Unidade de esquerda (II)

João Vasconcelos Costa

No artigo anterior, defendi o estabelecimento entre o BE e o PCP (eventualmente o PEV, uma vez conhecido o seu verdadeiro peso eleitoral) de uma plataforma de cooperação política, mesmo uma coligação eleitoral, liberta, à partida, de compromissos com o PS.

Parti de alguns factos relevantes. Em primeiro lugar, a chamada “geringonça” ou já cumpriu um dos objetivos essenciais, isto é, afastar a direita do poder; ou já não consegue ir mais longe, por recusa do governo e do PS, na recuperação das perdas causadas pela austeridade.

Em segundo lugar, se é certo que, de momento, a actual solução de governo e especificamente a política financeira corporizada poir Centeno parecem gozar de apoio maioritário, não é nada de excluir que ela conduza a nova crise, se conjugada com o fim das condições externas favoráveis. Então, o povo pode rapidamente compreender para onde foi conduzido e culpabilizar igualmente a esquerda que, embora se manifestando contra, não teve meios de fazer infletir essa política. Isto é agravado pela inevitável agudização da contradição entre a esquerda e o PS em relação ao seguimento da ortodoxia neo e social-liberal europeia.

Também há o risco (digo mesmo risco) de uma maioria absoluta do PS em 2019.Ao contrário de algumas afirmações de António Costa, estou convencido de que o PS prescindiria do apoio da esquerda, até para apaziguar a forte ala direitista que sempre viu com desagrado a atual solução governativa. Pela mesma razão, nem é de excluir que, sem maioria absoluta, o PS governe limianamente à Guterres, oscilando caso a caso na procura de apoio à esquerda ou à direita.

Perante tudo isto, penso que a esquerda devia procurar uma solução dinamizadora, potencializadora, motivadora do eleitorado de esquerda (perdoem-se-me as rimas…).

Para além deste indiscutível valor sócio-político e de impacto nas classes populares ou nas camadas não privilegiadas, em parte hoje apoiante do PS, há ainda o resultado prático de uma coligação eleitoral de partidos à volta dos 10% de votos, passando para o dobro, beneficiar largamente da distorção do método de Hondt.

No entanto não advogo uma mera coligação, que, segundo a lei, se desfaz com as eleições e pode permitir a total independência dos partidos coligados. Defendo um movimento unitário com base permanente, programática e de ação, e mais amplo do que a mera colaboração dos dois partidos de esquerda (lembre-se que, no artigo anterior, justifiquei o uso restrito do termo “esquerda”). Um processo político com grande dinâmica de base, aglutinando muita gente sem partido e dinamizando conjuntamente novas movimentações sociais. A acender uma luz no túnel apertado em que viaja hoje a esquerda.

Dir-me-ão, certamente, que estou a ser irrealista. É verdade que vejo muitas dificuldades, que tentarei discutir, mas em todo o caso a irrealidade só se demonstra se a prática a comprovar, não a opinião a priori.

O aspeto fundamental é o da proximidade ou distância entre os objetivos estratégicos e as vias programáticas. A leitura dos textos e dos atos práticos mostra uma grande sintonia, no esencial, entre o BE e o PCP, em termos objetivos (adiante abordaremos os subjetivos). Ao contrário do PS, ambos rejeitam o sistema capitalista e, de uma forma ou outra, o querem substituir. Ambos são defensores fortes do controlo público da economia, da regulação dos mercados, do papel social da banca, da propriedade pública dos recursos naturais e estratégicos, etc.

Também, desde há alguns anos, o BE vem assumindo em relação à União Europeia e ao euro posições mais radicais, nisso se aproximando do PCP, com o qual já tinha boa identidade de opinião no que toca à reestruturação da dúvida. Também parece esbater-se uma área de divergência, a atitude empenhada do BE em relação ao Partido da Esquerda Europeia. Restam divergências marcadas em relação a alguns aspetos de política internacional, com opiniões diferentes em relação aos países que se dizem socialistas e, caso mais importante, em relação a Angola, que o BE quase que hostiliza.

Mais importante ainda é a prática. Mesmo que verifiquemos divergências ideológicas e estratégicas, a situação objetiva, em fase ofensiva do capitalismo, aproxima muito os dois partidos naquilo que é atualmente o seu eixo de ação, isto é a defesa do estado social de bem estar e dos interesses das classes trabalhadoras, dos reformados e dos desempregados.

