O relatório da OCDE

João Vasconcelos Costa

Era minha intenção escrever um artigo sobre o relatório da OCDE. Verifiquei depois que tudo o que importante poderia escrever foi dito em apontamentos sucessivos, nestas páginas. Aqui fica a sua compilação, tal como foram escritos nos Apontamentos, ao estilo quase de blogue. 

Sobre os antecedentes, podem-se ver outros dois artigos escritos por ocasião do anúncio da encomenda da avaliação à OCDE, “A avaliação do sistema de ensino superior – um exercício desmesurado” e “A avaliação do sistema de ensino superior pela OCDE (II)”.

28.11.2005

Ainda a Irlanda e a OCDE

1. Recebi hoje muitos comentários de concordância com o meu último artigo, “A avaliação do sistema de ensino superior pela OCDE (II)”. Pelos vistos, cometi um erro, ao escrever que me sentia sozinho nas dúvidas. É claro que falava dos “notáveis” e isto mostra que muitos outros precisam de espaço para manifestar as suas opiniões. Este “site” está à sua disposição.

2. Tentei mostrar nesse artigo que o relatório da OCDE sobre a Irlanda não deve andar muito longe do que será o relatório sobre Portugal. Apresentei as recomendações, mas não as premissas. Num caso, o da governação, são interessantes. A OCDE recomenda:

“Os órgãos de governo não devem ter mais de vinte membros, com maioria substancial de membros externos. O reitor deve ser escolhido por um órgão máximo deste tipo. O lugar de reitor deve ser anunciado publicamente, com encorajamento a candidaturas externas. O órgão de governo deve constituir uma comissão de nomeações composta fundamentalmente por membros externos, estabelecendo regras baseadas nas capacidades e na experiência. Os membros externos do órgão de governo devem ser propostos por esta comissão.”

Parece óbvio que também nos vão recomendar o mesmo, em relação ao nosso obsoleto sistema corporativo-colegial de governação.

Mas será que a Irlanda também o tem? Vou reproduzir o que sobre isto se escreve no relatório da OCDE:

“Os órgãos de governo das universidades irlandesas têm, em média, 36 membros. Metade [sublinhado meu, JVC] dos membros são externos à universidade (“laymen”)”.

Se esta situação merece critica e recomendação da OCDE, o que virá no relatório sobre Portugal?

11.12.2006

Uma aposta é para se cumprir

A avaliação da OCDE vai ser apresentada esta semana. Tenho de me apressar em relação a uma aposta que fiz há tempos:

“Até vou fazer uma brincadeira, se tiver tempo: escrever a minha versão antecipada das recomendações da OCDE. Ponho-a na banca das apostas, duvido é que alguém aposte contra mim.”

Aqui vai, obrigatoriamente só um resumo do essencial, deixando de fora, por exemplo, o que dirão sobre avaliação e acreditação, provavelmente repetição da ENQA. Leiam sem tirar conclusões precipitadas antes das minhas notas finais.

  • O governo deve definir um plano para, nos próximos 10 anos, aumentar em pelo menos 50% a taxa de escolaridade terciária da população jovem.
  • Devem ser combatidos os factores sócio-económicos e culturais que limitam o aceso à educação terciária, nomeadamente a ineficiência da educação secundária e o baixo nível cultural das famílias.
  • O governo deve envolver o mundo empresarial no planeamento e controlo da educação terciária.
  • O sistema binário é positivo, como componente da diversificação, mas deve ser flexibilizado, com soluções institucionais variadas.
  • O papel de cada subsistema deve ser definido com clareza.
  • As ofertas educativas devem ser mais diversificadas, dando-se atenção especial às formações profissionais terciárias sem grau.
  • Para além da possibilidade de estas formações poderem ser concedidas pelas universidades e pelos institutos politécnicos, deve ser criada uma rede de pequenos “colégios” especialmente vocacionados para essa formação.
  • As empresas devem ter um papel importante na definição política de missão e de prioridades desses colégios e o governo deve criar incentivos para que as empresas contribuam para o seu financiamento.
  • Para evitar a redundância de ofertas educativas, o governo deve definir regiões da educação terciária, com mecanismos de concertação das diversas instituições. A fusão, integração parcial ou extinção de estabelecimentos, bem como a extinção ou fusão de cursos, deve ser definida nesse quadro regional.
  • Deve ser feito um esforço particular para a atracção e formação de cientistas, engenheiros e gestores.
  • Deve ser fortemente incrementada a formação terciária de adultos em exercício profissional e a educação ao longo da vida, num plano em que as empresas devem ter contribuição importante.
  • Deve ser fomentada a internacionalização e a participação de instituições portuguesas em redes de excelência, quer no ensino quer na investigação.
  • A investigação deve ser fortemente concentrada em áreas importantes para os “clusters” da economia portuguesa.
  • A lei de autonomia universitária peca pela exigência de requisitos geradores de grande uniformidade. Deve ser introduzida maior flexibilidade, a permitir a competição institucional.
  • O modelo de governação deve passar a ser profissionalizado, com “accountability” e participação decisiva dos “stakeholders”.
  • O estatuto de carreira deve permitir a promoção e o reconhecimento do mérito. Também deve promover a mobilidade e combater a endogamia ainda prevalecente.
  • Deve haver maior componente privado no financiamento. As propinas devem ser aumentadas significativamente, isto acompanhado por um sistema eficaz de empréstimos.
  • O financiamento público deve incluir um componente importante de “matching funds”, a estimular as instituições à procura de financiamentos externos.

Não vejam nesta lista a minha opinião pessoal. O que é tudo isto, segundo adivinho? É uma mistura de truísmos, de propostas com que não concordo, de outras positivas mas já avançadas cá por muita gente. No conjunto, muito blá-blá. Se este meu palpite se confirmar, vou reclamar às finanças a devolução do IRS da parte que me coube, como contribuinte, no pagamento da factura da OCDE.

Nota – Escrevi sempre educação terciária, expressão de que não gosto, mas que é oficial na OCDE.

