Quem me lê habitualmente sabe qual é a minha posição acerca de toda essa perversão ideológica e atentado à racionalidade a que chamo de ultraidentitarismo e outros, com algum grau de impropriedade, wokismo ou politicamente correto. É uma história que, na origem hoje muitas vezes esquecida, já tem dezenas de anos (Maio de 68 pode ser um marco), desde a emergência do pós-modernismo (primeiro filosófico, depois estético e também político), a seguir adotado pela intelectualidade universitária americana como “French theory”. De degrau em degrau, uma cultura que acabou agora na “cultura de cancelamento”, coisa patentemente fascistoide.
A esta corrente se rendeu, em parte considerável, a esquerda europeia, que substituiu o espírito e luta de classes, a dinâmica social, pela fragmentária afirmação das identidades, de sexo, de raça ou de orientação sexual, pulverizando e esterilizando as lutas contra o sistema, quando não alinhando mesmo com o sistema. Por exemplo, reduzindo o feminismo a uma ação de elite pela paridade, na camada de topo do sistema capitalista, ou à luta elitista da denúncia #metoo – porque não há um #metoo das mulheres que levam pancada?
À pendura, como sempre desde os “futurismos” provatórios” (pequeno)burgueses – viva, Almada ou Marinetti –, a “épater le bourgeois”, vêm todas as rebeldias mais ou menos infantis, a contestação gratuita, a busca obsessiva da extravagância e da originalidade. Julgam-se “à la page”, muito modernos, último passo da evolução cultural humana, sem saberem que já os clássicos romanos descreviam isto – frequentemente associando à crítica da decadência. Por exemplo, quando é que o sítio Esquerda, do BE, deixa de fazer coexistir na suas preocupações e manchetes as lutas sociais, a denúncia da exploração mas também a secção de propaganda da canábis? Ou reconhecer o prejuízo que causou com todo o processo de legalização tonta das “medicinas alternativas”? Ou de matérias ainda cientificamente controversas, como a da abordagem da transexualidade em crianças?
E depois, talvez o aspeto mais importante na prática, é que todas essas fantasias intelectualoides (mas de “intelectuais” que se calhar nunca leram uma peça de Shakespeare, ou os Lusíadas, muito menos o Ulisses; ou que nunca ouviram completa uma única sinfonia de Beethoven ou uma oratória de Bach), mais importante na prática, ia eu dizendo, é que estas fantasias provocatórias são chocantes para o senso comum. É certo que esse senso comum tem de ser trabalhado contras o conservadorismo retrógrado, para a modernidade, para a perceção devida dos verdadeiros problemas de minorias, por exemplo as sexuais (reparem em que não digo de género, mas isto fica para outro dia). Mas não é dando murros nas meninges do meu interlocutor que o vou convencer. O que ele faz a seguir é ir ouvir o fascista que o conforta com o “saber convencional”.
Como certamente ja perceberam, toda esta conversa vem a propósito da polémica das “pessoas que menstruam”. Mas não pensem que vou falar sobre isso. Não me vai bastando o tempo para falar sobre a degradação quantitativa e qualitativa de vida nestes tempos sombrios de neocapitalismo, da crise migratória causada pela globalização, da degradação das qualificações e do seu efeito social, do imperialismo e da emergência de grandes contradições na ordem internacional, das guerras e da ameaça de um cataclismo nuclear, da opressão de povos inteiros, e tanto mais.
Vou perder tempo a discutir coisas que enlevam todos esses modernos sábios que estão reunidos na torre de marfim a discutir o sexo dos anjos (ou que anjos menstruam!)?
NOTA FINAL – Mas a verdade é que nunca resisto a perder (ou ganhar?) esse tempo. O que não vejo, entre nós, é muita gente a acompanhar-me neste combate ideológico. Comodismo ou falta de perceção da sua importância?
E, já agora, também uma provocação minha: o que há em comum entre André Ventura e (rima parcial) Boaventura Sousa Santos? A ação corrosiva em relação à esquerda consequente. Mas não basta dizer que alguma esquerda é consequente; é preciso que ela o comprove.