Sabores Açorianos – Reconstrução moderna, com memória das raízes (I)

Introdução

A tradição culinária faz-se de técnicas, de usos importados, mas principalmente dos sabores daquilo que os povos tinham à mão, na horta, no mar, nos currais, nas capoeiras e nas pocilgas. É legítima e muito interessante a busca e aproveitamento criativo de novos ingredientes; é legítima e muito interessante a cozinha de fusão, chamando o contributo de sabores e procedimentos exóticos. Mas é particularmente desafiante executar/reconstruir uma cozinha tradicional, em nada lhe alterando a essência mas modificando-a tecnicamente, a modernizar, a adaptar ao comportamento alimentar moderno, a acompanhar ditames dietéticos.

Ao mesmo tempo que continua a valorizar-se na alta cozinha moderna a criatividade contra o convencional, os novos contrastes e misturas de sabores, e a imaginação, também se mantém uma linha de estilo que se pauta pelo respeito pela tradição, pela simplicidade dos ingredientes e valorização dos sabores essenciais a que nos habituamos desde crianças. Com modernização, na ligeireza, nas regras dietéticas, na subtileza de novos temperos e ingredientes, bem medidos. Mas nada de “épater le bourgeois”.

A alta cozinha espanhola de hoje reflete isto. Por um lado, a exuberante marginalidade em relação ao tradicional de Adrià. Por outro lado, a modernização do clássico pelos Arzak, por Santi Santamaria, até mesmo pelos irmãos Roca.

Seguindo mais a segunda linha, aliás a única compatível com a escrita de um não profissional, este livro pretende cingir-se à cozinha açoriana, embora ensaiando alguns exemplos evocativos do que a história (parca) nos pode sugerir como evoluções da cozinha nas ilhas, no que a sua cozinha se alterou por ser de “porta-aviões” do Atlântico. Fundamentalmente, iremos buscar outra “fusão”, a da cozinha primitiva dos povoadores e a modernização de alguns requintes deixados pelas naus das especiarias, na volta do largo. Também uma “fusão” muito prática, a dos ingredientes escassos da cozinha tradicional com toda a panóplia de que os meus conterrâneos dispõem nos supermercados de hoje.

Mesmo assim, com exceção de coisas já vulgarizadas como “universais” e que hoje também se vendem em qualquer supermercado açoriano, não há neste livro ingredientes ou temperos, que marquem o prato, que não houvesse nos Açores no meu tempo de menino e que não fossem usados na cozinha tradicional, seja popular seja de casa mais rica.

É claro que hoje, com o alargamento do comércio alimentar, aumentou imenso o uso de produtos que não faziam parte dessa cozinha originalmente açoriana. Vou usá-los mas com moderação, para que o visitante não deixe de ter uma ideia de como se fez, durante séculos, a cozinha das gentes açorianas. Pode comer, segundo receitas minhas, espargos, caviar, cogumelos, endívias, alcachofras, cherovias, salmão fumado, jalapeños, misu e molhos japoneses, a atirar ao acaso, coisas desconhecidas há poucas décadas para os ilhéus da minha geração, mas encontrará sempre nessas receitas uma raiz açoriana ou uma razão histórica para essa fusão. 

Afinal, quando os portugueses do Brasil levaram para África a batata doce, o inhame, a goiaba, a malagueta, não as deixaram nos Açores, pelo caminho? E as especiarias, de tão rico uso nos Açores, não eram moeda na volta do largo? A cozinha possível de fusão da açoriana com outras exóticas tem velha fundamentação histórica. Juntamente com a cozinha caribeana ou algumas cozinhas do sul e lesate do Mediterrâneo, por exemplo, é produto de um longo processo de cozinha de fusão.

Devo confessar que a minha referência a “açoriano” pode ser abusiva. Ao contrário da grande mobilidade inter-ilhas de hoje, no meu tempo cada ilha era cada ilha. Os meus referenciais culinários, como híbrido de pai e mãe de ilhas tão próximas e tão distantes, são da cozinha micaelense e da cozinha terceirense. Creio que, em ambos os casos, das mãos de peritas para a minha boca de menino apreciador, tive das melhores tradições, experiência, gosto e bom proveito. E grande criatividade culinária, por parte da minha avó Adélia, também transmissora de um notável património culinário de família, coisa que, na época, valia tanto como as pratas e não se transmitia para fora da família.. No entanto, apesar da circunscrição a S. Miguel e à Terceira, talvez este livro seja útil para as “ilhas de baixo”, com adaptações.

Que públicos?

