João Vasconcelos Costa
As páginas dos jornais estão cheias com a efeméride dos 20 anos de criação do BE. Como todos sabem, resultou da fusão de três pequenos partidos. dois de extrema-esquerda sectária e dogmática, o PSR trostsquista de Louçã e o albanês, ex-maoista, UDP de Fazenda e Tomé. O terceiro fundador foi o Política XXI, personificado por Miguel Portas, com uma história pouco falada que vou relembrar. Fala-se também num quarto pilar, mas foi apenas uma pessoa, valendo o que valia, Fernando Rosas, a dar o cheiro do seu passado MRPP. Mas parece ser coisa tão importante que até esteve na origem da zanga entre Rui Tavares e Louçã, levada a nível de grande questão de integridade intelectual. Coisas…!
O Política XXi constitui-se em partido da maneira mais fácil, por uma OPA sobre um partido já existente e com grande património político, o MDP/CDE. Em crise de subsistência, envelhecido, o MDP/CDE foi confrontado com a proposta de revitalização apresentada por Miguel Portas (estou a vê-lo na reunião do MDP/CDE, a convite, como se fosse hoje). A maioria dos membros do MDP/CDE presentes, pretendendo acima de tudo preservar a sua herança política, deixou entrar o grupo de Portas dando-lhe logo todas as alavancas de poder no partido, a legalização, as sedes e o aparelho.
Foi ingenuidade dos meus camaradas, sempre generosos em termos de empenhamento democrático e socialista e sentindo que já não estavam com forças para uma tarefa que mais jovens se propunham levar a cabo. Eles, que tinham sido protagonistas da luta tenaz contra o abafamento pelo PCP, na rotura da APU, não se aperceberam que o discurso neo-comunista de Miguel Portas trazia todos os tiques do “partidão”. Portas era o produto puro e duro da UEC, de Zita Seabra. O discurso muda, mas a estrutura mental mantém-se. (A latere, não sou nada português nisto de me coibir de criticar os mortos. Não os endeuso em vida, porque hei-de fazê-lo em mortos?)
O grupo Portas, não muito numeroso, vinha da Plataforma de Esquerda, resultante da dissidência do PCP aquando do golpe de Moscovo no verão de 1991 e do apoio do PCP a essa tentativa de derrube de Gorbatchov e do fim da perestroika. A reunião do Hotel Roma consagrou a dissidência, com expulsão de alguns dirigentes do PCP, e a constituição de um movimento político (não recordo se chegou a ser formalizado), a Plataforma de Esquerda.
Mais tarde, com a aproximação à conquista do governo por Guterres, a Plataforma divide-se. Um grupo influente de personalidades mais conhecidas alinha com o PS e chega a ocupar lugares elegíveis sob etiqueta do PS, na AR, no PE e na Câmara de Cascais. Pina Moura é o principal dinamizador dessa corrente e vem a ocupar um lugar informal decisivo como conselheiro de Guterres, principalmente na organização dos Estados Gerais do PS.
É a primeira relação entre o MDP/CDE e essa corrente. Eu era membro da comissão política e fiz parte da delegação do MDP/CDE nessa conversações, constituída normalmente pelos já falecidos José Manuel Tengarrinha, Mário Casquilho e Fernando Silveira Ramos, e eu. Com Pina Moura, o principal interveniente do outro lado, vieram em pelo menos quatro reuniões os mais entusiásticos pró-aliança com o PS, José Luís Judas e Mário Lino (vieram os três a ocupar lugares de responsabilidade com o PS) e, notoriamente mais comedido e crítico, José Barros Moura.
Nessa altura, o MDP/CDE não alinhou nas propostas vagas e sem conteúdo político firme de “casa comum de esquerda”, slogan de Miterrand que estava a ser invocado. No entanto, veio a participar empenhadamente nos Estados Gerais, como esforço unitário para derrube do cavaquismo, pela participação nos Estados Gerais do PS, nomeadamente pela representação para-oficial por meio de José Manuel Tengarrinha, Mário Casquilho, Alfreda Cruz e eu próprio, em grupos de trabalho importantes e nas reuniões políticas gerais. Tengarrinha e, se não me engano, também Mário Casquilho, foram oradores na sessão final, no Coliseu.
