A Declaração de Great Barrington

Passou despercebido à comunicação social um acontecimento de grande relevo e merecedor de discussão científica, a publicação da Declaração de Great Barrington, em 4 de outubro, elaborada por três eminentes epidemiologistas, Martin Kulldorff da U. de Harvard, Sunetra Gupta da U. de Oxford e Jay Bhattacharya da U. de Stanford.

No essencial, a declaração considera como inaceitáveis os custos sociais e para a saúde pública da manutenção dos confinamentos (“lockdowns”), mesmo que atenuados e propõe uma estratégia alternativa. “A abordagem mais compassiva que equilibra os riscos e benefícios de alcançar a imunidade coletiva é permitir que aqueles que estão sob risco mínimo de morte vivam normalmente as suas vidas para se construir a imunidade ao vírus por meio de infecção natural, protegendo melhor aqueles que estão em níveis mais elevados de risco. Chamamos isso de Proteção Focada.

A declaração foi logo co-subscrita por mais 332 epidemiologistas, virologistas e infeciologistas, salientando-se, como conhecida do nosso grande público Gabriela Gomes, professora da U. de University of Strathclyde. É uma posição congruente com as simulações que tem feito com o pressuposto de haver heterogeneidade na suscetibilidade à infeção e, daí, a possibilidade de um limiar relativamente baixo de imunidade de grupo.

Posta à subscrição pública, a declaração conta com o apoio de cerca de 9000 epidemiologistas e virologistas de todo o mundo e 24000 médicos, para além de mais de 400 milhares de cidadãos “concerned” que, neste caso não vou valorizar, pretendendo colocar-me numa posição estritamente científica. nenhuma falta modéstia, de humilde virologista português, me levaria a não subscrever. Deve-se antes a ter muitas reservas científicas a esta estratégia, como explico neste artigo.

Os custos do confinamento

Este é o ponto de partida dos proponentes e é aceite por quase toda a gente, mesmo os que não viram outra alternativa ao confinamento. Os custos sociais e económicos já são bem visíveis e ainda quase certamente se virão a agravar quando o fim das medidas sociais acarretar uma onda de desemprego. Não há hoje nenhum político que não reconheça que é um esforço insustentável a prazo – e o prazo é condicionado pela dúvida sobre a disponibilidade e a eficácia de uma vacina. E todos dizem que os seus países não voltarão ao confinamento, embora em alguns casos, como em Espanha, os confinamentos locais, no seu conjunto, já estão a caminho de um confinamento geral.

A proteção dos residentes nos lares transformou o seu merecido repouso num pesadelo, agravou-lhes doenças e causou grandes perturbações psíquicas. No outro extremo, o isolamento das crianças – hoje já considerado como exagerado – prejudicou a aprendizagem, agravou as assimetrias no acesso efetivo à educação e lesou o seu desenvolvimento psíquico e social. Em geral, toda a saúde mental se ressentiu e subiu significativamente a taxa de suicídio, bem como a de problemas psicológicos familiares. A taxa de vacinação também sofreu uma queda assinalável.

Em épocas de pânico por pandemia, tende-se a fazer dela a única questão de saúde pública, que, de facto, não pode deixar de ser vista na globalidade. A comunicação social tem nisto a maior das responsabilidades. Por toda a parte, o excesso de mortalidade esperada ultrapassou significativamente a mortalidade por covid, por encerramento de facto de serviços de saúde, adiamento de cirurgias e, por parte das pessoas, o medo de irem aos hospitais e centros de saúde. Mais se verá, daqui a poucos anos, com as repercussões na morbilidade grave e na mortalidade da falta de diagnóstico atempado de cancros, diabetes e doenças cardiovasculares, por exemplo.

O confinamento foi também uma estratégia socialmente injusta. Quadros, gestores, trabalhadores intelectuais e administrativos puderam ficar em casa, em teletrabalho, mas não os operários, trabalhadores manuais e de serviços essenciais. Sabemos bem como, logo que houve algum alívio, foram eles, e as suas comunidades mais pobres, nomeadamente de emigrantes, os que, tendo de recorrer a transportes e vivendo em zonas densamente habitadas, foram alvo preferencial da infeção O mesmo à escala mundial, em que milhões de pessoas de países menos desenvolvidos a necessitarem de ganhar o pão quotidiano, não se puderam dar ao luxo dos países ricos autoconfinados.