13.12.2006

Ainda a OCDE

Conversei há dias com um velho amigo sobre a operação OCDE e fiquei surpreendido. Ele situa-se num sector político muito oposto ao governo e, no entanto, manifestava alguma compreensão para com o MCTES: “MG tem de ter apoios, contra as resistências previsíveis”. Claro que o meu amigo não estava a descobrir nada que não se saiba, a questão é outra. Em primeiro lugar, estou convencido de que as resistências, puras e duras, se vão estar nas tintas para o apoio estrangeiro ao ministro. Até vão gozar com isto, chamando a atenção para a falta de coragem política.

Muito mais importante é o desconhecimento ministerial de algumas coisas da dinâmica política, em que Sócrates tem sido mestre, tire-se-lhe o chapéu. Aproveitou a maioria absoluta para “fazer sangue”, mostrou coragem, marcou a imagem de toda a legislatura, mesmo que depois as coisas sejam diferentes. E vão ser. A partir de meados de 2007, vai começar a pensar nas próximas eleições e vai adoçar o discurso.

Entretanto, MG perdeu tempo precioso, com o seu medo atávico do conflito e da impopularidade. Este exercício da OCDE, como o da ENQA, fez-lhe perder dois anos de capacidade de manobra. Quando quiser traduzir em medidas o que até admito que ele já tivesse pensado mas não se atrevendo a agir, vai-se confrontar com o calendário político do primeiro ministro. Racionalização do sistema e regulação? Lei da autonomia? ECDU? Talvez só no próximo governo, seja ele de que partido for.

14.12.2006

Em casa de ferreiro, espeto de pau

Com alguma frequência, confunde-se “internacional” e “por estrangeiros”. Não é bem a mesma coisa. No caso deste relatório da OCDE, há um componente internacional, o da aprovação final e, certamente, algumas linhas de orientação, mas, ao que julgo, o essencial decorre do trabalho de peritos individuais, de vários países, e sem vínculo à OCDE.

Isto é importante. São pessoas que circulam por trabalhos deste género. Até se pode admitir que portugueses também já o tenham feito (e fizeram). Neste caso, provavelmente teráo ido dizer ao país X o que agora os Y nos vieram dizer a nós. A ironia está nisto, estes exercícios são feitos, muitas vezes, por pessoas que recomendam aos outros o que não conseguem fazer vingar em casa. Conviria que, ao avaliarem outros, tivessem sempre isso presente e se interrogassem sobre o porquê.

Não é por não terem razão, é porque não têm força política. Outras vezes porque talvez nem tenham boa percepção política, não atendem a alguma contradição entre o discurso académico e o politico. O primeiro é o da utopia, o segundo é o do possível. A política, na sua maior nobreza, é a arte de fazer passar as melhores e mais generosas ideias pelo gargalo estreito da garrafa da prática.

Quero deixar bem claro que, com isto, não estou a criticar os peritos. Fazem o que eu fiz sempre que me foi possível, fazer circular ideias, mesmo que sem perspectivas de sucesso. Não se lhes pedem que se substituam aos governos.

Neste sentido, o relatório da OCDE arrisca-se a ser zero. O desconhecimento da nossa realidade política e cultural salta à vista, mesmo em leitura ainda na diagonal, sem prejuízo de um muito bom conjunto de diagnósticos objectivos. Darei exemplos. Mas uma coisa é o diagnóstico, outra a compreensão de como o doent aceita a terapêutica. Isto faz com que propostas consensuais fiquem a pairar nas nuvens, por falta de visão de como as levar à prática. Claro que isto não desmerece o valor de muitas propostas, que não são nenhuma novidade para mim. O problema é outro: como é que tanta coisa dita por muitos vai ser agora ouvida só porque há uma olímpica OCDE? Sim, para muitos leitores de jornais. Claramente que não, para o “macaco de rabo pelado” que é a cultura universitária. E, se calhar, em muitos aspectos, até para o governo, a quem o esperado presente pode não ser totalmente agradável. Nesses aspectos, claro que não o vai cumprir.

14.12.2006 

As contradições podem ser só aparentes

Estou com grande dificuldade. Creio que muitos aguardam comentários sobre a hora ao relatório da OCDE, mas não me parece que seja honesto lançarmo-nos em “sound bites”. Talvez fosse prudente calar-me por uns dias, reflectir bem sobre o relatório e só então comentar. Vou tentar estabelecer um compromisso, porque há coisas importantes para serem ditas, desde já.

Começo pelo desconforto de uma posição pessoal. Horroriza-me a ideia de poder ser considerado um oposicionista sectário e primário seja ao que for. Neste caso, assumi um posição frontal de critica à “operação OCDE”, como exercício desresponsabilizador do MCTES e resultando num adiamento inaceitável de medidas urgentes já mais do que propostas por muita gente da casa. O meu principal argumento era exactamente esse, o relatório não iria trazer nada de muito novo.

Ora isto implica que eu estivesse à espera de um relatório correspondente ao que de muito bom por cá também se tem escrito. Em geral, confirma-se. Portanto, estar em eu oposição à “operação OCDE” não significa, muito pelo contrário (em geral), estar contra o relatório. Por isto, simbolicamente, vou começar por listar, de forma forçosamente condensada, as minhas concordâncias. Espero fazê-lo ainda amanhã, embora com reserva de se basearem numa primeira leitura do relatório. Só depois é que manifestarei as minhas criticas. Este folhetim vai ser longo.

15.12.2006

Não julguem que eu considero mau o relatório da OCDE!

Comprometi-me a uma nota, hoje, mais no concreto. Para isto, vou ter de omitir, por ora e ainda não bem lido, tudo o que é a descrição diagnóstica do sistema. Julgo que é aceitável que lhe dê menos importância, porque também estou em boas condições de o fazer, faço-o todos os dias. No entanto, não é irrelevante. Só confio numa boa terapêutica se o diagnóstico estiver correcto. Mas adiante, passando às propostas.

É impossível comentá-las uma a uma e vou fazer um exercício de classificação. Ao todo, nos vários capítulos (aconselho o resumo final, para leitura mais compreensiva), são 50 conclusões, ou recomendações, ou propostas, chame-se-lhes o que se quiser. Vou classificá-las em três estrelas, à Michelin, em acertadas mas banais, e em duvidosas.  O grupo das banais fica de fora da economia deste espaço.

