Noutra comunicação a este Forum (“O MODELO ALTERNATIVO DO DESENVOLVIMENTO”) abordei a dinâmica e consequências sociais, económicas e culturais das mutações sofridas pelas sociedades industriais. Seria estranho que essas mutações não tivessem tido também efeitos sobre o quadro político e as suas formações tradicionais, sobre as ideologias, os programas, a organização e funcionamento dos partidos.
Sinal dessas mudanças é a importância das chamadas intervenções políticas alternativas e, nomeadamente, dos partidos alternativos. A noção de partido alternativo é todavia ainda ambígua e imprecisa. Esses partidos definem-se ainda principalmente pela negativa, em oposição aos partidos tradicionais. Podemos tentar alinhar algumas possíveis caracterizações parcelares da “alternatividade”: a) ênfase na democracia participada, na vida comunitária, na discussão e tratamento dos problemas locais; b) empenho nos movimentos sociais; c) privilégio a um largo e difuso campo de acções de resposta a “novos problemas” (releve-se a imprecisão do termo), tais como a defesa de minorias, do ambiente, a luta anti-militarista, ou algumas formas de lutas feministas; d) maior flexibilidade na abordagem dos problemas políticos, mais liberta de rigidez e preconceitos ideológicos; e) características organizativas de flexibilidade, com recusa de demasiada hierarquização. Algumas destas caracterizações só valem se entendidas por um prisma diferente do habitual, o que introduz um outro factor de imprecisão. É inegável, por exemplo, que os partidos convencionais têm intervindo em acções e lutas “transversais” do tipo que referimos. O mesmo se passa, com muitos partidos, com as preocupações ecológicas. O que deve demarcar a diferença é a articulação coerente dessas características com as restantes.
Essa necessidade de globalidade e coerência, particularmente sentida quando a acção política tem influência a nível de Estado, continua a exigir um quadro ideológico de referência. É certo que um número crescente de problemas, que se colocam à escala planetária e transversalmente aos sistemas económico-sociais – como a segurança, a paz e o desarmamento, a defesa da natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo – parecem desafiar a validade das ideologias. No entanto, as ideologias continuam a ser os quadros de referência para a análise e valorização ética das soluções políticas. É por isso significativo que a corrente partidária “verde” europeia venha a falar de uma ideologia ecologista.
A “alternatividade” não tem em si própria um objectivo histórico. É mais uma atitude ou forma de estar na política, que só faz sentido se ao serviço de um projecto político global. Da mesma forma, as abordagens vincadamente sectoriais ou parcelares, como a de uma corrente estritamente ecologista, não estão aptas a dar uma resposta coerente ao conjunto dos desafios políticos. Isto não significa que se interprete o termo ideologia no sentido da rigidez e carácter holístico das ideologias tradicionais, nem que se negue o valor das contribuições ideológicas das movimentações ou formações sectoriais. Pelo contrário, só uma ideologia “aberta”, fundamentalmente um esqueleto central de ideias e valores a preencher permanentemente com as mais variadas contribuições, é que poderá corresponder à actual fluidez histórica.
Neste sentido, consideramos como partido alternativo não apenas um partido com as características de organização e praxis acima referidas, mas também, e obrigatoriamente, um partido que seja portador de um projecto global e coerente de transformação social e de rotura com o modelo social e económico dominante.
Partido ecologista ou partido alternativo?