Há muita gente, talvez cada vez mais, que, como eu, se deleita com a nossa riquíssima cozinha tradicional, mas que depois tem de se precaver das consequências, com medicamentos para a digestão ou longos passeios digestivos. Apreciam o equilíbrio entre os seus sabores de infância e os hábitos dietéticos de hoje, de pessoas que, por exemplo eu, fazem jantar só de uma sopa ou uma salada rica, com mais um queijo fresco, iogurte ou fruta ao deitar. Aligeirar a composição, reequilibrar os componentes das classes nutricionais, reduzir as gorduras enjoativas e corrigir as técnicas pesadas, foi um dos meus objetivos. Mas não só, senão seria um livro dos muitos de “cozinha para tias” que por aí andam.

Este livro tem também a ambição de representar uma “cozinha elaborada”. O que é isto? Certamente coisa a fugir a “cozinha de autor”, que remete para cozinheiro profissional, com diploma de escola, o que não é o meu caso. “Nova cozinha”? Não se trata disto, no sentido em que se fala de “nouvelle cuisine”, que já passou e de que não gostei por aí além. Esta “cozinha elaborada” é uma cozinha de e para amadores de bom gosto e com boa técnica, a tornar elegante e dieteticamente correto o excelente manancial de sabores, ingredientes, técnicas de confecção da cozinha das ilhas açorianas (melhor, das cozinhas, diferentes de ilha para ilha). Para amadores, mas também com sugestões aproveitáveis por restaurantes açorianos que, para proveito do turismo e também do dia a dia dos locais, se desejam de cada vez melhor nível.

Gosto de lhe chamar cozinha de reconstrução, o que não se opõe inteiramente a outra que gosto de criar e comer, a de desconstrução.

O desafio foi pensar num restaurante internacional, de cozinha de qualidade, mas com todos os bons sabores da cozinha açoriana tradicional, em confecções mais leves, adequadas ao estilo de hoje. Já há nas ilhas uns poucos restaurantes de boa qualidade, com ementas imaginativas e bem concebidas como evocação de sabores tradicionais. Há um notável esforço da Escola de Formação Turística e Hoteleira de Ponta Delgada, com o seu restaurante-escola Anfiteatro. Não vão aprender comigo. Mas faltam outros restaurantes do mesmo nível e estou a pensar em todos esses que faltam. Ao mesmo tempo, receitas com boa técnica e imaginativas, acessíveis a cozinheiros competentes mas não estrelados e sem formação de muito alto nível. Outra coisa seria pretensão ridícula do autor, ele também não profissional, muito menos de alta escola. 

Refiro-me a restaurantes. No entanto, não é fácil imaginar uma solução prática uniforme – em termos de sucesso económico. Em terra de turismo variado e sazonal, que tipo de restaurante pode satisfazer ao mesmo tempo o turista mais popular que gosta de cozinha simples, o turista que gosta de conhecer a verdadeira cozinha regional, mais o cliente local de todo o resto do ano que come o regional é em casa e que vai ao restaurante pela diferença e qualidade? Não é fácil o compromisso, mas não é impossível, com boa gestão da ementa, com seções diferenciadas (cozinha tradicional e cozinha elaborada) e com variação conforme a época alta ou baixa de turismo.

Não vou tratar de cozinha tradicional genuína, a necessitar tanto de merecidos cuidados pelos restaurantes açorianos, com mui honrosas excepções. Não preciso de mais do que remeter para os livros de Augusto Gomes ou, ainda melhor, para os conselhos das avós. No entanto, mesmo um restaurante de “cozinha elaborada” pode valorizar a genuína cozinha tradicional, por exemplo numa pequena secção da ementa ou em minidoses de petiscos, no bar. Ou então, como voltarei a escrever adiante, acompanhando os pratos “reconstruídos” com uma pequena amostra do que é o prato tradicional em que eles se basearam. 

Tendo em conta que o turismo hoje tem um grande componente de empresa, de reuniões, também pensei na possibilidade de uso de receitas deste livro em “eventos”, festas para comensais numerosos, à mesa ou em pé, servidas em dose ou em bufete, mostras gastronómicas, etc. Em alguns casos, as receitas até só se poderão executar com qualidade se encomendadas expressamente e em quantidade prevista, como no caso de um “evento”.

E em casa? Claro que, na maioria dos casos, as receitas que proponho não são para o dia a dia – mas abri um capítulo para cozinha familiar. No entanto, acho que poderão ir muito bem à mesa de um jantar de festa ou de experiência de deslumbrar (desafiar) amigos. Também, com um pouco de imaginação, a possibilidade de as adaptar a confecções mais simples mas com um toque de qualidade. Em alguns casos sugerirei a simplificação da receita para maior adequação à técnica, hábitos e até utensílios dos não experimentados. É também por isto que darei menos atenção às guarnições e ao empratamento, deixando-os às possibilidades, imaginação e técnica de cada um.