Note-se, portanto, que o MDP/CDE, embora com grande abertura ao PS, manteve uma atitude de distanciamento crítico e de total independência, como também se tinha visto, uns anos antes, na coligação de apoio à candidatura de Jorge Sampaio à CML.
Mas foi a relação com o PS que dividiu a dissidência do PCP de 1991. Um grupo, não me lembro se maioritário ou não, liderado por Miguel Portas, rejeita a tentativa de aproximação ao PS do grupo de Pina Moura e constitui um movimento próprio, a Plataforma de Esquerda. É este grupo que faz a fusão com o MDP/CDE. Mas convém primeiro fazer alguma história do MDP/CDE. Infelizmente, eu não estou nas melhores condições para isto, porque a minha ligação foi tardia. Como quem sabia bem já não é vivo, vou pegar-lhes no legado de memória. A propósito, seria bom que alguns ainda por cá se juntassem para fazer a história do MDP/CDE: Amílcar Ribeiro, António Taborda, Alfreda Cruz, Orlando Almeida, Amaro Espírito Santo, Manuela Carvalho, outros.
A CDE aparece em 1969, para as eleições “livres” prometidas por Marcelo Caetano. Exprimia a corrente política influenciada pelo PCP (mas com adesão de muitos outros setores, nomeadamente de católicos progressistas) que defendia que o fascismo só podia ser verdadeiramente derrubado pela completa destruição dos seus sustentáculos políticos, económicos e sociais, sem conciliação com correntes de aligeiramento do regime afinal presas de contradições com a situação colonial e com a fragilidade do sistema oligopolista. Do outro lado, a oposição liberal-republicana, maçónica, depois corporizada no PS, pronta a desmarcar-se do “comunismo” perante a “abertura” marcelista.
A vitória eleitoral sobre a CEUD soarista e, em 1973, o sucesso do Congresso de Aveiro, já com participação do PS, convertem a CDE, ou MDP, em grande força política antifascista e dão-lhe o estatuto reconhecido consensualmente de movimento popular de resistência.
A história teria sido outra se o MFA, tal como reconheceu os movimentos de libertação, tivesse reconhecido apenas o MDP como o movimento de libertação interno. As pressões conjunturais e ideológicas da conceção tradicional da democracia fizeram vingar uma ênfase partidária imediata, objetivamente divisionista. A Aliança Povo-MFA acabou por nunca ter verdadeira expressão política e, no jogo partidário, que acabou por interessar a todos, não aproveitou o mais natural, que seria a aliança entre o MFA e a organização consolidada do movimento popular, não partidário, o MDP/CDE. Claro que isso seria difícil a partir do momento em que o PS se sente incapaz de dirigir o MDP/CDE e, por outro lado, o PCP não é capaz de vislumbrar os perigos futuros do seu sectarismo e triunfalismo. Espírito de diálogo é que também faltava inteiramente.
O partidarismo obrigou o MDP/CDE a transformar-se em partido, para concorrer a eleições, em boa parte para compensar o anticomunismo primário de largas camadas do povo português. Foi o fim anunciado do MDP/CDE.
O fraco resultado eleitoral do MDP/CDE na constituinte e na primeira AR foi chocante para muita gente de esquerda e diminuiu a imagem mítica da organização heroica do antifascismo. A direita e o PS conseguiram fazer passar a ideia de que o MDP/CDE era uma segunda expressão do PCP e que a então APU era um instrumento eleitoral e, na verdade, como se viu depois, o MDP/CDE estava infiltrado por dirigentes que de facto se sentiam comunistas, não o podendo ser por conveniência ou por regras próprias do PCP, nomeadamente quanto ao comportamento na prisão.
É difícil explicar bem o lento processo de autonomização do MDP/CDE em relação ao PCP. Pessoalmente, lembro-me de um congresso na Voz do Operário, creio que o V, em 1984, em que eu, já não membro do PCP há uns anos, comecei a ver que ali havia alguma luz para a minha postura crítica de esquerda.
Mais tarde, em 1987, emerge a grande cisão, com a rotura da APU. Não era membro do MDP mas, por convite da minha saudosa amiga Helena Cidade Moura, assisti a todas as reuniões principais, no Hotel Berna. Antes do mais, realce para a coragem de José Manuel Tengarrinha, militante de sempre do PCP, mas homem sempre em interrogação inquieta. Também, como nos diz o aforisma, sempre por detrás uma grande mulher, a Bárbara, com a experiência política da Berlim dos anos 70, com o conhecimento dos verdes alemães originários.