Por razões históricas conhecidas e até pelo carácter deste Forum, é importante referir o caso particular dos partidos ecologistas. Eles surgem, e mais notoriamente os “Verdes” alemães, como um partido diferente dos padrões habituais e com muitas características alternativas, mas é evidente que estas características são subalternas ao objectivo central de defesa do ambiente. São inicialmente um exemplo de partido alternativo que não oferece um projecto político globalizante. É certo que a evolução política dos Verdes e as suas maiores responsabilidades a nível de política de Estado conduziram a uma maior dimensão da sua perspectiva política. Mas o movimento ecologista não é homogéneo, nele coexistindo partidos, como o alemão, com perspectivas sociais avançadas, e outros, quer ocidentais quer alguns dos novos partidos verdes da Europa de leste, que têm posições conservadoras e sem preocupações sociais. A sua articulação com outros partidos alternativos, para maior dimensão e globalidade do movimento, só é assumida e claramente desejada por sectores restritos do movimento ecologista e mesmo assim subalternizando-a à primazia dos objectivos ecologistas.
Quase uma década sobre o sucesso rompante dos partidos verdes, há que perguntar se se repetem as condições para simples transposição dessa experiência. É difícil avaliar em que medida é que, para o eleitorado, os objectivos ecologistas em si, iniciais, ainda são determinantes. A crescente apropriação das preocupações ambientais por outros partidos (não se discutindo aqui a sua sinceridade), a passagem para o domínio técnico de muita da problemática ambiental, e a aculturação das preocupações ecológicas diminuem a justificação partidária ecologista. A defesa do ambiente é já largamente um valor cultural assimilado pelo menos pelos jovens (faz parte da sua formação educativa) pelo que começa a não poder ser considerada como objecto de uma intervenção política globalizante, da mesma forma como não se concebe um partido da ciência, ou do desporto. Portanto, na nossa situação concreta, é necessário decidir se se repetem as experiências desde o seu ponto inicial ou se se tem em conta e aproveita o percurso já efectuado pelos outros. Neste último caso, o que estaria em causa em Portugal era a criação de um partido alternativo em que a perspectiva ecologista se insere harmoniosa e coerentemente numa concepção política global, e que só por simplificação ou por razões discutíveis de circunstância se poderia chamar de partido ecologista.
ALTERNATIVIDADE E RENOVAÇÃO DA ESQUERDA
Um partido alternativo não se situa facilmente em relação aos outros porque o seu nível, o seu plano, é diferente. Isto não significa, porém, que não tenha que se situar em relação à grande fronteira que continua a separar o que, por comodidade de expressão, continuamos a designar como esquerda e direita. Não interessa agora, nem sempre é fácil (veja-se a actual terminologia a leste) identificar no concreto, em relação a cada partido, o que é esquerda.
Entendamo-la sob a noção central e abrangente, centenária já na história europeia, de que é de Esquerda um largo conjunto de concepções e posições políticas marcadas por uma atitude de optimismo histórico e de racionalismo, uma crença no sentido da História, valores de humanismo, igualitarismo e solidariedade, a luta contra o autoritarismo e a defesa das liberdades, o compromisso fecundo entre o estímulo ao desenvolvimento pessoal, individual e o sentido do colectivo e da solidariedade social. E, no plano das concepções económicas, o respeito pela iniciativa e pela propriedade privadas, mas com a recusa do absolutismo dos mercados, da anulação do papel do Estado na supervisão, regulação e investimento para o crescimento económico e combate ao desemprego, da especulação financeira.
É no quadro desta Esquerda, independentemente do ajustamento à contemporaneidade das suas formulações precisas e tradicionais, que faz sentido a renovação política trazida pela “alternatividade”.
A Esquerda está reconhecidamente em crise, mas uma crise de renovação, não uma crise agónica final. A acção prática das forças de Esquerda, incluindo as forças do socialismo democrático, e a sua capacidade de despertar a adesão e mobilização popular são crescentemente limitadas pela debilidade da elaboração de ideias claramente identificadas com a Esquerda e geradoras de novas bandeiras de luta. A abordagem técnica, aparentemente “desideologizada”, de muitas áreas sectoriais antes políticas (a saúde pública, o urbanismo e o ordenamento territorial, a defesa do ambiente, etc) parece esvaziar o político e mais faz ressentir a necessidade de novas ideias globalizantes.