Em cada receita, muitas vezes darei versões diferentes: 1. cozinha de família ou para amigos; 2. cozinha de restaurante corrente e de preço moderado, nomeadamente os mais procurados pelos turistas ou pelos açorianos que vão ocasionalmente comer fora, com qualidade; 3. alta cozinha.

Para não deixar mal as minhas raízes, ponderei com preocupação este desafio de escrita perigosa, entre a recolha fácil (mas exigente) do tradicional e a minha incapacidade para inventar cozinha a alto nível de profissionalismo, que obviamente não tenho. Mas não posso deixar envergonhadas as origens. 

Sempre se comeu muito bem nos Açores. Comia-se excelente cozinha popular, em ingredientes, condimentos e confecção. Ingredientes à beira da mão, na pequenez da mistura de mar, pasto e horta. Condimentos enraizados em coisas que vêm do retorno do Golfo da Guiné, como a malagueta do Benim, essencial na cozinha micaelense, ou das naus da volta das Índias, com a profusão de especiarias. A confecção de requinte apurado, sempre a cheirar-nos ao povoamento algarvio, alentejano e nortenho, mistura estranha, do ponto de vista gastronómico, mas bem visível na cozinha de inspiração nortenha, de arroz, couve, repolho, a par da cozinha de herança alentejana, de pão, pimentão (malagueta nos Açores), ervas. Com isto, acima de tudo, saber aproveitar ao máximo a matança. Evidentemente, também o peixe, ainda hoje a resistir nos restaurantes açorianos ao modelo quase único do grelhado, pior o escalado, dos restaurantes continentais.

Depois, o facto de a sociedade açoriana, mesmo que na sua estratificação, mas pela pequena dimensão, ter maior osmose social. A cozinha aristocrática também é culto de família no continente, mas, nos Açores, com aristocracia tão pequena como a terra, passou mais facilmente para um domínio mais alargado. As “morgadinhas dos Canaviais” açorianas conviviam amigavelmente com as criadas, ensinavam-lhes coisas de casa e cozinha. Entre um e outro extremo, a cozinha burguesa. Essencialmente, é esta cozinha que eu herdei, mas também com grande experiência familiar da genuína cozinha popular, depois acrescentada por muito trabalho, em jovem, de recolha em casas populares. São as raízes para este exercício de “cozinha elaborada/erudita” de inspiração açoriana.

As receitas foram concebidas e testadas para 4 pessoas, mas adaptáveis às condições da cozinha de restaurante, em maior escala. A razão desta pequena dimensão é óbvia, porque sou amador sem acesso aos recursos de uma cozinha profissional, embora possuindo apetrechos e instrumentos pouco usuais; mas também porque quis demonstrar que, com uma ou outra exceção, as receitas estão ao alcance de um cozinheiro amador, mas com boa técnica, e sem dispor de equipamentos sofisticados. Propositadamente, não inclui nada que necessite dos meus apetrechos mais esquisitos, máquina de selar a vácuo, banho de temperatura controlada, sifão, maçarico, cozedora a vapor, “crock pot”, espremedor de massa, defumador, vaporizador, fiambreira, etc. Em alguns casos, direi como compensar isso. Em geral, recomendo apenas um bom forno eléctrico programável, os utensílios normais de cozinha, um bom jogo de facas (essencial!) e, também essencial, um termómetro com agulha de espetar a carne, para assados e outro para altas temperaturas, assim como um termómetro para pontos de açúcar. Também uma boa mandolina.

Veja-se também que muitas das receitas, por isso não fotografadas, ao contrário da moda, não se preocupam com a apresentação. Pensei os pratos, como os descrevo, para um restaurante médio mas de boa qualidade, a atrair turistas e gente da terra que gosta de comer bem, mas que não vão garantir a sustentabilidade económica de um restaurante estrelado, se tiverem que pagar exorbitâncias de requintes que não proponho neste livro. Quem os tiver e for chefe dotado e credenciado, muito bem. Da mesma forma, não sugiro a louça adequada. Que cada um vá pelo seu gosto. 

Mais importante a ter em conta, é que servir bem à mesa de amigos ou de família é muito diferente de servir num bom restaurante. Com excepção das entradas, gosto de servir à mesa grande, na velha travessa, mesmo que com coisas acessórias, para guarnições e molhos. Servir a amigos pratos em estilo de empratamento de restaurante 3* é pretensioso e põe os amigos em situação difícil quando nos quiserem retribuir o jantar.

