Este último capítulo é, de facto, um epílogo recapitulador. Ele sintetiza o que foi a intenção essencial quando empreendi esta escrita. O título relembra também o que de mais importante na prática aqui se escreveu.
É correto dizer que o capitalismo é um sistema falido, mas isto não significa que o seu colapso esteja iminente. Neste começo de século, depois de um século XX de apogeu, o capitalismo é historicamente desnecessário e destrutivo, mas estamos a assistir ao que Gramsci designou como interregno: o velho está a morrer [JVC: em morte muito lenta] mas o novo ainda não nasceu. Hoje, mais do que nunca, defrontamo-nos com a escolha inevitável entre “a reconstituição revolucionária da sociedade em geral e a ruína comum das classes em conflito.” (“Manifesto do Partido Comunista”). É em tempos destes, também com muita perplexidade, que se impõe um enorme esforço de unificação de reflexão teórica e de ação prática, numa síntese de filosofia da práxis.
Vivemos numa fase de avanço e forte hegemonia do capitalismo, acantonando a capacidade de luta das classes trabalhadoras e tornando nublada e longínqua a perspetiva de uma rotura social transformadora. Os partidos de esquerda tendem cada vez mais a concentrar os seus esforços na luta eleitoral e na ação política institucional, no parlamento e nas autarquias, esvaziando o espaço da mobilização popular, dos movimentos de massas e da construção da hegemonia nos variados campos da cultura, da informação e da ideologia. Propostas que eram tipicamente sociais-democratas no século passado são hoje o que de mais avançado pode conceber a esquerda radical, nas presentes condições.
A velha esquerda está a morrer e a nova ainda não nasceu. É preciso reinventar a esquerda como esse novo que ainda não nasceu.
É vulgar falar-se de “renovação” da esquerda, termo que foi mesmo usado na designação de um novo partido italiano, bem como de uma associação política portuguesa. Não me chega, é curto. A velha esquerda, a que está a morrer, não tem já condições mínimas para uma renovação. Está apodrecida e cúmplice ou está irremediavelmente presa a constrangimentos passados, ideológicos e funcionais, que a esterilizam. Ou ainda, quando se apresenta como novidade, assenta afinal em bases frágeis essencialmente retóricas que cedo desabam perante as realidades e as tentações da política convencional. Não se trata, portanto, de renovar a esquerda, mas sim de a fazer renascer, refundar, reinventar. Prefiro este último termo por entender que é um processo que exige, a par da prática política e social, um enorme esforço mental, reflexivo e criativo, enfim, de reinvenção.
Uma nova esquerda
De que esquerda, política e social, estamos a falar? Se, por razões históricas e pela evolução do que se entendeu até agora por esquerda, o termo se presta às maiores confusões, isto não deve ser possível quando falamos de uma esquerda reinventada. Mantenho o meu princípio, afirmado ao longo deste livro e agora muito mais naturalmente em relação a uma nova esquerda: ligo esquerda, sem ambiguidades, a uma atitude consequentemente anticapitalista, a uma perspetiva revolucionária (em sentido largo do termo) e a um objetivo emancipador, de transformação radical.
Uma perspetiva revolucionária não significa uma ilusão voluntarista nem o menosprezo por “pequenas” lutas do dia a dia. Ela tem é de se manifestar numa posição coerente de desafio ao capitalismo, num programa político de lutas encadeadas que acentuem as contradições do sistema e, por aí, façam renascer uma esquerda como força antissistémica que oferece uma nova perspetiva política aos movimentos sociais e de massas. É uma esquerda que vai para além da mera resistência e do “capitalismo melhor” e que, mau grado a debilidade de momento das condições objectivas e subjetivas, visa à distância o poder e a hegemonia.
Temos de reinventar uma nova esquerda. Desde logo, no seu DNA, uma esquerda capaz de analisar a profunda mudança desde os tempos áureos da sua esquerda predecessora. Com isto, de descortinar os grandes fatores de crise, que já não são apenas os fatores classicamente enunciados como causadores das crises económicas, de sobreprodução e, mais recentemente, de especulação financeira. São as grandes mudanças qualitativas que configuram o que chamei um novo momento Polanyi.
