O Estado promove a banha de cobra

João Vasconcelos Costa

De vez em quando, ocorre-me que a minha formação inicial é médica e que tenho capacidade e interesse para escrever sobre coisas da saúde.

Mas começo por uma consideração mais geral, sobre o irracionalismo. É um grande paradoxo dos nossos tempos que, com tal desenvolvimento da ciência e com toda a solidez das bases metodológicas e de teoria do conhecimento, que, sem esquecer os gregos, nos vêm já desde o iluminismo, ao mesmo tempo campeiem as mais diversas manifestações de irracionalismo, em boa parte amplificadas pelas redes sociais.

São os mais diversos esoterismos, o culto do mistério e dos segredos iniciáticos, a proliferação de seitas religiosas, as teorias de conspiração, etc. Se até as televisões, em programas de maior audiência, não dispensam videntes e tarólogas, versão sofisticada e mediática da velha cigana a ler a palma! Não tenho a certeza, mas julgo que até a RTP1, de serviço público…, tem a colaboração regular de uma dessas senhoras e “profissionais”.

Na saúde, vivemos uma época de enorme crescimento da investigação em ciências biomédicas, a facultar bases de conhecimento e de aplicação que revolucionaram a compreensão, o diagnóstico, a prevenção e o tratamento das doenças. Nos meus tempos de estudantes e jovem médico, a medicina ainda era muito empírica. Hoje, o padrão é o da chamada medicina baseada na ciência.

Não se quer dizer que só a ciência nos conduz à verdade e muito menos a uma verdade absoluta, inexistente. Mas, indiscutivelmente, e sem prejuízo de outras formas de aquisição de conhecimento ou de elaboração mental (filosofia, arte), a ciência é hoje a melhor aproximação para a explicação e para a previsão do (ou dos?) universo e, nele, do homem. Além do mais, é a única forma de conhecimento que tem em si a possibilidade de se refutar, aceitando emendas ou mesmo revisões profundas, como foi com a relatividade ou a mecânica quântica. É mesmo essa refutabilidade, também dita falsificabilidade, muito discutida por Karl Popper, que melhor define a natureza da ciência.

Isto é impossível, por exemplo, com a religião e, de uma forma geral, com os sistemas de pensamento absolutos e eternos. Nunca se viu, e creio que nunca se verá, a teologia, usando métodos teológicos, emendar as ideias geradas pela fé ou pelas diversas revelações divinas (ou “fatimais”).

Falando de irracionalismo em medicina ou saúde ocorrem-me logo a atitude antivacinal (“antivax”); os muitos regimes dietéticos sem fundamento e muitas vezes perigosos, com o seu comércio de suplementos, extratos e mais, geralmente muito mais caros do que os equivalentes vendidos como medicamentos; e as medicinas alternativas. Os dois primeiros casos dão pano para mangas de discussão. Fiquemos por ora com as medicinas alternativas.

Há casos em que o seu fundamento é tão delirante que nem vale a pena a discussão, ou por se estar a falar com pessoas sensatas ou então com fanáticos com quem, em todos os casos, discutir é perder tempo, coisa cada vez mais preciosa, na minha idade. Por exemplo, a iridologia postula que toda a nossa saúde, o estado normal ou patológico de cada órgão ou da mente, estão descritos, como num código de barras, nas riscas aleatórias (matemática do caos) da nossa íris. Medicina fácil e expedita: tira uma fotografia aos olhos, manda-ma com um cheque e vai de volta o diagnóstico e a receita.

O mesmo para outras fantasias de sinalização do estado dos órgãos em zonas distantes, como pontos nos pés, nas orelhas, na palma das mãos ou em pontos nos ossos e articulações (“osteopatia”). Esta última e uma sua relacionada a “medicina” quiropráxica, até podem ter alguns benefícios quando a manipulação alivia uma dor local, mas certamente não tem nada a ver com diabetes ou doença das coronárias e bem pode causar um AVC por traumatismo das artérias vertebrais.

Note-se que, em geral, estas e outras medicinas alternativas não resultam de uma experiência longamente acumulada, mas da mente e fantasia de um único homem, muitas vezes por revelação divina.

