O milagre finlandês e o ensino superior

João Vasconcelos Costa

Há já algum tempo que estava para escrever sobre o papel da educação superior no desenvolvimento espectacular da Irlanda e da Finlândia, os “modelos” tão em voga. A Irlanda ficará para depois, porque a recente viagem do primeiro ministro trouxe a Finlândia para as primeiras página dos jornais. Para mais, creio que o sucesso irlandês tem razões específicas que estão muito longe da nossa situação, de que se destacam o largo uso da língua inglesa, a proximidade geográfica do Reino Unido, grande influência do sistema universitário e científico inglês, uma comunidade influente nos EUA, tudo factores do principal eixo da sua modernização, a atracção de empresas estrangeiras.

Começo por dizer que, com pena, não conheço a Finlândia, o que me diminui nesta escrita porque gosto de falar do que conheço pessoalmente ou, indirectamente, por informações fidedignas e discussões com amigos nativos. À falta disto, procurei estudar, coisa para que muitos dos meus amigos no activo, infelizmente, não têm tempo. Com sentido realista das minhas limitações, gostaria de apresentar este artigo como um modesto “case study”. Depois se seguirão mais. Creio que uma das grandes limitações da nossa comunidade académica é saber relativamente pouco do que se passa fora da paróquia.

José Sócrates visitou uma escola, a Nokia e o Fundo Nacional Finlandês para Investigação e Desenvolvimento. Apesar de acompanhado pelo ministro Mariano Gago, não visitou uma universidade, nem sequer a Universidade de Tecnologia de Helsínquia, considerada como uma das cinco melhores da Europa. Lamento e preocupa-me verificar tantas vezes que o ministro parece ser ainda o da Ciência e Tecnologia, muito bom, de há dez anos. Lembre-se de que, agora, também é do Ensino Superior – bem gostaria, mania minha, que tivesse exigido a designação de Educação superior. Este artigo bem podia ter sido feito pelos seus assessores, como trabalho de casa para discussão com o seu colega finlandês.

Não vou falar de variados factores do sucesso finlandês: a coerência e a dinâmica nacional de ultrapassagem da crise motivada pelo afundamento da URSS, seu quase exclusivo parceiro comercial; a ética luterana e a baixíssima taxa de corrupção; o sentido da inovação – a Nokia começou como fábrica de papel (quando é que veremos a Portucel a produzir telemóveis?); o valor dado ao estado social e à solidariedade, que impediram um modelo neo-liberal; a percentagem de 3,4% do PIB destinada à investigação e desenvolvimento tecnológico, a segunda mais alta da Europa – só isto daria outro artigo; a taxa de 75% da população com educação a nível máximo do 12º ano de escolaridade (em Portugal, 21%). 

Mas talvez haja mais. Há dias, na televisão, ouvi Marçal Grilo, com a sua finura de espírito, dizer uma coisa deliciosa: “O verdadeiro segredo da Finlândia é ser um país onde ainda se contam velhas histórias, nos serões em família”. Isto é ser realmente culto e por alguma razão é o nosso ministro da Educação que mais aprecio.

Mais relevante para o que quero discutir, é o que se refere à educação superior: criação de 17 universidades, todas públicas e gratuitas, em 20 anos, a juntar às únicas três históricas, o que leva a uma taxa de uma universidade por cerca de 260.000 habitantes (em Portugal, uma universidade pública por cerca de 800.000 habitantes); 32% da população com formação superior (8% em Portugal); 1,8% do PIB gastos com a educação superior (1,1% em Portugal). Com isto, concordo com os economistas que escreveram no Público de 6 de Março que o “modelo finlandês” não é transplantável para Portugal, a menos que, nos próximos dez anos, pudéssemos investir só na educação – e na educação de outra mentalidade. Ou é com a Ota e o TGV que nos vamos aproximar da Finlândia e enfrentar os desafios de hoje e do futuro? Bem gostava de saber o que diriam disso hoje Bento Caraça e António Sérgio, por exemplo.

Como é o sistema finlandês de educação superior e como se adaptou a Bolonha? Na falta de conhecimento directo e de documentação tradicional, recorro ao sítio oficial do Ministério da Educação da Finlândia e aos relatórios nacionais apresentados a cada reunião dos ministros do processo de Bolonha, bem como aos dados do Eurydice. O Ministério da Educação também publica anualmente uma excelente brochura de relatório sistemático, de cerca de 40 páginas, a última das quais “Universities 2004” (uma ideia para o MCTES).

Educação pós-secundária

Antes de referir a educação superior, é importante lembrar o que significa na Finlândia a educação pós-secundária não superior (EPS). Paradoxalmente com o alto grau de escolaridade, esta não é relevante na Finlândia. Ao analisarmos a educação superior politécnica se verá porquê. A percentagem de habilitados com esta formação em relação à população etária correspondente é apenas de 2,2%, muito inferior à média da OCDE, de 9,0% (Education at a glance 2004). Enquanto nós precisamos vitalmente de muitos mais qualificados com formação de nível IV não superior, a Finlândia já deu um passo em frente.