A esquerda reinventada tem de aliar uma compreensão correta de um mundo novo com a ação consequente e determinada para o transformar. Marx escreveu na sua célebre XI tese sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; o importante, porém, é transformá-lo.” No século XX, afadigámo-nos em transformar o mundo. Talvez seja agora tempo de voltar atrás e compreendê-lo melhor. Pura dialética: negação da negação; voltar atrás, mas a novo nível, superior.
Mas só a ação, com ou sem erros, dá material à reflexão. É mesmo em tempo de refluxo que esta é mais necessária. O drama principal, o que provavelmente sente Žižek ao proclamar provocatoriamente num seu vídeo “não atue, pense”, é que a assimilação da reflexão pelo ativismo é quase nula. Com honrosas exceções, os apoiantes do comunismo só leram Marx com o filtro do marxismo-leninismo oficial. Para já nem falar de outras correntes de esquerda radical, que nem se preocupam já com referenciais filosóficos ou ideológicos, atuando muitas vezes com base num catálogo de propostas desgarradas mas eleitoralmente apelativas, numa política de “pilha-apanha”.
O que é, então, esta nova esquerda necessária? É o que não pode ser, isto é, tudo o que critiquei nas correntes falhadas da esquerda histórica. É o que deve ser, o que propus ao longo da parte propositiva deste livro e que recompilo agora, a concluir, forçosamente de forma muito esquemática.
É uma nova esquerda que considera que a luta dos trabalhadores já não se pode limitar ao terreno económico-corporativo, porque a sociedade atual apresenta hoje problemas qualitativos da maior importância, com emergência de um novo tipo de aspirações, de carências mais qualitativas: maior flexibilidade e variabilidade na vida individual, com maior capacidade de movimentação entre o trabalho, o estudo e o lazer; desejo de efectivo controlo e participação nas tomadas de decisão, desde o campo profissional ao comunitário, ao da política de Estado; maior “sentido da vida”, com reintegração harmónica das suas parcelas atomizadas (o estudo, o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política).
É uma nova esquerda que perfilha uma ideia moderna de desenvolvimento, sustentado, integrado nas suas dimensões sócio-económica e cultural, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos e as capacidades e espírito comunitários.
É uma nova esquerda que compreende e corresponde à insatisfação e revolta de largas camadas sociais vítimas da globalização, da desindustrialização, da degradação dos meios urbanos tradicionais, queixas que a ultradireita tem conseguido capitalizar.
É uma nova esquerda liberta das modas intelectuais pós-modernistas que a têm vindo a invadir e que, essencialmente, contribuem para a menorização da necessidade de uma permanente análise de classe.
É uma nova esquerda, pela mesma razão de importância, capaz de rever a mudança na estrutura de classes e de definir o que é hoje o proletariado, uma vasta e complexa classe trabalhadora que, diluindo-se, perdeu a consciência de classe que é necessário reconstruir,.
É uma nova esquerda que defende firmemente a democracia como indissociável do socialismo, mas não a democracia limitada que o sistema liberal tem oferecido. Antes uma democracia efetiva em todas as suas vertentes e assente na mais ampla participação ativa dos cidadãos.
É uma nova esquerda que valoriza as lutas dos movimentos sociais e identitários mas não as isola do conflito essencial, capital-trabalho. Que deve procurar conciliar as características de partido e de movimento num novo tipo de partido alternativo, o partido dos trabalhadores de hoje.
É uma nova esquerda que não confunde o necessário internacionalismo com o cosmopolitismo – de que é bom exemplo a eurofilia dos sonhadores com o “povo europeu” único – que critica a dimensão nacional e acaba, objetivamente, por aceitar todas as livres circulações desreguladas. Ao mesmo tempo que é internacionalista, considera que o patriotismo é um valor cívico fundamental e um esteio da democracia, dando coesão ao povo soberano, mas opõe-se à degenerescência ideológica do nacionalismo supremacista e “patrioteiro”, não patriótico.