Há que considerar três casos especiais, pelo impacto que têm: a naturopatia, a acupuntura e a homeopatia. O tratamento com produtos naturais é mais uma forma de medicina arcaica do que de medicina alternativa (exceto no que tem de rejeição filosófica ou ideológica da medicina). Claro que sempre esses produtos produziram efeito e que muitos medicamentos foram sintetizados a partir do conhecimento de produtos naturais. Simplesmente os medicamentos são puros, não estão misturados com outros produtos nocivos da mesma planta e são fabricados e severamente controlados para produzirem o máximo de efeitos terapêuticos com o mínimo de efeitos secundários, adversos. Da mesma forma o reiki, que não é mais do que um aconselhamento sobre o bem-viver físico e psíquico, coisa que todo o bom médico faz.

Nos outros casos, a apreciação do mérito do método pode ser teórico ou prático. Teoricamente, tanto a acupuntura como a homeopatia fundamentam-se em princípios que vão contra toda a evidência científica. A acupuntura baseia-se num princípio vitalista, qi, considerado como distinto de qualquer forma estudada de energia ou de estado da matéria, e circulando por meridianos, linhas no corpo que até vão sendo modificadas pela literatura da área. Nunca ninguém viu nada de anatómico, nem artérias, nem veias, nem nervos, seja mais o que for, que dê suporte material a esses meridianos ou a qualquer sistema de circulação de qi.

Teoricamente, também a homeopatia é um absurdo científico. Baseia-se no “princípio” de que uma substância nociva se converte em seu contrário, isto é, medicamento contra si própria, se diluída sucessivamente em água. O grau de diluição chega a ser superior ao número de Avogadro, o que significa que já não existe na solução nada a não ser água pura. Dizem então os homeopatas que essa água fica com memória. É preciso tratos de polé à inteligência e à cultura mínima para se ver como um átomo de oxigênio e dois de hidrogénio têm uma mente com capacidade de memória.

Mas a abordagem mais útil é a prática, a da análise dos propalados benefícios dessas “medicinas”. Há estudos favoráveis, mas habitualmente em pseudorrevistas científicas e patrocinadas pelos interesses económicos envolvidos. Dirão que o mesmo se passa com a indústria farmacêutica, mas não é no domínio das publicações científicas. A análise desses estudos mostra incongruências e erros metodológicos; e estudos científicos corretos e independentes não mostram mais do que efeito placebo (efeitos psicológicos da crença do paciente em que está a ser tratado).

Dito tudo isto, não se deve pensar que cada um é livre de escolher e pagar o terapeuta que quer? O problema é muito mais complicado, porque há custos para a saúde pública, para os contribuintes e para a credibilidade do sistema de saúde.

Admitamos – mas não é verdade – que não há perigos nas medicinas alternativas e que se está numa situação de “mal não faz e o doente tem o direito de gastar como quer o seu dinheiro”. Mesmo assim, há razões para o Estado, pelo menos, não sancionar ou proteger tais pseudomedicinas.

Em primeiro lugar, põe-se uma questão geral do papel do Estado no progresso cultural do povo. Está consagrada a liberdade de opinião e expressão. No entanto, isso não implica que um professor ou um programa escolar tenham o direito de elogiar o fascismo ou o colonialismo, negar o holocausto ou substituir o evolucionismo pelo criacionismo.

Ora é exatamente o que se passa com as medicinas alternativas. Insisto em que não só elas são pseudociência fantasiosa e irracional, e que não demonstram a sua utilidade, como essa utilidade é mesmo negada cientificamente sem margem para dúvida.

Em segundo lugar, há o uso com abuso de dinheiro público, quando unidades do SNS praticam medicina alternativa. É má prática médica e é delapidação de recursos públicos, num setor tão carenciado.

Também há custos indiretos, individuais e coletivos. O comportamento “à Steve Jobs” não leva só à ineficácia terapêutica. É que, optando pela medicina alternativa, o doente não se trata como deve ser e agrava o seu estado de saúde, com riscos porventura fatais e que até podem ter reflexos sociais e económicos públicos.

Politicamente, entre nós, tem sido o Bloco de Esquerda o principal paladino das “terapias não convencionais” (TNC), designação que vamos adotar adiante, por ser a que consta das variadas leis. Geralmente, tem sido acompanhado pelo CDS, com a abstenção ou, menos frementemente, a oposição do PS e do PCP (no entanto, foi o PCP que propôs a aceitação das TNC na Madeira).

Esta aliança BE-CDS é curiosa, suscitando alguma consideração sobre a correlação social com a atitude neorromântica, niilista e irracionalista em crescimento. Também pode ser muito relevante que seja membro do BE e seu antigo dirigente o “dr” Pedro Choy, o mandarim das TNC em Portugal, com dezenas de estabelecimentos de atividade de TNC.

