João Vasconcelos Costa
Num artigo anterior, resumi e comentei um artigo de uma equipa do Imperial College, de Londres, com o estudo do impacto de várias estratégias de combate à epidemia de COVID-19. Parece que esse trabalho foi determinante para a fundamentação do plano de medidas anunciado em 20 de março pelo governo britânico.
Há dias, outra equipa do Imperial College, encabeçada por Patrick Walker, publicou em pré-impressão o artigo “The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Supression”. É um trabalho imenso de modelação, com a análise da situação epidemiológica atual e a sua evolução teórica em 202 países, regiões ou sub-regiões, incluindo Portugal.
A preocupação principal é o impacto da pandemia na saúde, tomando em conta os padrões de contacto referidos ao escalão etário e a severidade da doença. São estudados diversos cenários, de supressão e de mitigação, pressupondo-se a complementaridade de execução do máximo de testes possíveis, conseguindo-se o isolamento de todos os casos identificados laboratorialmente e dos seus contactos familiares.
O modelo utilizado é o modelo consagrado SEIR, estruturado por grupos etários. Os cenários estudados são 1. o de supressão (extinção a curto prazo da epidemia), com vários desencadeadores (“triggers”) de medidas fortes de distanciamento (redução de 75% dos contactos); ou 2. duas alternativas de mitigação: a) cenário A – distanciamento social geral da população; b) cenário B – o mesmo mais distanciamento social reforçado dos idosos. Como controlo negativo, desenha-se o cenário teórico em que não se toma qualquer medida de combate à epidemia.
Em qualquer dos cenários de mitigação, não se estabelece um parâmetro geral de redução dos contactos, o que é feito país a país, consoante as suas características demográficas, culturais e socioeconómicas. Esse cálculo país a país é feito de forma a obter-se imunidade de grupo. O distanciamento social dos idosos é fixado como uma redução adicional de 60% dos seus contactos.
É importante não confundir termos. Mitigação, neste trabalho, significa a adoção de medidas orientadas para a aquisição de imunidade de grupo, sem a preocupação de debelar a epidemia em tempo curto. É diferente de se falar em estarmos em fase de mitigação, no sentido de já não ser possível conter as cadeias de transmissão. De facto, em termos deste trabalho, as medidas em vigor em Portugal cabem no cenário de supressão, não nos de mitigação.
Supressão
A estratégia de supressão foi desdobrada em duas situações: início das medidas de supressão quando o número de mortes semanais por 100000 habitantes era de 0,2; ou quando já era de 1,6. O estudo divide as previsões pior regiões do globo mas também apresenta as totais. A previsão da dimensão total da epidemia sem qualquer medida de combate é de cerca de 7000 milhões de infetados (cerca de 90% da população mundial), com 40 milhões de mortes. No caso de as medidas de supressão serem tomadas cedo, com 0,2 mortes por semana por 100 000 habitantes, esses valores baixam para cerca de 470 milhões e 1,9 milhões, respetivamente. A redução é muito menor com as medidas mais tardias (1,6 mortes em lugar de 0,2), passando a 2,4 mil milhões e 10 milhões, respetivamente.
Mitigação
Os resultados globais para os cenários de mitigação são apresentados por regiões. Para a Europa, são os seguintes.
O número total de infetados, sem mitigação, é de cerca de 840 por 1000 habitantes, até se obter a imunidade de grupo. A mitigação por distanciamento social de toda a população, no cenário A, resulta numa redução para cerca de 540 casos por 1000, ou seja de 36%. O cenário B não altera significativamente esta redução, que é neste caso de 37%. No que respeita a hospitalizações, a necessidade de cuidados intensivos e a mortes, a redução estimada para os dois cenários de mitigação é consideravelmente maior do que a do número total de casos. No cenário de mitigação A, a redução no número de hospitalizações, de cuidados intensivos e de mortes é de, respetivamente, 46%, 51% e 52%. Ao contrário do que se previa para o número total de casos, o cenário B de mitigação tem mais efeito do que o A, com reduções de 0,49%, 0,62% e 0,68%, respetivamente.
Portugal
A modelação para o caso português está apresentada nas tabelas seguintes, no que respeita ao cenário de supressão e aos dois cenários de mitigação. Uma dificuldade prática é traduzir em medidas práticas a redução da taxa de contacto em 75%. Tanto quanto sei, não há estudos científicos dos comportamentos, circuitos, padrões de convivência intra e extra-domicílio que o permitam fazer.
As previsões para um cenário de não supressão ou mitigação e com aquisição de imunidade de grupo são de grande dimensão: quase oito milhões e meio de infetados, mais de 85000 mortes, 155 mil hospitalizações no pico da epidemia. A nossa situação ao adotar-se medidas era a de menos de 0,2 mortes por semana por 100.000 habitantes. A previsão do modelo para esta situação é de quase 700.000 casos, com 3816 mortes e 6455 hospitalizações no pico da epidemia. Repita-se: estes números não são uma previsão do que acontecerá na realidade! São o resultado de uma simulação com parâmetros que permitem a aquisição da imunidade de grupo.