Mais colateralmente, não se pode esquecer todavia que a psicologia coletiva alimentada pelo confinamento e pelo seu clima pode deixar marcas importantes na cidadania e na saúde da democracia. O medo nunca é um meio de progresso dos povos e das pessoas e, neste caso, embora apenas pontualmente (pelo menos de forma flagrante) serviu tanto o autoritarismo de governos como o populismo fascizante. Mais, um medio egoísta, alimento do individualismo que cada vez mais grassa na fase atual das nossas sociedades neoliberais. As pessoas de 40 ou 50 anos que vemos de máscara na rua, a olhar de soslaio para qualquer possível infetado, estão com medo de transmitirem eventualmente a infeção, nomeadamente aos idosos, ou têm principalmente medo de contraírem elas próprias uma doença que, no seu caso, é relativamente inofensiva, a nível individual?

A opinião geral, o mantra assimilado por quase toda a gente, é de que o confinamento não tinha outra alternativa. É coisa quase dogmática, que merece dissecção. É certo que pouco se sabia cientificamente sobre este novo vírus e que teve de se atuar por analogia ou por excesso de precaução, porque cuidado e água benta… Mas nem tudo se explica por isto.

A estratégia de confinamento geral foi aplicada pela segunda vez em toda a história da saúde pública e da epidemiologia. No caso chinês, teve em conta a experiência anterior com o SARS, em 2002-2003, em que foi aplicada com sucesso pela primeira vez. Como se tratava agora, novamente, de um coronavírus, afirmou-se logo que toda a experiência das pandemias de gripe era inaplicável. Afinal, veio a provar-se o contrário. A epidemia de SARS foi facilmente controlada porque não havia infetados assintomáticos e só os doentes, facilmente identificáveis e isoláveis, é que transmitiam a doença. Agora, como na gripe, há grande transmissão, muito provavelmente a mais frequente, por pre-sintomáticos ou assintomáticos, o vírus é muito mais transmissível e também por aerossóis.

A estratégia de confinamento não foi a única, inicialmente. A Coreia do Sul e outros países asiáticos basearam-se principalmente numa ação tradicional de “track and trace”, com identificação precoce e isolamento dos infetados e quarentena rigorosa dos seus contactos, não apenas os contactos muito próximos. Foi também o que se passou, na Europa, na Islândia (atenda-se, claro, a que é uma ilha).

Porque não se fez o mesmo na Europa? Primeiro, porque a explosão da epidemia na Itália, com as imagens em direto a alimentar o terror, fazendo lembrar como também a guerra hoje também é coisa em que participamos a milhares de quilómetros frente ao televisor, criou uma enorme pressão sobre os governos, sem tempo e tranquilidade para promoverem o estudo sério, embora claro que acelerado, de outras alternativas que não a chinesa reproduzida logo pela Itália. e reproduzida por falta de outros meios. Logo a seguir, o medo agravou-se por razões ditas científicas, com as previsões catastróficas do Imperial College, embora contrariadas por outras simulações de modelação da epidemia.

A Europa, com exceção da Alemanha, passou largas semanas a menosprezar a estratégia de vigilância, alegando falta de testes. É incompreensível, sabendo-se que a sequência completa do genoma viral já era conhecida há dois meses, permitindo á excelente indústria biotecnológica europeia o fabrico de grandes quantidades de testes, como veio a acontecer com facilidade quando aumentou a procura. O que nunca se quiz dizer é que, mesmo com testes suficientes, não havia um sistema eficaz de rastreio e de dimensão mínima, com o desmantelamento dos serviços de saúde depois da crise de 2011 e, muito particularmente, dos sistemas de saúde pública.