Temos de encurtar a narrativa. Essencialmente, confrontaram-se uma linha vincadamente pró-comunista, que dominava a direção do MDP/CDE e que veio a constituir a vestigial Intervenção Democrática, e as bases, fartas do domínio sectário do PCD na APU. Ganhou claramente esta corrente, a dos “puros”. Foi a ela que a seguir aderi.
O novo MDP/CDE teve dificuldade, que se viu inultrapassável, em afirmar a diferença. Um erro foi o de se tentar afirmar pela negativa, coisa que nós, politicamente experientes, devíamos ter evitado. “O MDP/CDE não é marxista-leninista nem social-democrata”. Grande verdade, mas só para uma franja de gente que reflete sobre os caminhos do socialismo.
Corrigiu-se, mas tarde. Durante os três ou quatro anos seguintes, o MDP/CDE procedeu ao que julgo ter sido o mais profundo debate político e ideológico em Portugal. Mensalmente, reuniam-se (Hotel Roma, em Lisboa) uma centena de militantes de todo o país, para discutir um vultuoso conjunto de proposta políticas e ideológicas que acabaram por culminar no conceito de partido alternativo.
Essencialmente, era uma questão de “geografia”. Não se tratava de saber onde nos posicionávamos num plano bidimensional, à esquerda ou à direita de quem quer que fosse. Era mais outra dimensão, acima desse plano. Toda uma nova conceção, que agora não posso pormenorizar, da noção de partido/movimento, de balanço entre a infraestrutura e o sistema de hegemonia cultural e ideológica, de contemplação dos modos de viver e das ambições individuais, da compreensão da mudança social, nomeadamente da estrutura de classes, do impacto das novas tecnologias, etc. Em destaque, o ambiente.
Promovemos várias iniciativas e estabelecemos contactos internacionais neste sentido, mas já foi muito difícil. Por exemplo, no campo internacional, quando os verdes tinham grande impacto internacional, a criação do fantoche partido verde pelo PCP criou-nos muitas dificuldades de apoio internacional. As histórias que eu podia contar sobre os Verdes, nacionais e estrangeiros…
Não éramos jovens, os mentores ideológicos e dirigentes do novo, alternativo, MDP/CDE. Sabíamos que tínhamos descoberto vias que hoje estão na fronteira da reflexão política. Mas havia a contradição, bem conhecida, desde a XI tese sobre Feuerbach, com a capacidade de ir da compreensão para a transformação.
É aqui que aparece Miguel Portas. Seduziu a maioria do MDP/CDE com a perspetiva de concretizar, com a militância dos seus jovens companheiros, as nossas construções e propostas ideológicas e políticas. lembro-me bem do seu discurso empolgante e demagógico, mas que caiu na grande generosidade dos membros do conselho nacional alargado do MDP/CDE. A maioria, que ainda hoje respeito, admitiu-os como membros e procedeu a uma alteração dos órgãos dirigentes que lhes deu o controlo do MDP/CDE. Também à alteração do nome do partido para Política XXI.
Outros, eu incluído, e lembro-me de Tengarrinha, Casquilho, Orlando Almeida, discordámos e tentámos alternativas, sem sucesso. Acabámos por não ser capazes de criar outra coisa com sucesso. C’est la vie!
Também já não são muitos, ativos, os que passaram para o grupo Manifesto, de Miguel Portas. Valeu a pena? pelo que bem conheço desses grandes amigos, não se devem rever inteiramente no que acabou por ser o destino desta dinâmica, o BE.
Estou agora escrever um livro de teoria/prática política. Um capítulo essencial é sobre coisa que ainda hoje não existe, o partido da terceira (ou quarta, contando com o tempo) dimensão, o partido alternativo. Nos anos 90, o MDP/CDE fez toda a teoria sobre isso, mas lamentavelmente não teve as condições para fazer a prática. Tenho muita documentação sobre isso. É meu dever publicá-la e vou fazê-lo nos próximos tempos. Peço ajuda aos velhos companheiros.
Havia uma esquerda que era possível. Infelizmente, não a conseguimos fazer.