Vou fazer um esforço para limitar as três estrelas ao que me parece serem as dez mais importantes propostas. Já não é mau, como vintage, 10 em 50. São as que me são mais caras, em termos de uma luta de alguns anos.

  • O apoio estatal e, presumo, o financiamento, deve ter como método principal os contratos negociados com as instituições, à luz do seu desempenho.
  • O sistema binário deve ser mantido e reforçado.
  • A reconfiguração, no essencial, da rede, envolvendo um número significativo e extinções ou de fusões institucionais, não deve ser uma prioridade, devendo-se favorecer experiências concretas de colaboração.
  • Devem ser montados mecanismos orgânicos e funcionais de coordenação e optimização à escala regional (lembram-se de eu já ter escrito sobre as “academias”, à francesa?).
  • O crescimento do sistema deve ser feito, fundamentalmente, com base no politécnico, que deve ser redesenhado para cumprir com eficácia esta missão de acolhimento preferencial dos candidatos à educação superior.
  • Deve ser aumentada a diversidade das ofertas, com ênfase na educação pós-secundária de diploma, pré-grau.
  • Deve ser elaborado um quadro nacional de qualificações, em termos de conhecimentos, competências e atitudes, com distinção clara entre a educação universitária e a politécnica.
  • A educação pós-graduada deve atender também ao contributo para a qualidade geral do ensino (leio isto como crítica a uma visão estreitamente científica da pós-graduação).
  • Os recrutamentos e promoções devem ser abertos, competitivos e com recurso a avaliações internacionais.
  • Deve ser mantido o actual sistema de propinas indexadas (grande surpresa minha, num relatório da OCDE!), completado, no que respeita ao segundo ciclo, com um sistema eficaz de empréstimos.

Mais difícil será discutir as duas propostas que me merecem criticas, a do conselho nacional da educação superior (coisa que será traduzida entre nós por conselho nacional do ensino superior, desculpem esta picuinha simbólica em que sempre insistirei) e a da natureza institucional e sistema de governação. Não estou em desacordo com os princípios, discordo é das formulações concretas. Ficará para outros apontamentos.

Com tudo isto, será que me estou a contradizer, aos olhos de quem tem lido as minhas críticas a este exercício? Creio que não. Nunca disse que o relatório seria mau, o que disse é que seria redundante em relação ao que muitos cá têm escrito e que iria fazer perder tempo e encobrir a falta de determinação política do MCTES. Mas até me dá algum gozo. Tenho escrito que o ministro desejava este relatório, como defesa. Hoje tenho dúvidas sobre se não terá sido um presente envenenado. Suspeito de que, afinal, algum desconhecimento do ministro sobre a educação superior, por este mundo fora, não lhe permitia adivinhar o que aí vinha.

Tomemos apenas, como exercício, a minha lista dos 10 vintages (a que juntarei, a seguir, os tais dois aspectos sobre os quais só tenho dúvidas de formulação prática). Qual é a opinião do ministro? Compromete-se a legislar rapidamente sobre isto? A escolha foi minha, mas não corresponde a uma larga opinião?

Nota – que mais não fosse, este relatório tem um mérito: fazer esquecer a mediocridade do relatório da ENQA.

15.12.2006

Primeiro, um debate nacional!

Às vezes, na minha idade “provecta”, mas, de qualquer forma, correspondente a uma boa dose de realismo, ainda dou por mim a surpreender-me com coisas inimagináveis. Tive de ler duas vezes, para acreditar, uma notícia de hoje, no Público:

“(…) no final do encontro o ministro da Ciência e do Ensino Superior, Mariano Gago, não quis adiantar nem prioridades nem possíveis caminhos. “O que posso garantir é que o Governo vai propor ao país um debate e tomar decisões que conduzam à modernização do ensino superior português”, limitou-se a dizer.”

Não dá para acreditar. O MCTES perdeu praticamente dois anos com este exercício gratuito. Gastou muito dinheiro, ninguém sabe quanto. Desprezou o esforço de muitos que há muito propõem o que agora a OCDE vem dizer. Mas adiante, feito o mal e a caramunha, ao menos que se esperasse agora, e com urgência, a reforma sempre adiada. Qual quê, o MCTES vai primeiro promover um debate nacional!

Um ministro é, por natureza um politico, tem de ter intuição política. Quem anda por debates, discussões na net, até conversas de café, nota que há uma onda de mudança. Um bom ministro surfista cavalgava-a já. JMG prefere molhar os pés à beira da água, não vá ficar constipado. O MCTES começa a ser um escândalo de má governação. Quousque tandem, Mariano…?

Já que me deu para o latim, também recordo que Audaces fortuna juvat! (“a sorte favorece os audazes”), um dos meus lemas. Não me tenho dado mal com ele. Impede-me de alguma vez chegar a ministro, que honra…, mas tem-me granjeado respeito e muitos bons amigos. Seja lá quem for que me julgará, nunca irá ler o Diário da República e os despachos de nomeação. Já não digo que não valha a pena ler despachos de exoneração.

22.12.2006

A montanha pariu um rato

Arriscamo-nos sempre a interromper férias, em geral por maus motivos. É o que acontece agora , porque não podia adiar uma reacção ao discurso de ontem do primeiro ministro, de que só hoje tive conhecimento tardio.

“O órgão máximo de cada instituição, que deve assegurar a sua direcção estratégica – Senado, Conselho Geral ou qualquer outra designação que venha a ser escolhida – deve ser colegial e eleito e composto pela comunidade académica, mas esse órgão dever ter uma maioria de professores e deve estar largamente aberto à sociedade, através da presença obrigatória de personalidades externas à instituição com experiência relevante para a sua actividade.

Competirá a este órgão de topo a escolha do dirigente máximo de cada instituição – Reitor de universidade ou Presidente de politécnico –, decorrendo essa escolha após processo de selecção, aberto à candidatura de professores de outras instituições. Competirá, ainda, a este órgão de topo apreciar o desempenho dos responsáveis designados e os resultados alcançados.”

