Regressar ao Futuro — Nota prévia

Este livro vem em sequência do anterior “Utopia Hoje”, mas, apesar de ir na mesma onda e com a mesma perspetiva, não é uma continuação. O livro anterior era uma análise/proposição sobre a profunda mudança social, económica e política que o mundo sofreu durante e desde o fim dos segundos “trinta gloriosos”, essas três décadas que vão do fim da II Guerra Mundial até à crise petrolífera dos anos 70, prolongando a análise atém aos dias de hoje. Abordei a mudança e sugeri vias possíveis de construção do futuro segundo a minha perspetiva marxista crítica, de um marxismo libertado da deturpação infligida pela escola oficial, dogmática. Assim, a leitura desse livro, passe embora a minha intenção de a tornar acessível ao leitor comum, pode exigir algum grau de complexidade na reflexão filosófica prática e na política.

Este é diferente, sem citações eruditas, sem notas remissivas, sem teorização. É mesmo, parece-me, um livro para todos, um livro que se pode ler na praia ou numa viagem de avião. Ele trata igualmente da mudança, mas opta por um único domínio de reflexão, o da mudança na nossa vida de todos os dias, do cidadão comum, dos seus anseios e dificuldades, deixando de lado, porque tratados extensivamente no livro anterior, os aspetos que dizem respeito às bases estruturais, à dinâmica do capitalismo e às suas contradições, a análise de classe. Tudo isto, o objetivo, está subjacente, na minha perspetiva, ao que vai ser objeto desta conversa, mas vou falar apenas do mundo subjetivo.

É claro que a política não fica esquecida, está sempre subjacente. Mas, no nosso tempo presente, mal ou bem, ela está secundarizada, num clima de perplexidade que corresponde à complexidade dos problemas pessoais e sociais que nos avassalam. É necessário ir às raizes, compreender os fatores da crise estrutural do nosso sistema social e ao modo como elas afetam a nossa vida individual. É necessário transferir essa análise para uma proposta de discurso profético, global e coerente, que nos anime, que nos motive, que nos conquiste para um projeto de grande transformação. No entanto, isto não será possível se não acompanhado por uma reflexão mais imediatista, mais virada para os interesses e anseios do homem comum, na sua angústia existencial perante um mundo opressivo, materialmente e mentalmente.

Disse que ia ser uma conversa, porque é mais disto que se trata dos que de um ensaio. É uma conversa de café, discorrendo por vezes de forma pouco organizada, ao sabor do que vem à mente, até por impressões do que se viu naquele dia, como sinais do bom e do mau da vida que hoje vivemos. Assim, é porventura um livro mais impressionista do que racional. Para racionalidade, fica o livro anterior.

Na “Utopia Hoje” insisti em que o atual vazio da esquerda e a falta de um projeto transformador coerente, com um discurso profético que “co-mova” o povo radica em muito em dois factos relacionados. Primeiro, a consciência de classe que caracterizava a velha classe operária definhou, com a aristocratização das suas camadas mais altas, com a osmose social devida principalmente ao grande nivelador que é a educação e com a diluição numa vasta e complexa nova classe trabalhadora, ainda desprovida de uma ideologia própria. Em segundo lugar, e interrelacionadamente, pelo domínio hegemónico da ideologia neoliberal, que se infiltrou com grande sucesso no senso comum, na forma como vemos (ou não vemos…) o mundo e as nossas vidas.

É nesta perspetiva, a discorrer sobre a mudança de vida, que este livro não é tão marcado ideologicamente e politicamente como o anterior. Muito do que aqui será tema para uma longa conversa de tertúlia, ou de café, vai para além de um discurso orientado ideologicamente e dirigido a um sector social específico. Falar para todos, é preciso.

É preciso falar a todos os que assimilaram no seu senso comum (isto é, as ideias indiscutidas) a ideologia neoliberal. Penso nos meus filhos, bem sucedidos na vida, mas com futuro que não tem as certezas de segurança social que eu tinha. Penso nos meus colegas universitários, afogados numa máquina economicista e pragmática que perverte a mais nobre ideia de uma universidade. Penso nos meus vizinhos, típicos reformados de classes intelectuais e técnicas, que me transmitem o seu “mal de vivre”. Penso em amigos bem instalados no pseudo-conforto de empresas multinacionais “de progresso”, mas que lhes desgasta a qualidade de vida.

Há perguntas que tocam a muitos mais do que os mais diretamente atingidos pela exploração. Podemos, os adultos de hoje, garantir aos nossos filhos que vão ter trabalho daqui a vinte anos? E que esse trabalho está ao nível das suas qualificações, que bem custaram à sociedade e muitas vezes também às famílias? E que não assentará na precariedade? Podemos garantir que não vão continuar a viver com os pais ou a dependerem deles até para além dos trinta anos, como tão frequentemente hoje, limitando aquela antiga ambição dos pais de terem alguns prazeres de vida uma vez exonerados do encargo de formação dos filhos? Podemos garantir aos nossos filhos um sistema de segurança social como o que, apesar de tudo, ainda temos hoje? Podemos garantir-lhes um planeta saudável, livre da tendência atual para a perda da biodiversidade e para a mudança climática, com todas as suas possíveis consequências? Podemos garantir-lhes um clima cultural de liberdade de pensamento, crítica racional, escolhas informadas, controlo da desinformação na comunicação social, exercício pleno da cidadania? Podemos garantir-lhes habitats sem gentrificação, propiciadores de vida comunitária e lazeres?

Estas não são só questões a colocar-se para consciencialização da nova classe trabalhadora, embora, como tratei no livro anterior, seja essencialmente dessa consciência que derivará a mudança. Mas também é preciso ir mais além. As perguntas que formulei, os desafios à reflexão, dirigem-se a todos os “homens de boa vontade”.