João Vasconcelos Costa
Vai passando a agitação com a lei do financiamento dos partidos. Não me apeteceu discuti-la enquanto dominava a emotividade, o aproveitamento demagógico – erradamente chamado de populista, conceito bem diferente – e o aproveitamento tático, no meio de muitas inexatidões nas análises da questão.
Refiro até o Presidente da República porque, em vez de abertamente discordar do conteúdo da lei, deu ênfase ao processo, assim alimentando as reações imediatas das pessoas e as menos imediatas de opinadores.
Os partidos também não estão isentos de culpas neste jogo. O CDS apareceu virtuoso, mas participou em todo o processo dito “secreto”. O PS vacilou, depois do veto. O BE participou, votou a favor mas apressou-se a dar o dito por não dito ainda antes do veto. O PSD refugiou-se na eleição do líder. Valha a exceção coerente do PCP.
Façamos uma reflexão mais distanciada e geral sobre o problema do financiamento dos partidos. Não há uma norma geral. Os mecanismos em diferentes países oscilam entre dois extremos, o financiamento privado e o financiamento público.
O financiamento privado, sem limitação, é praticamente o único nos países de raiz política anglo-saxónica. A contrapartida é, teoricamente, o controlo rigoroso e a transparência. O controlo, nos países da Comunidade Britânica, é exercido por comissões eleitorais independentes e com grande poder, mesmo sancionatório e respondendo perante os parlamentos. Em regra, os donativos, muito avultados no caso americano, são publicitados.
Na maioria dos casos, como em Portugal, o financiamento público associa-se ao privado, sujeitando-se este a condições e limites. A razão do financiamento público é, primeiro, o princípio da imprescindibilidade dos partidos à democracia.
Em segundo lugar, o financiamento público tenta obviar riscos do privado: o aprisionamento por interesses económicos, a dependência das condições de crédito, a intromissão nas campanhas eleitorais internas para líder, a troca de favores, o carreirismo. Combate-se a corrupção e as “malas de Macau”.
Tudo isto tem alguma coisa de comédia de enganos. De facto, legislando em causa própria sobre o financiamento, os partidos fazem um jogo de soma zero, “eu coço as tuas costas, tu coças as minhas”.
Este sistema duplo é também o português (Lei 19/2003): a) subvenção aos partidos parlamentares proporcional ao número de votos – 1/135 do salário mínimo nacional (SMN, hoje 580 euros) por voto; b) subvenção para campanhas eleitorais, em reembolso de despesas, com um máximo conforme o tipo de eleições (por exemplo, 20000 vezes o SMN, ou seja 11,6 milhões de euros, para eleições legislativas e também de 60 SMN por cada candidato); c) receitas próprias – quotas, donativos de pessoas singulares (não empresas), angariação de fundos, rendimentos do património, empréstimos e heranças – com o limite de 50 SMN para as receitas cobradas em dinheiro e de 1500 SMN de angariação de fundos (pequena fração da Festa do Avante).
Todas estas restrições já foram menos exigentes em leis anteriores, ao passo que se aumentou o financiamento público. É bem conhecido que tudo isto é “ad usam delphini”, atingindo obviamente o PCP e a sua capacidade de mobilização para a quotização e, principalmente, para a realização da Festa do Avante. Por outro lado, fazendo-se o financiamento público com valor elevado e proporcional à votação, favorece-se os grandes partidos de aparelho.
Atualmente, a fiscalização é exercida, com poderes sancionatórios, pelo Tribunal Constitucional, assessorado pela ECFP, composta por três membros partidariamente independentes (embora possam ser filiados, mas sem atividades públicas) eleitos pelo Tribunal.
Uma mudança positivamente significativa da lei atual (2003) e reforçada pela alteração de 2017, vetada, foi a transferência da capacidade fiscalizadora e sancionatória da Comissão nacional de Eleições (CNE) para o Tribunal Constitucional, dado que a CNE é composta por eleitos pela Assembleia da República e membros nomeados pelo Governo. Na prática, indiretamente, eram os partidos a fiscalizarem-se a si próprios.
Concluindo, algumas notas e propostas.
1. Deve-se discutir as atuais limitações ao financiamento privado, mas mantendo a proibição de financiamento por empresas. Admitindo que os donativos podem ser identificados, publicitados e fiscalizados eficazmente, poderia pensar-se que a penalização por abusos da relação entre partidos e empresas seria feita eleitoralmente. A prática, até em casos de corrupção (“roubo mas faço”) desmente-o.
2. O pagamento de quotas não deve exigir a forma de cheque ou transferência e não deve haver limite para as receitas de angariação de fundos, esclarecendo-se qual deve ser o seu âmbito.
3. As subvenções não devem ser exclusivamente vinculadas aos votos, que não reflete as necessidades de financiamento funcional. Sendo partidos de implantação nacional e local, um partido grande como o PS e um pequeno como o PCP têm muitas despesas gerais e da mesma ordem de grandeza, mais relacionadas com a implantação do que com os votos: sedes, funcionários, despesas correntes, viagens, publicidade, etc. Defendo um sistema misto com um significativo financiamento de base, tendencialmente uniforme, juntamente com uma parte variável que contemple outros fatores. Um modelo de financiamento que conheço bem, por ser muito usado internacionalmente nas universidades e institutos de investigação, é o de “matching funds”, isto é, subvenção pelo Estado proporcional às receitas angariadas pela entidade, neste caso partido.
4. Se a democracia exige partidos, ela não se esgota na democracia representativa e o financiamento político deve contemplar os possíveis agentes da democracia participativa. Todavia, é coisa extemporânea quando os poderes se recusam de facto, “et pour cause”, a constituir e promover o sistema participativo.
5. Se tivéssemos uma democracia com fundamento social, os partidos de militância e de base social nas classes trabalhadoras seriam reconhecidos e premiados na recolha de fundos “de militância”, como as quotas e as festas. É um sinal de dedicação política e de participação cívica.
6. Embora reconhecendo que teve haver subvenções públicas, é de pôr em dúvida o seu atual montante, cerca de 14,3 milhares de milhões de euros, cerca de 19% do orçamento da Assembleia da República e bastante mais do que a despesa corrente do SNS.
7. Mais eficazmente do que ao Tribunal Constitucional, não vocacionado para contas apesar de contar com a ECFP, a fiscalização e o poder sancionatório deviam competir ao Tribunal de Contas.
8. A penalização e a dissuasão não se devem limiar às multas. Em alguns países, chega-se até à perda de mandatos ou ineligibilidade de dirigentes, o que magoa muito mais.
Finalmente, quem deve legislar sobre esta matéria? Constitucionalmente, claro que o parlamento. Mas, em interesses próprios, quem guarda os guardas da legalidade? Numa democracia não limitada à restrita democracia representativa, podem-se sempre imaginar linhas de decisão paralelas, sociais ou populares, para pesos e contrapesos. Na situação presente, só pode valer o sentido do serviço público e da ética republicana (estarei a brincar?…) e a máxima transparência, indo para além do que, como no caso de agora, é legal mas não correto politicamente. Nem tudo o que é legal é moral.
A fechar, são tantas as dúvidas sobre esta matéria sensível que reforçam a conclusão mais geral de que a democracia tem de ser repensada.
15.1.2018