Nem a presença de membros externos nesse senado é novidade, já está prevista na lei, embora com carácter facultativo. A experiência de algumas universidades mostra que essa presença, nestes moldes e num órgão maioritariamente representativo da comunidade, é irrelevante e desmotivadora para os externos.

Como se sabe, o relatório da OCDE propôs coisa muito diferente: um órgão com atribuições apenas académicas, eleito, representativo dos corpos académicos e com dimensão máxima de 25 membros; um órgão de governo (“board”) de até quinze membros, com maioria de externos, incluindo o seu presidente; um reitor nomeado por este órgão de governo, após um processo de busca e selecção.

Não é difícil perceber-se que a ideia do governo, aliás confusa, não tem nada a ver com isto, mistura dois planos radicalmente diferentes, o do governo estratégico e o do governo académico. Não quero dizer que concordo na totalidade e no concreto com a recomendação da OCDE, perfilhando antes uma proposta mais realista, como escrevi recentemente com dois amigos. Não é o que me interessa agora discutir, antes o significado político deste discurso. Logro ou incompetência?

Das duas uma.

Ou o ministro adivinhava e desejava como apoio, previamente à encomenda do relatório, o que seria a proposta da OCDE, como muitos e eu próprio o fizeram, e então esta posição de agora significa fraqueza, que andou inconsequentemente a “engonhar” (desculpe-se o plebeísmo) e a gastar inutilmente dinheiros públicos em época de cortes orçamentais das IES, desprezando liminarmente as propostas (pior, talvez, desvirtuando-as, que é coisa bem menos frontal e coerente).

Ou não lhe passava pela cabeça que seria essa a proposta e então mostra que anda muito desconhecedor das realidades e tendências internacionais. Não sei qual das duas abona mais em relação ao ministro. Vou oferecer ao ministro, neste Natal, “O princípio de Peter”. Provavelmente nunca o leu. Se o tivesse feito, ter-se-ia acomodado como ministro da ciência, em que foi bom, e não teria aceite o encargo da educação superior, em que é mau. Nem se lembrou de que a História é cruel, tem grande tendência para recordar mais o mau do que o bom.

Leio no Público que os reitores ficaram satisfeitos. Pudera! Apenas alguns declararam que o governo podia ir um pouco mais além, mas sem que eu perceba, pelo jornal, o que seria esse mais além. Mais espantoso é o presidente do CRUP afirmar, quanto à intenção do governo, sobre a governação, que “é assim no resto da Europa”. Não é, nem mesmo aqui ao lado! É espantoso ouvir tal inverdade dita pelo presidente do CRUP.

P. S. – Nem tudo no discurso foi negativo, mas compreenderão que hoje não posso escrever sobre tudo, por exemplo, o financiamento contratado.

2.1.2007

Estratégia e organização do sistema de educação superior

Até agora, tenho comentado o relatório da OCDE mais na perspectiva política. Acabo sempre por cair na critica ao ministro. Já chega, nem ele aproveita as minha criticas nem elas chegam a quem lhe pode puxar as orelhas. Chegou agora a altura de cumprir a promessa, comentar os aspectos mais significativos do relatório e começando por salientar que é um relatório muito bem elaborado, escrito com inteligência e rigor e denotando bom conhecimento do que mais se vai discutindo por este mundo fora sobre a educação superior. Note-se que isto não contradiz o que escrevi, nada no relatório era inesperado para mim, mas dizer que fossem tolices é coisa muito diferente, até contraditória.

Hoje, em nota forçosamente curta, vou ficar-me pela segundo capítulo, que trata da organização e estratégia do sistema. Em próximos comentários, abordarei a governação, a regulação e o financiamento. Salto o primeiro capítulo, necessário num relatório destes, mas apenas descritivo. Pelos vistos, tenho para vários apontamentos, mas é provável que os venha a compilar num artigo de fundo, espero que em colaboração.

Antes do mais, quero reproduzir uma coisa lapidar deste relatório, porque subjacente a muito do que depois se discute. “A major factor behind these perverse consequences is that the level of public information on course content, programme goals, quality, career opportunities and graduate employment is inadequate or unavailable”. [** , *]

A meu ver, ressaltam neste capítulo quatro questões essenciais:

1. Deve manter-se o sistema binário, universidades e politécnicos? Sem qualquer surpresa para mim e muitos outros, a resposta é inequivocamente positiva [*] e não deve ter agradado nada aos defensores da igualização thatcheriana, que, como sempre disse, me parecem motivados por coisas menores de auto-estima. O relatório dá grande ênfase à necessidade de clarificação da natureza e missão de cada subsistema. Não é nenhuma novidade, parece lapalissada, mas justifica-se que se diga, mais uma e mais muitas vezes, porque é o que temos. A caracterização que o relatório faz é banal, mas talvez venha a ser mais respeitada do que a que tantas vezes cá tem sido feita, até por professores do politécnico [*].

No entanto, fico com a impressão de que o painel foi mais sensível à óbvia “deriva académica” do politécnico. Gostaria de ter lido igual critica à “deriva tecnológica da universidade”, para mim igualmente grave.

2. A que subsistema deve ser promovido preferencialmente o acesso? A resposta também não me surpreendeu, mas neste aspecto acho que não devo ter grande companhia. Ao politécnico! Já escrevi, como agora os peritos da OCDE: “Precisamos de massificar a educação superior, precisamos de desmassificar a universidade. Alargar o acesso à educação superior não significa obrigatoriamente escancarar as portas das universidades. (…) O nosso principal défice é provavelmente nos cursos de especialização tecnológica (CET) mas, infelizmente, não há dados. A seguir, o politécnico, depois o secundário. O melhor índice (dentro do mau) é o da educação universitária. Isto significa que, para nos aproximarmos da situação média, no que respeita ao ensino pós-secundário, temos de investir primeiro no ensino sem grau (CET), depois no politécnico e, finalmente, no superior.” [*]

3. É necessária ainda maior diversidade? Também esperava: sim, principalmente uma grande expansão da “educação terciária pré-grau” [*]. Voltando a lembrar a triste experiência thatcheriana de transformação dos excelentes nicos em universidades medíocres, rapidamente se corrigiu o erro, com o desenvolvimento dos “colleges for further education”. Como se sabe, nos EUA, a adequação do nível de qualificação às rápidas evoluções da economia não se fazem nas universidades, com muito maior inércia, mas nos “colleges”, com os seus cursos práticos de dois anos.