Provavelmente, nunca se saberá se o confinamento foi uma estratégia ajustada. É inegável que, numa primeira vaga, conteve a pandemia, mas também é inegável que um peso de 1 kg mata uma mosca. E não é instrutivo falar-se do confinamento em geral, antes do impacto de cada medida em particular. sabemos hoje, por exemplo, que o encerramento das escolas foi um exagero sem fundamento científico.

A letalidade

Um dos principais argumentos da declaração de Great Barrington é a baixa letalidade e, portanto, o risco reduzido para a população com exceção dos vulneráveis. De facto, a taxa de letalidade é hoje muito mais baixa do que no início da pandemia. primeiro, sendo uma taxa, diminui com o aumento do denominador, o que se deve à testagem. Por outro lado, felizmente, melhoraram consideravelmente os recursos terapêuticos. Por exemplo, em Portugal, a taxa era de 3,9% em abril e é agora de 0,9% (dados não acumulados). Se estimarmos o número total de infetados não detetados, pode-se afirmar que a taxa final de letalidade andará por volta dos 0,3%. Em contrapartida, a letalidade entre os maiores de 70 anos é cerca de 1000 vezes superior. assim, à primeira vista, parece que a declaração tem um bom argumento. veremos que não, a meu ver. Ou, pelo menos, com. muitas cautelas.

Imunidade de grupo

À medida que a população vai sendo infetada e desenvolve imunidade para o vírus, este encontra menos pessoas suscetíveis e tem menor probabilidade de se propagar. Chega a um ponto, dependente da capacidade de transmissão do vírus, em que ele já não tem condições para se manter na comunidade e a epidemia extingue-se. É o que se designa por imunidade de grupo e o seu limiar é tanto maior quanto mais transmissível for a infeção (o que se mede pelo R0). No entanto, isto só se calcula eficazmente quando, como no caso do sarampo, a população é homogeneamente suscetível, a infeção causa praticamente sempre imunidade e ela é duradoura.

É isto que ainda não se conhece suficientemente no caso do SARS-CoV-2 e que limita muito a validade de uma estratégia baseada na imunidade de grupo, como pretende a declaração e como já tinha sido defendido no Reino Unido, no início da pandemia.

Indiretamente, pode-se presumir com fundamentos que toda a infeção com SARS-CoV-2 causa imunidade de algum tipo, pelo simples facto de serem raríssimos os casos de reinfeção. No entanto, os resultados laboratoriais não são claros, variando muito a resposta de anticorpos neutralizantes – os únicos que interessam, por impedirem a ligação do vírus às células – bem como o tempo em que perduram no organismo.

Por outro lado, mesmo sem anticorpos, há a possibilidade de eles serem produzidos na reinfeção, por ativação das chamadas células de memória, bem como de haver a outra forma de imunidade, a celular, mediada por linfocitos. Há bastantes trabalhos com resultados a suportar estas hipóteses. Também não está ainda excluído que haja alguma imunidade cruzada conferida por infeção anterior com coronavírus endémicos, causadores de infeções respiratórias benignas sazonais.

Se esta incerteza já dificulta a esperança no controlo da infeção por imunidade de grupo, acresce que, pela comparação que referi com o sarampo, os parâmetros dessa imunidade d e grupo são muito difíceis de estimar. isto é fundamental para a definição d euma estratégia, porque, em termos práticos de tempo de espera por uma vacina ou de tempo de vigência e meios necessários para as medidas de proteção dos vulneráveis, não é indiferente que a imunidade de grupo possa ser adquirida num mês ou num ano.

Sobre isto, principalmente sobre o limiar de imunidade de grupo, só se pode especular. Se calculado apenas pelo Rt, será, como se tem dito, entre 60 e 70%. Pensando só em anticorpos, há uma seroprevalência de cerca de 5%, em média. Não estou a fazer agora os cálculos, mas mesmo com a infeção em roda livre, serão provavelmente necessários muitos meses para atingir esse limiar.