Importante também são as complementaridades entre os dois partidos. São diversas mas articuláveis positivamente as suas representações de classe, o PCP em relação ao proletariado (nos termos de hoje, que não posso agora discutir aqui) e parte do funcionalismo, o BE principalmente em relação a parte das classes médias urbanas e de camadas de educação superior e jovem. O PCP forte no terreno sindical e autárquico, o BE com considerável influência em setores minoritários, imigrantes, comunidades diversas, com maior atenção às questões identitárias e de inclusão. Também discursos de estilo bem diferentes, a tocarem em grupos sociais também diferentes.

Provavelmente me apontarão como principais as dificuldades subjetivas de relacionamento. Não as esqueço, mas creio que nem um nem outro partido são hoje o que eram na altura da criação do BE, criação porventura com contornos mais anti-PCP que anti-PS. O PCP estava acantonado à defesa, ainda se protegendo dos estilhaços da queda do mundo do “socialismo real”. O BE deixou de ser, em grande parte, a simples junção dos seus três partidos fundadores.

Ao longo destes anos, sempre houve picardias entre os dois partidos. É inevitável, na vida partidária e na mediatização da política, mas não foram frequentes as vezes em que isso tenha causado danos a uma ação comum muito frequente. Por outro lado, se arqui-inimigos como trotsquistas e estalinistas-maoistas se puderam entender, e ambos com inimigo comum, a Política XXI de inspiração marxista-leninista, toda esta tralha subjetivista, em tempos de cólera como os de hoje, certamente poderá ser ultrapassada com boa vontade, abertura e espírito de unidade.

Outra dificuldade possível: ao contrário do que disse sobre a potencialização de resultados eleitorais em virtude da motivação por um novo élan de esquerda, também é possível que uma coligação do BE e do PCP afaste votos até agora de um e outro. É possível que esse abandono afete mais o eleitorado do BE, mais oscilante (como demonstra a sua evolução eleitoral) e menos disciplinado. Aconteceu algo como isso em Espanha, nas últimas eleições legislaturas, em que Podemos e Esquerda Unida formaram uma coligação. De qualquer forma, sem indicações objetivas, é matéria de especulação. Haja sondagens credíveis.

Voltando ao caso espanhol, a sua limitação é ser um acordo de cúpula com escassa ação conjunta a nível de bases ou de promoção de movimentações sociais. mesmo o programa eleitoral foi muito tímido. É certo que asituação difere consideravelmente da portuguesa por se imbricarem de forma complexa as relações interpartidárias a nível nacional e a nível autonómico. Por outro lado, há em Espanha a urgência de uma frente para barrar a ação protofascista do PP e direitista neoliberal do Cs, enquanto que, em Portugal, o provável vencedor das próximas eleições não será a direita pura e dura.

Mesmo assim, vale a pena ler o recente documento “Unidad para transformar y ganar“, da autoria de Pablo Iglesias e Alberto Garzón, que aprofunda a cooperação entre os dois partidos. Vale também a pena refletir sobre o que diz Anguita acerca da coligação de esquerda espanhola e da convergência na ação, das instituições até à rua:

“La organización no es sólo una lista de camaradas sino la planificación del trabajo en la calle, el programa, un proyecto, la lucha de ideas, predicar con el ejemplo y buscar aliados. No somos más puros que nadie. Somos herederos de una tradición que está muy clara: los proletarios y los comunistas tienen claro que en la lucha para conseguir la emancipación no desprecian a los demás, somos como los demás, pero no olvidamos el objetivo final. Cuando se lee el manifiesto comunista, se ve que no sobra nadie, ninguna sigla, ningún pensamiento. Todos los que estén contra el capitalismo son los míos, me da igual si levantan o no el puño.”

No mesmo sentido, concluo com algumas sugestões para uma convergência entre os partidos da esquerda consequente e das organizações e movimentos populares em que têm participação.

  • Não se deve limitar a um acordo de cúpula.
  • Deve alicerçar-se em trabalho regular de debate e abertura de frentes de ação entre os organismos de base de cada partido, ao mesmo nível (localidade, local de trabalho, grupos de ação, grupos profissionais, coletivos diversos).
  • Deve haver um compromisso mútuo para trabalho comum na mobilização e organização de movimentos sociais.
  • No campo parlamentar, e sem prejuízo da autonomia de cada partido e, consequentemente, possibilidade de rescisão do acordo, estabelecimento claro de matérias em que deve haver posição comum ou, pelo menos, consultas mútuas.
  • Deve haver transparência dos processos unitários, com fomento da discussão crítica pelos simpatizantes da convergência não militantes de um e outro partido.
  • “Last but not the least”, um programa coerente, mobilizador e elaborado com ampla participação de todos os interessados no processo.

14.5.2018