Mesmo assim, para uma população de cerca de 5,2 milhões de habitantes, há cerca de 200 fornecedores de EPS (quantos temos em Portugal, para o dobro da população?), em boa parte os municípios, facultando 75 tipos de cursos em várias áreas: recursos naturais; tecnologias e transportes; comércio, serviços e administração; hotelaria, “cattering” e serviços domésticos; serviços sociais e de saúde; cultura, lazer e educação física. Os cursos são de 120 créditos (2 anos), dos quais pelo menos 20 créditos de estágio profissional. Como entusiasta da educação liberal, fiquei encantado com uma coisa que não conhecia: todos os cursos têm 20 créditos em comum, ocupados com aprendizagem da língua (incluindo o minoritário sueco), matemática, física, química, temas sociais e económicos relevantes para o emprego, saúde pública, arte e cultura. Vão ter isto os nossos CET? Conhecem a educação liberal

Sistema binário

O sistema de educação superior é binário, dividido entre universidades (20, todas públicas, para metade da nossa população e das nossas 14 universidades públicas) e politécnicos (29 públicos e outros privados). A separação de natureza, missão e objectivos é perfeitamente clara e bem podiam os nossos politécnicos aprendê-la (e também a universidade com tendência para se “politecnicizar”). A missão dos politécnicos é a de ensino, investigação e desenvolvimento, relação social com a comunidade. Não é muito diferente da nossa situação, mas espero que seja melhor compreendida do que cá. 

A universidade é frequentada por cerca de 174.000 estudantes (3,3% da população; Portugal, 2,1%) e o politécnico por cerca de 131.000 estudantes (2,5% da população; Portugal, 1,6%). 

O politécnico tem sido um sector de prioridade política. Passou de 37.000 alunos em 1996 para 110.000 em 2004, um aumento de 300% em oito anos! (Ai, Portugal!). A educação politécnica, de 3 a 4 anos, é de banda relativamente larga, ao contrário dos nossos usos. Com alguma diversidade, os cursos dirigem-se às seguintes áreas e designações: ambiente e recursos naturais; tecnologias, comunicações e transportes; ciências sociais, gestão e administração; turismo, restauração e serviços domésticos; serviços sociais, saúde e desportos; cultura (temos isto no nosso politécnico?!); humanidades (!) e educação; ciências naturais. É o paradigma de Bolonha aplicado ao politécnico, coisa que dificilmente verei em Portugal. Mas então a Finlândia não tem os nossos cursos politécnicos de tratadores de cavalos ou de terapia da fala? Creio que uma das regras do seu milagre é saber aplicar bem os recursos públicos.

Muito ao contrário da nossa situação, a inserção local dos politécnicos é muito forte, porque nenhum depende da administração. Com excepção de alguns privados ou fundacionais, os outros, públicos, são propriedade e geridos pelas autarquias ou por associações de municípios. 

O sistema politécnico ainda não obedece linearmente ao esquema de Bolonha, mantendo-se o grau de politécnico (sem designação específica), obtido ao fim de 3,5-4 anos de estudos. Recentemente foi introduzido um grau politécnico superior, com 1-1,5 anos adicionais.

Parece-me muito interessante comparar a distribuição dos estudantes nas diversas áreas da educação politécnica, na Finlândia e em Portugal. A tabela seguinte está organizada pelas áreas oficiais portuguesas. Tive de ajustar a esta classificação os dados portugueses do Observatório da Ciência e do Ensino Superior.

tabela1
  • Tecnologias, comunicações e transportes: não parece que esteja aqui a explicação.
  • Turismo, restauração e serviços domésticos: Portugal é que é predestinado ao turismo?
  • Serviços sociais, saúde e desportos: valia a pena desdobrar esta área. Na Finlândia, o peso  principal é o dos serviços sociais, entre nós o das tecnologias da saúde.
  • Cultura: palavras para quê?
  • Artes, humanidades e educação: pode parecer surpreendente a diferença, mas tem fácil explicação. Na Finlândia a formação de professores, desde a educação infantil, é universitária. 
  • Ciências exactas e naturais: parece-me ser a diferença mais clamorosa. A meu ver, liga-se ao investimento na investigação e à formação dos muitos quadros intermédios essenciais à investigação, industrial ou académica.

As universidades

A Finlândia – talvez para sua sorte – não tem uma longa história universitária. A criação da mais antiga, a de Turku, data de 1640. A segunda, a Universidade de Tecnologia de Helsínquia, foi criada já em 1908, na vaga de criação de escolas de engenharia como o nosso Instituto Superior Técnico. Praticamente todas as outras universidades finlandesas datam das décadas de 50 e 60 do século passado e cerca de metade até depois de 1980.

Com esta história recente, sem peso da tradição escolástica medieval, e ao contrário da nossa uniformidade, a Finlândia favoreceu alguma diversidade entre as suas universidades. Das vinte universidades, dez são tradicionais, facultando uma gama larga de formações. As outras são especializadas, três em economia e gestão, três em engenharia e arquitectura e as outras quatro em artes (!). No entanto, há um padrão geral, de influência humboldtiana, patente desde logo no preâmbulo da legislação geral: “a missão básica das universidades é a de desenvolver a investigação e de nela basear o ensino”. Não há qualquer estratificação em “universidades de investigação” e “universidades de ensino”, ao contrário da tese que começa a surgir entre nós.