A lista pode parecer desequilibrada em variedade e número de receitas de cada secção, mas permite adaptar à época e variar a ementa. Nas condições realistas da restauração das ilhas principais, S. Miguel e Terceira, proporia uma ementa de duas sopas bem distintas, uma entrada de misto de amostras de cozinha regional e mais cinco ou seis entradas de estilo mais moderno (já há muita gente de comer ligeiro que faz jantar só de entradas), um prato de ovos, dois de massas, seis de peixe e outros tantos de carnes e aves, além dos mariscos. Também como agora se usa cada vez mais no continente, um menu de almoço simples e barato. Como disse atrás, em época de turismo, uma ementa paralela de cozinha regional, mais praticamente uma degustação em lista fixa.

Uma ideia enriquecedora, mas cara, é a de acompanhar cada prato “elaborado” com uma minidose do prato tradicional genuíno em que a receita foi inspirada. Neste caso, deve-se mostrar – e fazer notar ao consumidor exigente e sabedor – como a técnica consegue compensar, sem alteração dos ingredientes, alguma rusticidade e peso da cozinha tradicional. Nunca vi isto em muitos grandes restaurantes estrangeiros que conheço de “reconstrução” da cozinha tradicional.

Incluo também um capítulo de petiscos, para casas especializadas nesse tipo de cozinha – e que rica ela é nos Açores! – ou então para balcão anexo a um restaurante convencional. Mas também, minha experiência muito bem sucedida, para jantares de amigos — principalmente estrangeiros – com base numa boa variedade, diversificada com critério gastronómico e geográfico.

Repare-se que há receitas que são “sinfónicas”, fazendo ouvir numa só peça os sabores açorianos, relativamente fortes e contrastantes, desde o rústico da cebolada e malagueta ao requinte de algumas especiarias. Outras são música de câmara, suave e subtil, não mais do que dois ou três sabores, em contraponto. Caberá ao chefe explicar isto aos seus clientes e sugerir-lhes a escolha, uma coisa ou outra, ou, melhor, uma coisa e outra, por exemplo em degustações com número de peças suficientes para um programa variado de concerto.

E a composição do prato? Nos restaurantes, já vem da copa, em prato individual, mesmo assim com diferença de nível visual entre um restaurante de alta cozinha e um restaurante bom mas menos pretensioso. Há tempos, na Pousada de Palmela, dizia-me um velho empregado de mesa que era agora simples transportador de pratos, que já sentia saudades de arranjar um linguado em frente do cliente.

Em casa, num jantar de amigos, com eventual excepção das entradas (eu sirvo-as por vezes já empratadas), julgo que é snob servir os pratos vindos da cozinha. Os bons tempos da travessa ainda perduram. Assim, vou tentar descrever as minhas receitas de forma a que o leitor perceba facilmente como as servir, consoante os casos.

Em resumo:

a) As receitas deste livro foram concebidas como receitas típicas de um restaurante de 1ª classe, com um jantar de cerca de 30-40 € por pessoa (sem vinho), com serviço esmerado Eventualmente, um menu mais simples e mais barato para o almoço. Será um restaurante para uma clientela exigente, local ou de visita. Os pratos são descritos a um nível básico de qualidade, ficando para os chefes o seu aperfeiçoamento no que respeita a toques finais de qualidade e decoração.

b) No entanto, as receitas em versão simplificada e mais barata, num espaço despretensioso e para clientes com apresentação mais informal, permitem uma selecção de ementas e de menus de degustação com qualidade e genuinidade de cozinha regional, de nível médio-alto, a atrair muito a clientela residente.

c) Pode-se dar ao cliente a escolha entre dois menus de degustação: de apresentação da cozinha tradicional, mais para visitantes; e de cozinha elaborada, mais para residentes ou para visitantes que já conhecem bem a cozinha tradicional açoriana.

d) Quase todas as receitas, eventualmente com alguma explicação técnica, se prestam ao seu uso doméstico, em casas em que se gosta de bem comer e de bem receber os amigos. Neste caso, dispensa-se emparamentos elaborados.

e) Há uma larga oferta de receitas que permite a sua utilização em eventos, festas, refeições em pé, “catering”. Também petisqueiras, hoje tão na moda (receita de sobrevivência em tempos de crise) e, por exemplo, bem agradáveis nos belos espaços à beira-mar das minhas ilhas.

f) Há uma secção própria, nas notas técnicas seguintes, para acompanhamentos e toques de qualidade na guarnição e no empratamento. Isto deixa o leitor mais livre e, em cozinha caseira, muitas das sugestões são dispensáveis, em favor de um acompanhamento mais simples.

Muitas vezes indicarei dois níveis: 1 – receitas familiares de qualidade, em compromisso entre a pressão da vida diária e o gosto de bem comer; 2 – receitas para uso doméstico, principalmente em refeições para convidados, ou para restaurantes de qualidade mas sem pretensões de cozinha de autor (da conceção até à apresentação). 3 – receitas indicativas para reelaboração personalizada por cozinheiros de restaurantes que se querem destacar com qualidade e originalidade.