João Vasconcelos Costa
As décadas de oitenta e noventa foram de reformas universitárias convergentes por toda a Europa, entre as quais avulta a da concessão de autonomia, de maior ou menor grau, incluindo a autonomia estatutária. Na nomenclatura de Neave e van Vught, passou-se da fase de “Estado intervencionista” para “Estado facilitador”. Vários factores contribuiram para isto: o sector privado passou a ser o maior empregador e a determinar mais fortemente a função e política das universidades, a anterior homogeneidade legal passou a ser um entrave à diversidade e à capacidade de mudança e adaptação aos desafios, a burocracia central deixou de conseguir lidar com os problemas postos às políticas e à gestão pela massificação e cada vez mais as universidades têm que recorrer a financiamentos não provenientes do Estado.
A tendência actual é a de o controlo pelo Estado ser substituído pela autonomia com supervisão pelo Estado. Os Estados, em maior ou menor grau, transferem para as universidades a capacidade de se organizarem das formas mais adequadas às suas especificidades, de definirem os seus objectivos estratégicos e as vias práticas de os alcançar, de elaborar os seus planos de desenvolvimento, de efectuarem a gestão corrente. Reservam para si, como garantes do interesse público, as grandes decisões normativas e ordenadoras do sistema, a regulação do acesso, a validação social dos títulos e qualificações e, frequentemente, a regulação do sistema, no que se refere à criação de cursos. Em alguns casos extremos, como no português, chega-se mesmo à auto-regulação, em que o Estado nem intervém na regulação da oferta de cursos. De maior ou menor grau, pode-se dizer que a autonomia é uma característica essencial das universidades, como afirma muito enfaticamente a Magna Carta das Universidades Europeias (Bolonha, 1988).
Na Europa, a autonomia é muito acentuada no que respeita à organização interna, à gestão administrativa, ao ensino e à investigação, mas, comparativamente com os Estados Unidos, ela é reduzida quanto ao financiamento (isto é, à independência financeira do Estado), quanto à selecção dos alunos e quanto ao estatuto do professorado, que, na generalidade da Europa, é de funcionário público e estreitamente regulado pelos governos.
A autonomia é um grande desafio às universidades. Ela só faz verdadeiro sentido se for um instrumento da sua maior eficácia e de melhor e mais pronta resposta às novas exigências sociais. Ela condena-se a si própria se, diferentemente, resultar em atitudes de ensimesmento da universidade, de corporativismo, de divórcio autárcico com as realidades e com a sociedade circundante.
Por isto, a autonomia tem uma outra face da moeda, indissociável. É a responsabilidade ou prestação de contas, no sentido do termo inglês “accountability”. O Estado concede às universidades um alto grau de independência; tem o direito, mesmo o dever, de se certificar de que os meios disponibilizados foram devidamente usados, de avaliar o progresso da actividade das universidades. Os contribuintes pagam o seu financiamento, em montante avultado. A sociedade exige-lhes múltiplas funções e tem o direito de esperar que elas sejam cumpridas com qualidade. É também por isto que a discussão da autonomia não pode ser dissociada da da avaliação, a que as universidades têm vindo a ser sujeitas e que já entrou na tradição e na cultura universitárias.
Em Portugal, a autonomia universitária, que é um imperativo constitucional, foi estabelecida pela Lei nº 108/88, de 24 de Setembro. A lei garante a autonomia científica, pedagógica e disciplinar e permite às universidades auto-organizarem-se e definirem estatutariamente os seus procedimentos de gestão. Confere-lhes também autonomia administrativa e financeira. Mas, no essencial, como organismos públicos apesar de dotados de autonomia, as universidades estão sujeitas ao enquadramento jurídico geral da administração pública, no que toca, por exemplo, à gestão de pessoal e à gestão administrativa e financeira, mesmo que com algumas disposições ditas de flexibilização, mas não significativas (Decreto-lei nº 252/97, de 26 de Setembro). São quadros jurídicos rígidos, sem margem de manobra para a satisfação de requisitos institucionais específicos ou para facilitarem o enquadramento e estímulo de experiências inovadoras. Estão sujeitas a uma burocracia pesada, inadequada à complexidade e especificidade de funções da universidade.