No entanto, é possível que o limiar seja mais baixo. Mesmo sem confinamento, o distanciamento social funciona como imunidade, retirando ao vírus o seu alimento de pessoas suscetíveis. Não expostos é como se fossem não suscetíveis. É o que provavelmente se está a ver na Suécia (e agora também nos outros escandinavos) em que medidas muito moderadas estão a permitir o controlo da epidemia, embora com um pequeno aumento recente mas longe da segunda vaga dos outros países. Por isto, também os autores da declaração têm razão quando dizem que o confinamento também foi prejudicial por ter reduzido a aquisição de imunidade.

O limiar da imunidade de grupo também pode ser mais baixo, como defende Gabriela Gomes, se houver variação populacional na suscetibilidade à infeção. No entanto, isto é só uma premissa do seu modelo, não substanciada em dados empíricos. Os autores da declaração também defendem que se mantenham medidas gerais para diminuir o limiar, como a lavagem das mãos ou o ficar em casa em caso de doença, mas não fazem uma estimativa do impacto dessas medidas gerais de higiene.

A proteção dos vulneráveis

Até aqui, manifestei incertezas, agora tenho uma dúvida mais do que razoável. Uma estratégia que se baseia em aumento considerável da infeção e, simultaneamente, na proteção dos vulneráveis, é obviamente perigosa. Claro que não posso dizer que é impossível, mas tudo indica que é muito difícil. Por simples proporcionalidade, mantendo-se a taxa de letalidade, o aumento do número de infeções acarreta, nas mesmas condições, maior número de mortes. Isto só não aconteceria se as medidas de proteção dos vulneráveis pudessem ser proporcionalmente reforçadas, mesmo considerando, como fazem os autores, que o caminho para a imunidade de grupo também vai protegendo progressivamente os vulneráveis.

O que me parece perigoso é olhar-se só para os lares. É certo que é entre os seus residentes que se verifica quase metade das mortes, mas ficam outros tantos idosos e de outros grupos de risco a viver na comunidade e relativamente mais expostos ao contágio por aqueles a quem se deixasse uma vida normal. Porque, como diz a declaração, “Aos que não são vulneráveis deve-se permitir imediatamente retomar a sua vida normal.” Com uma vida normal dos seus familiares, por exemplo, que proteção pode ser dada aos idosos no domicílio normal?

Mesmo nos lares, o problema tem-se revelado difícil, em toda a parte. Basta atentar no caso dramático da Suécia, na primeira fase – embora também seja importante estudar-se como resolveram tão bem o problema, o que não tem interessado a ninguém. Ainda por cima, sabe-se bem hoje que a introdução do vírus nos lares é muito mais devida ao pessoal do que às visitas, o que, por razões económicas, de disponibilidade de mão-de-obra e de infraestruturas, é particularmente difícil de se conseguir.

Sendo ponto tão importante da sua estratégia, que de outro modo seria aventureira, este assunto mereceria melhor tratamento, não se limitando a uma frase indiscutível mas porventura insuficiente: “o pessoal dos lares de idosos deve ter imunidade adquirida {JVC – como garantir, na incerteza que há quanto à imunidade?] e os lares devem realizar testes de PCR frequentes aos outros funcionários e a todos os visitantes. Deve ser minimizada a rotação da equipa”.

Finalmente, a declaração é omissa em relação ao que julgo ser um objetivo obrigatório d e qualquer estratégia: como garantir que não sejam ultrapassadas as capacidades de internamento hospitalar e meios terapêuticos, mantendo simultaneamente a capacidade do sistema de saúde para lidar satisfatoriamente com todas as outras patologias.

Em conclusão. Partilho com todos os subscritores as dúvidas e críticas em relação aos confinamentos extremos. Tenho mesmo muitas dúvidas em relação a algum exagero das medidas atuais, enquanto o aumento do número de casos não se traduzir significativamente em mortes e internamentos (infelizmente, começo a ver alguns sinais disto, mas ainda é cedo). Mas disto à estratégia da declaração, pelo menos sem a ver muito melhor definida, vai um grande passo, que não dou.

E, em vez da discussão por três pessoas, por muito eminentes que sejam – e são – para quando uma boa reunião internacional, de especialistas de preferência independentes, para propostas de estratégias cientificamente fundamentadas e tendo como base o estudo comparativo de experiências já estabelecidas, tanto com sucesso como com fracasso?