É verdade que temos os CET. Mas quantos, com que distribuição, em que áreas, com que ligação à vida económica e social, com que financiamento? E a que nível institucional? Esta última questão é importante, porque a lei é vaga e permite CET conferidos por escolas secundárias até a universidades. O espaço não me permite maior discussão, mas arrisco-me a ser mal interpretado propondo escolas especiais, em muitos casos por reconversão de actuais escolas politécnicas, sem prejuízo de, flexivelmente, também poder haver CET nos politécnicos e até em universidades, designadamente as periféricas.

4. Justifica-se alguma cirurgia institucional no sistema? Confesso a minha surpresa com o relatório da OCDE, neste aspecto. Esperava uma receita bruta, de recomendações de extinções e fusões, à burocrata (e não seria isto que o MCTES desejava, para caçar com o cão alheio?). Dou por uma atitude de grande sensatez. Espere-se para se ver, não é por mais uns anos que um sistema que tem mostrado tal resiliência vai colapsar. Mais facilmente colapsará por se retirar abruptamente uma peça e tudo entrar em desequilíbrio. O relatório admite, a curto prazo, a possibilidade de “down-sizing”, mas não de extinções.

Aplaudo duas recomendações: que as decisões se baseiem na apreciação do cumprimento ou não de contratos programáticos [*]; e que sejam sempre consideradas numa perspectiva regional (também merecia [*], já escrevi sobre as “academias” regionais, mas não consigo encontrar o texto).

O relatório insiste e insiste, muito bem, nesses “perfomance contracts”. Volta a falar deles a propósito da governação e do financiamento. Quem me lê adivinha o prazer com que li este texto. Só não dizem, coisa prática, que talvez isto só seja possível se o CRUP passar a ser um simples e respeitável clube de amigos. Até lóbi, concedo, porque não?

Devia discutir sobre este capítulo a questão da regulação e da defesa que é feita de um mecanismo baseado no conselho coordenador do ensino superior. Como disse acima, merece comentário específico, é dos temas em que estou em desacordo. A OCDE propõe a regulação por um organismo afinal governamental, eu por uma entidade independente. Concordo, porque compatível com ambos os modelos, com a ênfase que o relatório dá ao quadro único de planeamento. Discutirei depois.

Não podia terminar sem ir ver o que disse Sócrates sobre isto na AR. Aos costumes disse quase nada, apesar de tudo isto ser fundamental para o que se segue. Ficou-se pela declaração genérica da necessidade de reforçar o sistema binário, mas sem nenhuma proposta de intervenção. No entanto, não o culpo, tenho-o como homem e político corajoso. De onde lhe veio então esta gaguez politica?

Nota – Talvez tenham reparado em que este apontamento tem alguns [*]. Desculpem, é um exercício narcísico, “links”, e apenas alguns exemplos, a coisas escritas muito antes do relatório da OCDE.

4.1.2007

A autonomia e a natureza institucional (ou as fundações e o emprego privado)

Entre o capítulo 2 e o 3, há que comentar a questão da autonomia e da natureza institucional. Afirma o relatório que o grau de autonomia é muito reduzido, por o regime legal ser altamente uniformizador. Quem é que ainda não disse isto? O relatório defende um grau muito maior de verdadeira autonomia, mas no sentido de ela ser um meio de afirmação da identidade competitiva de cada instituição, num quadro de competição não só pelos melhores professores e estudantes e por financiamentos externos mas também em relação ao próprio Estado, por via dos contratos programáticos, a que me referi no último apontamento. Muito bem, parece-me merecer apoio de muitos e muitos que têm defendido isto, mas o recente discurso do primeiro ministro passa isto por alto.

Em relação à autonomia, foi manchete em todos os jornais. “OCDE propõe que as universidades passem a ser fundações”. Não é verdade e é bom exemplo da nossa actual cultura de “sound bites”. O relatório é sensatamente transparente, enfatizando o objectivo da autonomia mas não concretizando nenhuma proposta jurídica para a qual os peritos não tinham preparação:

” 2.47 The panel heard a number of submissions that stressed the importance of finding a new legal status for universities and polytechnics which could (progressively) provide them with more autonomy, opportunities for institutional development and human resource flexibility. Different alternatives such as a Foundation or a new type of public entity were suggested. This is a complex and technical Portuguese juridical question that is beyond the competence of the review panel. Nevertheless, the panel is convinced that resolving this question is of paramount importance so that Portugal’s public higher education institutions can be granted a significant increase in institutional autonomy. This is an essential prerequisite for achieving a diverse and responsive system, and for creating the conditions in which a system of negotiated institutional contracts can be introduced. (…)”

Para além dos organismos vulgares da administração, dispomos hoje, com alguma simplificação, de outras figuras para entidades dependentes do financiamento e do controlo do Estado, em grau variável: institutos públicos, entidades públicas empresariais, fundações, empresas públicas. Note-se que os nomes podem ser ilusórios; por exemplo, a FCT não é nenhuma fundação, é um simples IP. Fica ainda o vasto campo da administração autónoma, como a regional ou a autárquica, a que é regida por leis próprias, não subordinadas a um enquadramento genérico.

Pessoalmente, como leigo jurídico, considero que a administração autónoma é a melhor hipótese para as IES. A sua natureza é estabelecida em lei reforçada, que pode ir buscar, à medida, o que de melhor e mais adequado podem ter os estatutos genéricos de outro tipo de instituições, por exemplo a grande autonomia estatutária das fundações e a grande autonomia financeira e a flexibilidade de gestão das entidades públicas empresariais.