É uma nova esquerda que lutar por um projeto europeu radicalmente diferente do atual. Não se trata da tarefa inglória de reformar esta União Europeia, mas sim da reinvenção de raiz de um projeto não federalizante mas sim confederal, no respeito integral pela soberania dos países membros, que tenha como eixos centrais a cooperação económica no sentido da potencialização das livres escolhas de cada povo, a valorização da cultura comum europeia, a solidariedade entre os trabalhadores europeus e a defesa dos seus direitos, um modelo de sociedade inclusiva, igualitária e ecologicamente sustentada. Em suma, um projeto europeu que faça a síntese entre democracia, soberania e socialismo.
É uma nova esquerda que dá alta prioridade ao combate ideológico. A ideologia pode ter tal força que ultrapassa a determinação social de base económica e entra no domínio do indiscutido, do senso comum, mesmo de pessoas, grupos ou classes cujos interesses são opostos ao que é defendido por essa ideologia. Diz-se então que ela ganhou hegemonia. É isto que hoje se passa com a ideologia neoliberal. A sua essência já faz parte da ideologia de largas camadas de assalariados, das classes subalternas e em boa parte já foi integrado no senso comum. E enquanto uma classe dominante dispõe de hegemonia ideológica ela não é derrubada, mesmo que se cumpram as condições objetivas, económicas, para uma crise sistémica.
Finalmente, “last but not the least”, uma nova esquerda tem obrigatoriamente de ter como base essencial um novo partido dos trabalhadores, um partido alternativo. É necessário guardar os ideais e os grandes objetivos políticos mas mudar radicalmente a conceção de partido, a organização, a estratégia e as táticas, as práticas e a linguagem. É necessário inovar a forma partido e adaptá-la às circunstâncias presentes – e ir sempre renovando essa adaptação, à medida em que se processa a mudança social, agora em aceleração. Os velhos vivem num mundo e o novo vive noutro. O partido alternativo é um partido de novo tipo, não comparável, um “metapartido” que faz a ponte entre a sociedade política e a sociedade civil. A sua caracterização ficou feita no capítulo XVIII.
Uma estratégia para os novos tempos
Uma estratégia consequente e uma ação política eficaz exigem a compreensão do inimigo, da sua natureza e das suas características essenciais em cada momento. Nesta fase, o capitalismo caracteriza-se essencialmente pela financeirização, pela globalização e, no domínio ideológico, pelo pensamento dominante neoliberal. Acrescentam-se ao capitalismo novas contradições: a parasitação da economia real, pelo capitalismo financeiro, a exploração dos recursos e a mudança de modos de vida tradicionais dos países periféricos, a mercantilização de toda a vida humana.
O eixo central da estratégia de uma esquerda reinventada tem de ser o ataque àquilo que são hoje as maiores fragilidades do capitalismo, por exemplo, o agravamento das assimetrias; a exploração da natureza e a agressão ao clima; a globalização e as migrações; o comprometimento da situação económica e social das gerações futuras pelo descontrolo da dívida; a automação, com as suas consequências no desemprego e na volatilidade da segurança laboral; o estatismo autoritário e a ideologia neoliberal, com erosão da democracia e o enfraquecimento das condições políticas (direitos e garantias) que possibilitam a luta dos trabalhadores. Nesta fase, são estes processos aqueles em que o capitalismo vai acumulando mais contradições, cada vez mais ingovernáveis.
Vistas estas contradições e debilidades, há que passá-las para a estratégia de combate, determinando as linhas de ataque. Cabe à nova esquerda identificar os alvos prioritários no imediato, formulá-los com um discurso atraente e conduzir lutas que correspondam à relação de forças.
Esta é a principal condicionante de hoje, a relação de forças. Se por um lado o sistema abre brechas, por outro lado estão grandemente diminuídas as capacidades ofensivas do movimento dos trabalhadores e da esquerda política e social. A luta frontal, clássica, é nesta fase uma luta inglória, não havendo forças para atingir significativamente o coração do sistema e o seu centro imperialista. Este até pode ser posto em causa no plano geoestratégico, o que é claramente importante mas não determinante por o conflito estar deslocado do terreno da revolução social e com atores que até podem em nada se distinguir em termos de sistema e objetivos sócio-económicos.