As pessoas sentem que a acção da Esquerda se limita em geral a uma perspectiva superficialmente correctiva do actual sistema económico e social e que não dá resposta global e coerente a todo um novo quadro de questões com que se confrontam no quotidiano do seu actual modo de vida. A renovação da Esquerda não deve, todavia, renegar o contributo da Esquerda tradicional. Deve afirmar o esforço de aproximação e diálogo, de onde emerjam valores centrais dos projectos socialistas que, sem apagamento artificial de diferenças, permitam a construção de uma “casa comum da Esquerda”.
Na vastidão do horizonte da mudança, as ideias e aspirações que darão corpo teórico a um novo projecto de Esquerda, a um projecto de novo socialismo, não virão apenas das formações políticas . Virão também, e cada vez mais, dos mais variados campos de análise da sociedade actual, com realce para as ciências sociais, e da convergência das múltiplas lutas e intervenções sectoriais que questionam a sociedade actual, no domínio cultural, dos direitos humanos, da defesa do ambiente, da defesa da paz, do património, da luta por interesses comunitários e regionais, etc.
Em coerência com a actual situação histórica, a renovação da Esquerda, com a criação de novos “partidos alternativos”, deve caracterizar–se fundamentalmente por:
a) uma atitude de abertura ao recolocar de todas as grandes questões, como por exemplo a análise crítica do industrialismo (independentemente do sistema socio-económico), a compatibilização das aspirações individuais e do progresso social, as relações entre riqueza material e qualidade de vida, o conceito de igualdade individual na actual complexidade social, a própria noção de progresso;
b) uma maior dimensão sociológica e psicológica na abordagem dos problemas políticos, um discurso centrado no quotidiano e na sociedade civil e menos na gestão do Estado, uma atitude mais isenta de rigidez e preconceitos ideológicos;
c) a redefinição das prioridades na acção política – ataque ao modelo de sociedade e de desenvolvimento, mais que ao sistema económico-social; defesa de uma solidariedade social mais ampla que o tradicional confronto de classes; limitação do peso do Estado, mas sem excessos liberalistas, perversores da igualdade de oportunidades e da solidariedade; maior ênfase em tudo o que respeita à concretização dos direitos de cidadania e à efectivação de uma verdadeira democracia participada.
Como nota final, e pertinente no âmbito desta abordagem genérica, transcreve–se parte da moção aprovada no último Encontro Nacional do MDP/CDE:
“[…] o Encontro Nacional do MDP/CDE, reunido em 6 de Abril de 1991:
1. Confirma como linhas centrais da acção política do MDP/CDE, e complementares entre si: o esforço de aproximação e diálogo com outros partidos de Esquerda (reconhecendo-se ao PS, nas actuais circunstâncias, um papel de interlocutor privilegiado) de onde emerjam os valores centrais que permitam a construção de uma “casa comum da Esquerda”; e a definitiva configuração do MDP/CDE como “partido alternativo” de tipo novo, um partido aberto em consonância com o novo quadro social e cultural com que se defronta a Esquerda.
2. Decide cometer à Comissão Política o encargo de elaborar para o próximo Congresso Extraordinário um projecto de Estatutos e linhas de acção do Partido de forma a que: a) O MDP/CDE, como partido, seja essencialmente o instrumento de intervenção político-eleitoral de um vasto movimento de organizações e grupos empenhados em acções de transformação social progressista. b) A acção política e o fomento de articulações dessa componente de movimento seja descentralizada ao máximo, cabendo a órgãos centrais, com larga representação das organizações aderentes, um papel essencialmente coordenador e de difusão de informação. c) Os documentos programáticos do Partido sejam reduzidos, sem prejuízo da sua clareza e rigor, a um corpo de princípios centrais de progresso social que não limite a ligação ao MDP/CDE de movimentos ou grupos mais preocupados com perspectivas ou intervenções sectoriais.”
Comunicação ao Forum Ecologista e Alternativo, 199?