O argumento principal para a consagração legal das TNC é a necessidade da sua regulamentação. Como elas em todo o caso existem, mais vale, dizem, estabelecer regras e, como uma vez disse João Semedo, o dirigente do BE, “é uma área completamente desregulada, onde tudo é possível, as boas e as más práticas”. Eu gostaria de saber é quais são as boas práticas de TNC…

O Estado deveria assim regular também outras profissões, como vidente, cartomante ou astrólogo, que até têm lugar marcado em programas da televisão pública.

De facto, isto esconde muito mais. Primeiro, assenta numa atitude muito favorável às TNC, não apenas “um mal inevitável” a controlar pela lei. Leia-se o deputado do BE e principal interventor nesta matéria, Moisés Ferreira: “técnicas e terapêuticas com impacto positivo na saúde”; “esses profissionais estão a ter a integração no mercado do trabalho que merecem”; “embora partam de bases filosóficas diferentes da chamada (sic) ‘medicina convencional’, (…) podem representa uma melhoria do bem-estar e da saúde”.

Essa das bases filosóficas é gato escondido com o rabo de fora. Fica claro que as TNC têm uma base filosófica. Agora de certeza o que não tem qualquer base filosófica é a medicina. A sua base é de evidência empírica e, cada vez mais, científica.

Também dificilmente se pode considerar simples intenção regulatória e de defesa dos doentes a isenção de IVA, como no caso dos médicos ou dentistas, aprovada com base em projetos de lei do CDS e do BE e PAN e votada com a abstenção do PS e do PCP. Porquê abstenção? Em consideração pela “geringonça”? E o pior foi a isenção ter efeitos retroativos, o que valeu só ao tal Pedro Choy uma boa maquia.

A primeira lei sobre as TNC data de 2003 mas só foi regulamentada em 2013. No essencial, identificam-se as TNC a serem reconhecidas, exige-se licenciatura específica e célula profissional para os seus praticantes e abre-se um período de exceção do requisito de licenciatura para os que à data da lei já eram profissionais de TNC.

Isto não satisfez as escolas atuais e os seus alunos, que reivindicam licenciaturas de secretaria para os cerca de 20000 profissionais que as frequentaram, bem como um regime de exceção às leis do ensino superior que as transforme em escolas politécnicas com capacidade de conferir o grau de licenciado. Estas propostas já estiveram em discussão parlamentar, novamente por iniciativa do BE, mas foram reprovadas.

Em 2014 foram publicadas várias portarias que fixam a caracterização e o conteúdo funcional das profissões de TNC. São um mimo de delírio anticientífico, legalmente consagrado. Deixo só alguns exemplos.

“A medicina tradicional chinesa é (…) uma terapêutica (…) com uma conceção holística, energética e dialética do ser humano; (…) que investiga, desenvolve e implementa planos de tratamento utilizando a acupuntura, a fitoterapia, a massagem tuiná, a dietética da medicina tradicional chinesa, os exercícios de chi kung e tai chi terapêuticos e outros para melhorar e regular a função e tratar as «desarmonias energéticas» tais como são entendidas pela medicina tradicional chinesa.”

“A homeopatia trata as doenças com medicamentos que, numa pessoa saudável, produziriam sintomas semelhantes aos da doença.”

“Os medicamentos homeopáticos baseiam-se no princípio de que diluições de moléculas potencialmente ativas retêm a «memória» da substância original.”

E o ensino das TNC?

A “lei dos graus” exige para a criação de uma licenciatura que a escola “disponha de um corpo docente próprio, qualificado na área em causa e adequado em número, cuja maioria seja constituída por titulares do grau de doutor ou especialistas de reconhecida experiência e competência profissional”.

Ora não há doutores nessas áreas “científicas”, nem mesmo no mercado internacional. Então o Bloco de Esquerda – sempre ele – apresentou um projeto de lei para a criação da figura de especialistas em TNC, para efeito de preenchimento do requisito da lei dos graus, claro que a atribuir a praticantes das TNC e sabe-se lá com que critérios de avaliação “pelo órgão científico ou técnico-científico do estabelecimento de ensino superior”.

Não passou mas deu-se a volta incluindo nos planos de estudos muitas disciplinas convencionais – que ironia – regidas por doutores.

E ainda como se tudo isto não bastasse, a agência de acreditação de cursos, A3ES, por exemplo tão exigente na avaliação de novos cursos de medicina, todos chumbados, aprova esses cursos de TNC.

Incrível! Mas já estou preparado para licenciaturas, talvez doutoramentos, em ciências divinatórias, em espiritismo ou em tarotologia.

18.4.2018