Não havendo condições para uma guerra ofensiva, de movimento, a luta desta fase é uma articulação entre uma guerra de posição e de defesa com ações orientadas, muito canalizadas, quase de guerrilha, contra alvos que são postos a nu pelas principais contradições do sistema, que têm efeitos mais fortemente sentidos pelas pessoas. Com sabedoria estratégica e tática, é necessário conjugar, a defesa numa guerra de trincheiras e ações ofensivas de guerrilha.
A ofensiva cabe a setores mais determinados e avançados da luta política, focados num projeto transformador eficaz, de objetivo socialista; mas a defesa exige a unidade ou pelo menos a convergência com setores político-sociais mais alargados. Sem esbater objetivos finais diferentes, deve-se ter em conta que, na presente situação, são postas em causa conquistas que qualquer pessoa de bem e moralmente bem formada consideraria já uma aquisição civilizacional. De forma mais flagrante, é necessário um programa e uma plataforma unitária para a reconstrução do Estado social de bem-estar. O projeto de esquerda, com o objetivo do socialismo, deve transcender-se a si próprio, envolvendo-se num projeto mais alargado de promoção da cidadania, de combate pelos interesses gerais da sociedade, em suma, um projeto de luta nacional-popular.
É imperioso ter-se sempre presente que, na defesa, se correm maiores riscos de falta de perspetiva do longo prazo, em suma, de oportunismo. É fase em que é necessário afirmar os grandes objetivos ideológicos e estratégicos, iluminando as necessárias cedências táticas. É um jogo difícil de firmeza e flexibilidade.
Por outro lado, repito, a defesa não é incompatível com a articulação com momentos ofensivos. Ela não deve servir de pretexto para se ficar sempre por objetivos recuados. Pode-se e deve-se ir mais além, desde que sem voluntarismo, na luta pelo aprofundamento da democracia, contra as desigualdades e pela redistribuição, pela socialização do poder económico, pelo pleno emprego, pela integração efetiva das minorias excluídas. Para além de uma lista de reivindicações imediatistas, é necessário apresentar um verdadeiro programa alternativo, que identifique os nós de conexão da situação atual e a estratégia própria do adversário, designadamente no que se refere à sua ofensiva neoliberal.
Concluindo
Defendi neste livro uma utopia prática, com base numa filosofia da práxis, numa filosofia da ação. A filosofia da práxis alia a reflexão e a ação, mas elas têm lógicas diferentes. A reflexão deve ser fria, objetiva, racional, não influenciada por enviesamentos subjetivos. Deve apreciar com cautela a situação real e a relação de forças. Só assim pode contribuir para iluminar a ação. Esta, a ação, é quente, apaixonada, esperançosa, motivada ideologicamente. Ambas, juntas, são utopia prática, fantasia concreta. Como escreveu Gramsci, em 1920, no jornal Ordine Nuovo, repescando uma frase de Romain Rolland, “a concepção socialista do processo revolucionário caracteriza-se por duas notas fundamentais (…) — o ‘Pessimismo da Razão’ e o ‘Otimismo da Vontade’ ”.
A filosofia da práxis tem sempre presente que a ética e a política não são opostas. Pelo contrário, uma é a “ciência” da moral, que se estende até à política se esta for, como deve ser, a ética do coletivo. Como segundo grande inspirador de tudo o que aqui deixo neste livro, a seguir a Marx, volto a referir Gramsci, que dizia que era preciso lutar pela realização de uma ideia que não se limita a uma construção especulativa; que é, pelo contrário, um “princípio ético-jurídico”, o princípio da sociedade emancipada. Esse projeto é também um projeto de filosofia moral.
Finalmente, é preciso lembrar que a paciência é uma virtude revolucionária. O projeto transformador vai ser lento, vai ter muitas fases de refluxo e perplexidade, como agora. Temos de aguardar que se reunam as condições objetivas e subjetivas que não estão só nas nossas mãos.
Não receemos que nos acusem de irrealistas, de falar em tom de cassete, desde que essa cassete seja a de um discurso com conteúdo adequado; e também com linguagem adequada. O que por aí anda, sem exceções à esquerda, não tem nem uma coisa nem outra.
Entretanto, manter a firmeza ideológica, as lutas sociais possíveis, avançar mesmo para além do que parece possível (sem nos destruirmos ou desgastarmo-nos), dar combate à hegemonia do inimigo. Sempre à esquerda do que é possível!