Nos cenários de mitigação, e consoante diferentes valores de R0 e parametrizações da taxa de distanciamento social, o número de casos, de mortes e de hospitalizados seria sempre muito superior a da supressão, segundo o modelo, com valores da ordem de cinco vezes os do cenário de supressão e levaria ao colapso do sistema hospitalar. Repita-se que é difícil traduzir as medidas adoptadas em efeitos quantificados de redução da taxa de contacto, o que seria necessário para uma cabal análise da tabela.
Conclusões
Os autores consideram que o cenário de supressão, juntamente com os testes, é o único que permite evitar ou diminuir o grau onde colapso do sistema de saúde. Por outro lado, chamam a atenção para a necessidade de se considerar a viabilidade de sustentação dessas medidas. Também assinalam que o seu estudo só aborda os aspetos de saúde, sem quantificar os grandes impactos sociais e económicos das vias intensivas de supressão. Outra preocupação que manifestam é a dúvida sobre a capacidade de restauração dos sistemas de saúde, especialmente nos países com menos recursos, após o levantamento das medidas. Mas, em primeiro lugar das preocupações, figura o risco de uma segunda onda, tanto mais que [acrescento eu, JVC] quando começarem a aparecer os efeitos da supressão, como já se está a verificar na China e em breve na Europa, estarão em início as epidemias no hemisfério sul, a representarem novo risco para os países já saídos da primeira onda.
No cenário de supressão, que está a ser adotado pela generalidade dos países, não se adquire imunidade de grupo. Assim, as intervenções terão de ser mantidas em algum nível durante algum tempo, juntamente com altos níveis de vigilância e isolamento rápido de casos, para evitar o potencial de epidemias ressurgentes. Não é possível prever a duração desse período, que também depende do risco de importação de novos casos e, portanto, da evolução da pandemia nos países em que ela está mais atrasada. Este artigo estima, de forma forçosamente imprecisa, que a uma fase de três meses de supressão, é necessário um período de manutenção de medidas de cerca de 200 a 250 dias, ou seja de 7-8 meses.
Comentário [JVC]
A validade de um modelo só pode ser aferida posteriori, comparando com os dados reais, empíricos. É o que se mostra na tabela seguinte, para vários países.
Incluo casos bem diferentes quanto à estratégia de combate à epidemia em cada país, o que o modelo não faz, baseando-se apenas no distanciamento social. É por isto de difícil tradução para a realidade, porque as estratégias são diferentes. Mesmo seguindo-se a estratégia de “quarentena geral”, o grau a que ela é levado difere bastante de país para país.
São significativos os casos chinês e coreano. No primeiro, já se conseguiu a supressão e, no segundo, ela está praticamente sucedida. A Coreia do Sul é um caso muito instrutivo porque a supressão está ser conseguida sem o grau de distanciamento social pressuposto no modelo e tendo sido a política de supressão baseada numa muito maior eficácia do isolamento de casos suspeitos, identificados por uma extensa ação de análise laboratorial. Singapura é um caso de política idêntica, mas em que não se pode ainda falar de supressão. A Itália e a Espanha são casos importantes pela dimensão da epidemia e porque, embora ainda não em supressão já conseguida, estão claramente nesse caminho. Incluo também Portugal, por sobejas razões, e também a Suécia por ser um país que não aplicou, pelo menos ainda, medidas de distanciamento social no grau dos outros países europeus.
É patente que a China, a Coreia e Singapura tiveram enormemente menos casos e mortes dos que são indicados pelo modelo, que, nestes casos, está grosseiramente desconforme com a realidade.
No caso da Itália e da Espanha, a diferença não é tão gritante., pelo menos no que respeita ao número de mortes. No entanto, pode-se objectar que o números geral de casos ainda é desconhecido, por a epidemia ainda estar em curso. Mesmo que, por excesso (que as taxas atuais de expansão não fundamentam) se admita que o número atual ainda possa subir 20&, o valor assim estimado ainda é cerca de 20 vezes inferior ao previsto pelo modelo.
O mesmo se possa com o caso sueco, paradigmático porque nem se está a tentar a supressão nos termos hoje consagrados pela generalidade dos países. Para Portugal, é mais difícil avaliar o ajustamento ou não do modelo, por ainda estarmos longe da supressão completa. No entanto, e enquanto se aguarda a evolução, não é descabido pensar-se que, igualmente, os dados do modelo pecam por excesso.
Uma das razões prováveis para estas disparidades radica na parametrização do modelo, quanto ao distanciamento social. As previsões partem do pressuposto de que as medidas de distanciamento resultam numa redução de 75% da taxa de contacto. Creio que isto é muito difícil de ser traduzido em medidas concretas, dependendo de muitas variáveis demográficas, sociológicas e culturais. É admissível que em muitos casos, as medidas extremas adotadas, indo até à paralisação da maioria das atividades produtivas, correspondam a uma descida muito maior da taxa de contacto, explicando-se assim a desconformidade do modelo.