A única vantagem que vejo num estatuto de Fundação, à Serralves ou Centro Cultural de Belém, é a de possibilitarem o aliciante, para os mecenas, de um papel estatutário. No entanto, é disto que discordo, que a governação das IES fique dependente de participações externas institucionais. Defendo vigorosamente a participação externa, mas sempre a nível da qualificação individual, nunca por representação de interesses.

A consequência prática essencial desta questão é a do estatuto do pessoal. Se dependentes de uma fundação, não são funcionários públicos. Neste ponto, a opinião da OCDE, no sentido da privatização do vinculo laboral, é clara (3.12, 3.21).

Não me pronuncio, por incompetência jurídica, sobre a maior ou menor dificuldade de converter, a curto prazo, milhares de funcionários públicos em trabalhadores de entidades privadas. Falo é do que conheço, como ex-dirigente. Nunca dei porque o ECDU ficasse muito limitado por regras gerais da legislação do funcionalismo público, a não ser em coisas menores (regime de férias, faltas e dispensas, situações de doença, matérias disciplinares, etc.). O ECDU já consagra diferenças essenciais em relação à generalidade das carreiras, até em termos de regimes (tempo integral, parcial ou em dedicação exclusiva), diferenciações salariais e possíveis prémios de desempenho. Não é no plano jurídico que está o problema, é no facto de o ECDU ser hoje obsoleto e não contribuir em nada para a promoção do mérito e para o combate à endogamia. Parece é que o MCTES foge de um novo ECDU como o diabo da cruz.

Desejo fazer-me entender bem. Fiz toda a minha vida no regime geral de trabalho, o emprego privado. Por isto, nada tenho, em princípio, contra que ele seja alargado aos universitários, mas também não vejo nisto nada de fundamentalmente exigível.  É questão de custos-benefícios, para cuja análise não tenho condições de experiência jurídica. Fundamental, para mim, e ao encontro do relatório da OCDE, é que, seja qual for o estatuto institucional, ele permita a cada IES uma política e gestão de pessoal perfeitamente adequada à sua política de promoção da qualidade.

8.1.2007

A governação

Passo ao capítulo 3, sobre a governação. É óbvio que é dos mais sensíveis e motivou logo uma posição contrária do governo. Ainda por cima, uma posição que confunde coisas elementares, como a diferença entre a governação política/estratégica e a governação académica. Talvez não seja facilmente perceptível, fica para próximo apontamento a desmontagem da proposta.

O diagnóstico da OCDE não adianta muito, quantos já o temos escrito. “Main issues are (…) external stakeholder participation, the appointment of the rector, issues concerning institutional leadership, the size and composition of governing boards, the effectiveness and transparency of decision making, the governance and management of institutions i.e. the relationship between the governing body and the rector, the balance which needs to be struck between accountability of institutions to governments and their autonomy in financial and academic matters and the support of institutions for the achievement of national goals.”  ” The law is framed in such a way as to ensure that all universities have identical governing structures.”

Ah, o que seria de nós sem a OCDE!

Depois, os erros que eles detectaram, e de que ainda não me tinha apercebido. “The degree of autonomy for public universities is considerably in excess of the public polytechnics; (…) The lack of external membership on the University’s Assembly and the rather modest representation on the Polytechnic Assembly;(…) the leadership of institutions is weak; (…) The election rather than the selection of the Rector, (…) the excessive value which is placed on collegiality within the individual institutions.”

A seguir, vêm as propostas e aqui é que a coisa se complica. Qualquer sistema de reforma se defronta com uma cultura adversa estabelecida. Regra essencial em política, o óptimo é o inimigo do bom. Em resumo, as propostas da OCDE são o meu óptimo.

  • Um conselho de governo de não mais do que 15 membros, com maioria de “stakeholders” externos;
  • Nomeação do reitor por este conselho, de acordo com o processo moderno de “search and select”;
  • Um órgão de governação acadêmica, com representação sensata dos estudantes (segundo a OCDE, 3 em 25);
  • Uma comissão executiva, presidida pelo reitor, para a gestão corrente,

Nada a opor, em princípio, mas, repito, o óptimo é o inimigo do bom. Fica-me de tudo isto a impressão de alguma insensatez e irrealismo dos peritos da OCDE. Provavelmente, também se aplicará se eles forem propor isto nos seus paises.

Das duas uma. Ou isto é imposto como regra geral a todas as universidades e é o caos, de incompreensão, de furos estatutários, de viciações na prática; ou é deixado à discrição das universidades e nenhuma adopta este modelo.  O trio de amigos que escreveu recentemente um artigo sobre este assunto partilha uma opinião firme. Hoje, o que vale, é o prémio financeiro. O segredo estará em saber como recompensar a boa governação.

10.1.2007

Ainda a governação e a reacção do governo

Continuo sobre a governação, seguindo o relatório da OCDE, mas desta vez orientando mais a escrita para a proposta do governo. Como já escrevi, foi, até agora, a única proposta da OCDE que teve reflexo numa proposta objectiva do governo, e logo um reflexo negativo. Afinal, para que serviu tão caro e pomposo exercício, continuarei sempre a perguntar?

No apontamento anterior, coloquei reservas em relação ao acerto, no concreto, da proposta da OCDE. É certo que são apenas caracterizações indicativas mas, indo demasiadamente longe em relação à cultura universitária vigente, fortalecem o adversário, alienando indecisos.  No entanto, insisto em que a proposta vai ao encontro de um larguíssimo entendimento internacional de que também partilho. A OCDE baseia a sua proposta na separação, embora articulada, de dois domínios de governação, o estratégico e o académico.

Definir o plano de desenvolvimento e a estratégia, encontrar missões diferenciadoras e promotoras da competitividade, procurar activamente financiamentos externos, inserir a instituição na sociedade, usar a distribuição orçamental como estímulo à qualidade, definir, com o mesmo objectivo, a política de recursos humanos, etc., não é nada de específico e único de uma universidade, são tarefas que competem a um órgão de governação estratégica em qualquer instituição. As qualificações requeridas não são de tipo profissional. Para se ser membro de um órgão destes na EDP não é preciso ser-se engenheiro electrotécnico, nem ser-se piloto no governo da TAP.

