custos se adotada como estratégia inicial. A situação é diferente – e merece uma discussão tanto científica como política – em relação à fase de desconfinamento em que continua a haver grandes restrições, mesmo que aliviadas em relação à primeira fase. Esta é a discussão pertinente que Nelson Olim suscita.

Para que Portugal pudesse aproximar-se até ao outono de, digamos, 50% de imunidade na população, seriam precisos, no total, mais 4500.000 infetados reais, o que custaria cerca de 18900 mortes (a manter-se a taxa atual de letalidade), além de uma saturação quase certa do sistema de saúde. É certo, porém, que é preciso decompor a letalidade entre o grupo de risco e os restantes, como veremos adiante.

Nelson Olim postula que as medidas desta fase de desconfinamento são exageradas. Tem razão se se vir a questão apenas do ponto de vista da aquisição da imunidade de grupo. Note-se que nem entro na discussão, para que ainda não há dados científicos conclusivos, sobre se essa imunidade é realmente protetora e durante quanto tempo.

Que grau de medidas seriam um compromisso aceitável entre a aquisição de um grau de infeção/imunidade relativamente protetor dos efeitos de uma segunda vaga (na impossibilidade de ser uma total imunidade de grupo)? É um pouco matéria de adivinha, quando muito de previsão indireta por avaliação dos efeitos dos desconfinamentos noutros países. 

O caso de controlo pode ser o da Suécia, que tem estado muito próxima da situação de maior controlo possível no caminho da imunidade de grupo: crescimento quase aritmético do número total de casos, isto é um número de novos casos diários com pequeno crescimento, tendo começado com cerca de 200 e andando agora pelos 900, mantendo-se o Rt em redor de 1. As previsões são de uma seroprevalência de 30% em junho, o que, a esse ritmo de crescimento da infeção, torna a Suécia o país com mais alta taxa de imunidade ao chegar à próxima estação fria. A contrapartida bem conhecida é a maior mortalidade, proporcional à taxa geral de infeção, e que é na Suécia de 47,4 por 100.000 habitantes, contra 14,8 de Portugal, mas inferior à da Espanha, Itália, Reino Unido e Bélgica e da mesma ordem de grandeza da França, Bélgica e Holanda. 

Os países que fizeram confinamentos rigorosos estavam em situação geralmente mais favorável do que Portugal, com um. Rt de cerca de 0,7 e um número médio de casos diários inferior à centena. Nós tínhamos o dobro de novos casos e um Rt de cerca de 1. Os dois países atualmente mais “relaxados” são a Suécia (índice de Oxford de 46, em 7 de maio) e a Chéquia (54). Noruega, Dinamarca, Alemanha, Suíça, Áustria e Grécia andam entre 60 e 70, sendo Portugal o país ainda com maior restrições, com um índice de 75.

A experiência diz que, para a situação de fim da primeira fase dos países referidos, o desconfinamento não resultou num recrudescimento do número de casos. A exceção é Portugal, mas não é linear que os novos surtos na região de Lisboa estejam diretamente (sublinho, diretamente, porque pode haver ligações indiretas) ligados ao desconfinamento. Dir-se-á que, na ótica da aquisição progressiva de imunidade, mesmo as medidas de desconfinamento são exageradas. De facto, são, por exemplo, mais estritas do que as do que considerámos como controlo, a Suécia.

A proteção do grupo etário de risco

Tudo isto tem plausibilidade científica e é base de uma proposta legítima, como faz Nelson Olim e outros já tinham sugerido, mais ou menos veladamente. Mas tem um grande busílis, de facto apontado pelo próprio Nelson Olim: “os grupos de risco devem continuar a ser protegidos, pelo menos enquanto não houver uma vacina ou um tratamento”.

A questão é se podem continuar a ser protegidos como até agora ou se, com maior liberalização das medidas gerais, devem ser muito mais protegidos.

Nenhum país conseguiu plenamente o objetivo de proteção do grupo etário de risco, em particular dos lares de terceira idade. Mesmo em Portugal, cerca de 40% das mortes ocorreram nesses lares. O caso mais falado é o da Suécia, em que muitas vezes se atribui a elevada mortalidade ao grau reduzido das medidas de controlo da epidemia. É certo que a taxa é de 4,76 por milhão de habitantes e a taxa de letalidade é de 9,8%, contra os nossos valores de  1,48 e de 4,1% , respetivamente. Isto deve ser ponderado com o facto de a Suécia ter até agora 49,8 casos de infeção por milhão de habitantes e nós 35,7. Mas não é linear que a relativa moderação das medidas adoptadas pela Suécia tivessem de conduzir inevitavelmente à alta mortalidade. O que não houve foi a suficiente proteção dos mais velhos.

A figura seguinte mostra as curvas de evolução diária (médias móveis de 7 dias) de novos casos e de mortes em dois países com a mesma ordem de grandeza da dimensão da epidemia, mas com situações diferentes: a Suíça, que desconfinou numa situação epidémica favorável, e Portugal.

É visível que, à saída da primeira fase, Portugal está numa situação diferente da Suíça, em evolução do número diário de novos casos, ou da generalidade dos países europeus em segunda fase. Afinal, estamos relativamente mais próximos da Suécia, com um número de novos casos estabilizado, embora em número inferior ao sueco. Já na curva de mortes não se nota grande diferença em relação à Suíça (esquecendo o acidente da curva suíça, por retificação do número de mortes), provavelmente devido ao facto de os novos casos portugueses estarem a atingir populações mais jovens.

A  Suécia é o exemplo, aliás reconhecido pelas próprias autoridades, de uma estratégia discutível mas lógica que no entanto ficou afetada, na imagem pública, pela insuficiência das medidas tomadas em relação ao grupo etário de risco. isto é tanto mais crítico quanto era sabido que uma estratégia que consentia conscientemente um maior número de casos tinha como consequência obrigatória uma maior mortalidade global – e portanto também nas idades mais avançadas – naquilo em que ela é proporcional ao número de casos (a mortalidade é proporcional ao número total de infetados e tem a ver com as características do vírus), mas também com o risco de uma maior número de casos significar um maior risco de entrada da infeção nos lares, por visitantes e pelo pessoal. No entanto, a curva de mortes indica que o problema está em vias de correção.

A pergunta final é: há formas de evitar eficazmente, e de forma digna para os internados, que uma situação de manutenção da infeção, por exemplo depois do desconfinamento, acarrete sempre o risco acrescido de mortes no grupo etário de risco?