Destaco algumas características que me parecem essenciais no sistema universitário finlandês:

  • A expansão do sistema é de tal forma rápida que, 2004, os alunos matriculados pela primeira vez representaram 51% do total da população estudantil universitária.
  • O acesso depende inteiramente das universidades e é muito selectivo, contrariando os efeitos perversos da massificação (apesar de uma taxa de estudantes/população superior à nossa). Anualmente, há cerca de 114,000 candidatos mas só são admitidos 29,000 (25%!). Para uma visão democrática imediatista, isto é horroroso, mas lembro que praticamente todos os candidatos excluídos têm acesso à educação pós-secundária e politécnica. Já escrevi sobre isto<>.
  • Os estudantes em tempo inteiro abandonam a universidade logo que já não estejam em condições de completar o curso na sua duração normal mais um ano!
  • O ensino pós-graduação abrange 12% da população universitária.
  • A saída dos estudos é tardia, prolongando-se pela pós-graduação e com uma duração média de 6,5 anos.
  • O bacharelato, e até o mestrado, inclui obrigatoriamente formações complementares, segundo o modelo do “major-minor”.
  • Não há formações para a educação em escolas ou departamentos próprios. Toda a formação de professores é feita nos departamentos de ciências ou de humanidades. 
  • Os cursos são leccionados em finlandês, sueco ou inglês. O ministério concede um orçamento suplementar para a expansão do ensino em inglês.
  • As universidades são gratuitas. No entanto, o Estado acaba por só contribuir com 65% do seu financiamento, o que demonstra a capacidade de “fund raising” das universidade finlandesas.
  • Apesar desta gratuidade, há um amplo programa de acção social, com bolsas que podem ir até aos 260 euros mensais ou com empréstimos garantidos pelo estado.
  • A organização tem por base as faculdades e, nelas, os departamentos.
  • O chanceler tem largos poderes políticos e estratégicos e é nomeado pelo Presidente da República de entre pessoas de grande mérito científico ou profissional, mesmo que não membros da universidade. A nomeação recai numa “short list” apresentada pelo senado. O principal órgão de governo, o senado, tem pelo menos 1/3 de membros externos. O reitor – um professor eleito pelo senado ou por uma assembleia – tem a seu cargo a gestão corrente, científica e pedagógica.
  • Cada faculdade tem um conselho representativo restrito, que nomeia o director, como cargo unipessoal.
  • A publicação de todos os relatórios e avaliações é obrigatória, nas duas línguas nacionais e em inglês.

Sistema de graus

O sistema finlandês era de ciclo único de longa duração (5 anos), à maneira alemã. A partir do corrente ano lectivo, está definitivamente implantado o sistema de Bolonha. O esquema de graus é o mais vulgar na Europa pós-Bolonha, 3+2. A duração padrão do doutoramento é de quatro anos. Em algumas áreas de pendor profissional, o mestrado pode ser substituído por um grau de igual duração, a licenciatura. Quer o bacharelato quer o mestrado exigem uma tese final, escrita numa das três línguas que referi.

As únicas excepções permitidas ao esquema 3+2 são os estudos de medicina, medicina dentária e de veterinária, com ciclo único conduzindo a um grau de licenciado (5-6 anos).

A determinação dos graus é bastante centralizada, cabendo às universidades adaptarem os currículos a orientações centrais (quadro de qualificações) para cada grau e cada disciplina.

Distribuição dos estudantes

Tal como demonstrado em relação ao politécnico, a distribuição dos estudantes pelas vinte áreas oficiais (excluo a teologia, sem relevo) é instrutiva, comparada com a situação portuguesa.

tabela2

Não é por aqui que parece valer a pena discutir a diferença entre os dois países. As maiores surpresas são as engenharias, com o pais da Nokia atrás de nós – mas não sei em que grau é que a nossa inflação de arquitectos distorce isto –, e o grande peso relativo, no nosso pais, do direito e da psicologia. Pode parecer bizarro o caso do desporto, mas creio dever-se a diferentes critérios de classificação, na medida em que boa parte dos nossos cursos, não o referindo explicitamente, são de ensino. Interessante e sugestivo é o maior peso das humanidades na Finlândia, o pais dito da tecnologia. Parece também que a Ordem dos Médicos finlandesa tem menor poder do que a nossa para limitar o acesso ao curso.

Parece-me que esta distribuição deve ser aferida pela dos estudantes do politécnico, como apresentado acima. É nesta que os finlandeses marcam a diferença e relembro que é a esse tipo de educação superior que dão a prioridade. Com esta demonstração e provavelmente relacionada com o “milagre finlandês”, sinto-me muito confortável com a tese que escrevi no meu artigo “Universidade para todos?”:

Precisamos de massificar a educação superior, precisamos de desmassificar a universidade. Alargar o acesso à educação superior não significa obrigatoriamente escancarar as portas das universidades.