Onde as universidades e politécnicos são especiais é na área académica (pedagógica e científica). A decisão de criar um novo curso tem significado estratégico, mas não pode ser o órgão de governo a organizar o plano curricular (desculpem a lapalissada, mas é bom que nos entendamos). Por outro lado, a participação da comunidade é especialmente importante na vida académica. Não ligo nada a que isto seja um valor de “gestão democrática”, porque democracia é na vida política, não na gestão do supermercado, e porque democracia não se confunde com resquícios profundos de uma herança de mentalidade corporativa. A participação é essencial mas apenas porque com ela melhora muito a qualidade institucional. Obviamente, ao contrário do anterior, este órgão deve ser composto por critérios de qualidade profissional, conjugados com os de representatividade da comunidade.

É claro que isto está escrito com grande reducionismo. Há inúmeras possibilidades de concretização deste modelo. Por outro lado, é essencial entendê-lo como modelo de governação partilhada, com inúmeras formas possíveis de cooperação entre os dois órgãos. Já tenho escrito muito sobre isto.

É isto, no essencial, o que propõe a OCDE: um órgão de governo, com presidência e maioria de membros externos; um órgão académico, representativo, incluindo estudantes. E foi a isto, e só a isto, que o governo se viu obrigado a reagir, no discurso do primeiro ministro na AR (os reitores elogiaram!). A proposta governamental, que funde numa só as duas governações distintas, é um desconchavo, mistura alhos com bugalhos, mete no mesmo saco o gato e o rato. Quem a terá imaginado?

Vou transcrevê-la novamente, sem comentários, mas com itálicos meus. Creio que seria um insulto à inteligência dos meus leitores, depois do que escrevi acima, mostrar-lhes a incompatibilidade radical entre a proposta do governo e a concepção da OCDE (e etc., etc., etc.).

O [JVC: repare-se, no singular!] órgão máximo de cada instituição, que deve assegurar a sua direcção estratégica – Senado, Conselho Geral ou qualquer outra designação que venha a ser escolhida – deve ser colegial e eleito e composto pela comunidade académica, mas esse órgão dever ter uma maioria de professores e deve estar largamente aberto à sociedade, através da presença obrigatória de personalidades externas à instituição com experiência relevante para a sua actividade.

Competirá a este órgão de topo a escolha do dirigente máximo de cada instituição – Reitor de universidade ou Presidente de politécnico –, decorrendo essa escolha após processo de selecção, aberto à candidatura de professores de outras instituições. Competirá, ainda, a este órgão de topo apreciar o desempenho dos responsáveis designados e os resultados alcançados.”

12.1.2007

Ainda a governação: uma no cravo e outra na ferradura

Concluo hoje o comentário ao capítulo sobre governação do relatório da OCDE. Tenho de voltar a ele porque posso ter induzido em erro os meus leitores, quando escrevi que as propostas da OCDE eram extremadas, o que poderia causar reacções injustificadas ao essencial, o modelo proposto. Para ser justo, isto deve ser moderado pela leitura de um parágrafo importante, quase contraditório. Vale a pena transcrevê-lo.

3.22 However, the autonomy and self-regulation which should be a feature of this legislation should not be applied to all institutions with immediate effect; on the contrary it must be introduced gradually and in response to application from individual institutions. It is suggested that such application be made to the Conselho Coordenador do Ensino Superior (CCES). The Review Team proposes that CCES should assess all such applications and make appropriate recommendations to the Ministry as to whether or not the new legal provisions should apply to the applicant institution. It is also recommended that the CCES would form panels of experts to assess each application and that the membership of such panels should contain a clear majority of international members. The details should be a matter for the expert panel to recommend but it is suggested that the degree to which the other recommendations in this report have been implemented successfully by the applicant HEI should figure strongly in the assessment of institutional readiness to make the transition. These freedoms will find expression in a new relationship with government. But the central matter is that, with excellent leadership and governance, the creativity of faculty and staff will be released; new initiatives will emerge and the ultimate result will be a responsive, excellent and engaged institution. Clearly such a prospect should be regarded as of immense benefit throughout Portugal.

Como disse, tudo isto me parece contraditório, talvez piano tocado a quatro mãos sem muitos ensaios. Por um lado, recomendações exigentes, noutro parágrafo, como, por exemplo, presidência externa do órgão de governo, maioria de membros externos, reitor nomeado por “search and select”. A seguir, este parágrafo que permite que tudo fique na mesma.

No artigo que já citei e de que sou co-autor, parece-me haver uma atitude mais realista: imposição de regras mínimas, imediatas e gerais, mas com “perfil baixo”; prémio às propostas que forem significativamente para além do mínimo obrigatório. No entanto, para quem conhece a nossa realidade, só há prémio sensível se se traduzir por vantagens financeiras, o que a OCDE parece ignorar. Estranhamente, porque baseia muitas das suas propostas numa filosofia de contratualização. Porque não ponderar significativamente nessa contratualização a qualidade da governação, como propusemos? “A new relationship with government”, o que é que isto quer dizer? E com um governo que já mostrou o que entende por modelo desejável de governação? “Clearly such a prospect should be regarded as of immense benefit throughout Portugal.” Muito gosto eu de declarações redondas e pomposas! Já agora, fico a pensar que esta frase foi escrita por alguém que conhece Chico Buarque, traduzindo quase à letra “ainda vai ser um imenso Portugal” (espero que os leitores percebam a ironia deste escriba que é grande fã de CBH).

Última nota para coisa que me parece totalmente inaceitável, a sugestão de que a avaliação e aprovação dos estatutos institucionais passem por uma comissão de peritos com maioria de membros estrangeiros. As universidades e os institutos politécnicos são organismos do Estado. A organização interna do Estado e dos seus organismos é matéria indiscutível de soberania. Ou também ainda ouvirei propor a intervenção de peritos estrangeiros na elaboração das nossas leis? Gostaria de ter visto o ministro a reagir a esta desfaçatez. Tê-lo-ia absolvido um pouco do pecado de submissão de todo este exercício OCDE.

15.1.2007

A regulação e a proposta para o futuro Conselho Coordenador do Ensino Superior

No que diz respeito à regulação do sistema e da oferta de cursos, sabidamente um problema que acabou por assumir dimensões negativas inaceitáveis, o relatório da OCDE atribui grande importância ao futuro Conselho Coordenador do Ensino Superior (CCES), previsto na recente lei orgânica do MCTES (Decreto-Lei nº 214/2006 de 27 de Outubro), mas ainda não regulamentado. As propostas do CCES abrangeriam, essencialmente: os objectivos estratégicos e as prioridades; o quadro geral de planeamento, com monitorização e ajustamento anuais; e a lista geral de objectivos a nortear a negociação dos contratos programáticos. Anote-se, negativamente, a omissão de qualquer proposta operacional de regulação do aspecto que se tem manifestado como o mais problemático, a da oferta de cursos.

No artigo que já referi, propõe-se uma solução radicalmente diferente, a de uma entidade reguladora independente. É óbvio que há uma margem de sobreposição com a proposta da OCDE, a da orientação política geral, que não atribuímos a essa entidade independente. Mas isto é o que me parece ser a vantagem da nossa proposta, a de separar a orientação política, evidentemente da competência do governo, e a regulação propriamente dita, no plano operacional, coisa que o relatório da OCDE esquece. Mas do mal o menos e considero que já não seria nada mau que a proposta da OCDE vingasse. Não acredito.

Porquê? Por pequenas nuances difíceis de explicar. Começo pela noção de base, muito diferente, de um órgão consultivo à portuguesa e de um “policy committee” à internacional, subjacente à proposta da OCDE. O CCES está claramente referido na lei como órgão consultivo e nada parece haver no relatório da OCDE que contrarie essa natureza, mas, repito, a filosofia e as responsabilidades são diferentes. Anote-se, por exemplo, que o relatório parece elevar o nível da decisão política final, atribuindo ao conselho de ministros a capacidade de decisão sobre as propostas do CCES. Fica para o ministro, no entanto, um poder decisivo, o de celebrar com as instituições os contratos programáticos, elemento chave (a meu ver muito bem) de todo o modelo proposto pela OCDE.

O CCES teria como presidente o primeiro ministro (muito significativo!), o MCTES como vice-presidente, e seria composto por 5 representantes de outros ministérios com interesse na educação superior, 5 membros provenientes do mundo social, cultural e económico e por outros 5 membros académicos, mas com exclusão de reitores e de vice-reitores (muito bem!). Tanto os “civis” como os académicos seriam nomeados pelo primeiro ministro por processo de candidatura pública e selecção em que interviriam as entidades representativas dos “stakeholders”. Esta composição proposta pela OCDE é um grande avanço em relação ao Conselho Consultivo do Ensino Superior, criado pela Lei 1/2003 e agora extinto, composto “corporativamente” apenas por representantes dos diversos subsectores do sistema de educação superior.

O governo terá coragem para aceitar esta proposta da OCDE, contra o lóbi? Duvido, que mais não seja atendendo por analogia ao recente discurso do primeiro ministro. Apesar de a proposta da OCDE ficar longe, como disse, do modelo de regulação que defendo, já ficaria bastante satisfeito com a sua concretização.

2.2.2007 

O financiamento

Concluindo a série de apontamentos sobre o relatório da OCDE, alguma coisa sobre o financiamento. Julguei que era tema para muita discussão mas, para minha surpresa, ficou muito moderado em relação ao que eu adivinhava, as receitas da OCDE: aumento considerável das propinas, reforço considerável dos financiamentos privados (nunca dizem como).

Afinal, até propõem que as propinas se mantenham ao nível actual, embora sujeitas a actualização em função da taxa de inflação. No entanto, uma no prego outra na ferradura. Subjacente, fica a consideração pela OCDE que temos um nível baixo de participação das famílias, em termos do valor das propinas relativo ao financiamento total: 17%, contra a média de 19% da OCDE, mas distante do que entendem como desejável, a tender para cerca de 40%! Não lhes chamaram a atenção para a nossa Constituição?

Também não se pode esquecer que, segundo dados do relatório, a evolução do financiamento entre 2001 e 2004 foi disparatada: o financiamento público aumentou 0,76 vezes, o das propinas 21,6 vezes. Repare-se nas datas. São posteriores à actualização das propinas, pelo ministro Marçal Grilo.

Tal como se adivinha ser a atitude definitiva do governo, o relatório limita o financiamento público ao primeiro ciclo de Bolonha. Já escrevi muito sobre isto, discordando, está na página de artigos, não vou repetir-me. No entanto, o relatório vai mais longe, sibilinamente, incluindo no financiamento essencialmente privado a educação profissional. Isto significa que os anos além Bolonha dos chamados mestrados integrados ou de cursos como o de medicina teriam propinas consideravelmente mais altas?

Boa parte do capítulo (e um anexo) aborda o sistema de empréstimos. Não cabe esta discussão neste espaço, mas já o fiz num artigo encomendado pela APESP e que colocarei em breve na minha página de artigos (avisarei). A experiência internacional, ainda muito restrita, mostra que é matéria muito difícil e com resultados ainda controversos. Não me parece que possa ter a força de “grande receita” que a OCDE lhe pretende atribuir. Voltarei ao assunto, que me tem interessado muito e sobre o qual julgo ter boa documentação.

Como aspecto positivo, mas muito problemático em termos de concretização, este capítulo do relatório volta a basear-se muito numa lógica de contratualização e de avaliação de desempenho, de cumprimento de objectivos em termos de “fitness for purpose”. Muito bem, mas quero ver como vai funcionar, num fundo sedimentado de igualitarismo, recusa da competição e nivelação por baixo que ainda caracteriza muito o nosso sistema de educação superior.

Anote-se, finalmente, que o relatório não embarca no estafado argumento da nossa boa posição no financiamento da educação superior, em termos de percentagem do PIB. O que apontam, como tantas vezes tenho escrito, é que o importante é o valor absoluto da despesa média por estudante, no fundo da lista dos países da OCDE.