Mesmo um enquadramento jurídico específico das universidades, como é o estatuto da carreira docente universitária, e que devia ser um instrumento da estratégia universitária e do seu melhor posicionamento na luta do mercado pelos melhores quadros, é uniformizante, de aplicação geral a todas as universidades e não fomenta ou premeia a vantagem competitiva das mais avançadas.
O primeiro problema que se põe e que a lei da autonomia não resolve, é o da figura jurídica das universidades. A lei da autonomia caracteriza-as como pessoas colectivas de direito público mas não atende a muitas razões que justificariam a caracterização jurídica das universidades como figuras próprias e diferentes da administração pública em geral. Quando muito, referindo a autonomia administrativa e financeira, remete-as para a situação dos muitos institutos públicos ou fundos e serviços autónomos com esse tipo de autonomia.
Recorrentemente, discute-se se são órgãos da administração indirecta (institutos públicos) se da administração autónoma, mas não fica claro dessa discussão, já suscitada pelo CRUP num estudo de 1996 (“Repensar o Ensino Superior. II – A Lei da Autonomia das Universidades”) o que isto significa na prática e em que é que afectaria a actual autonomia. Não sendo jurista, creio, todavia, que as regras de relacionamento com o Estado, as normas administrativas, o regime de aquisição de bens e, em geral, todos os procedimentos burocráticos continuariam os mesmos.
As universidades parecem satisfeitas com a actual situação. Nem no referido documento nem depois, o CRUP propõe a revisão do perfil jurídico das universidades. Só ocasionalmente se ouve uma voz em sentido contrário, indo até à transformação voluntária em empresas públicas, como defendido por A. Sá Fonseca num artigo nesta colecção de páginas (“As universidades que temos…”). Não vou tão longe, mas penso que é necessário um estatuto jurídico mais liberal e desburocratizante.
As universidades são organismos de grande complexidade. Lidam com actividades com características funcionais e organizativas muito diferentes, seja o ensino, seja a investigação, sejam os serviços à comunidade. Comportam pessoal das mais diversas qualificações e com especificidades particulares de estatuto funcional e de evolução de carreira. Integram unidades estruturais diversas, desde as grandes faculdades polivalentes às escolas de vocação profissionalizante estreita e ainda aos institutos de investigação ou escolas de pós-graduação. Estão ligadas ao desenvolvimento regional, nuns casos, noutros têm uma vocação mais supra-regional. Têm uma cultura muito própria, relativamente distinta da cultura da administração pública. Tudo isto justificaria uma configuração jurídica especial, sem sujeição às regras gerais (e tantas vezes antiquadas) da administração pública.
Um grande número de instituições de relevante interesse público tem um estatuto mais liberal, o de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, não sujeitas às regras gerais da administração pública. São exemplos as grandes fundações mais conhecidas, a Cruz Vermelha, a Misericórdia de Lisboa, a própria Universidade Católica, embora esta também esteja abrangida pelo regime concordatário. No entanto, têm todas elas a característica de serem de iniciativa privada, ao contrário das universidades, com carácter mais vincadamente público. Não penso, no entanto, que uma “privatização” jurídica desse tipo seja um óbice, desde que haja uma contratualização rigorosa de serviço público, com reflexos no financiamento.
Não sendo perito jurídico, não vou propor uma figura específica para o estatuto jurídico das universidades. O que me importa é definir o que deviam ser as características deste estatuto, diferente do estatuto dos institutos públicos e com maior proximidade ao dessas instituições particulares de utilidade pública administrativa: estatutos aprovados pelo Governo, mas sem que este os possa recusar salvo incumprimento no disposto numa lei-quadro das universidades; autonomia na criação de estabelecimentos e serviços; liberdade de gestão do património imobiliário; gestão administrativa e financeira segundo o direito privado e sem sujeição às regras da administração pública, ao regime de realização de despesas públicas e ao regime oficial das empreitadas de obras públicas; contabilidade segundo o plano oficial de contas, com contabilidade analítica; sujeição à tutela para orientação geral, fiscalização e verificação de legalidade; prestação de contas à tutela e ao Tribunal de Contas; não sujeição a vistos prévios do Tribunal de Contas; contratação de pessoal segundo o regime geral de trabalho e sujeita apenas a disponibilidades orçamentais.
A lei da autonomia tem três conteúdos principais: a definição da autonomia e delimitação do seu âmbito, a reserva de competências para a tutela e o quadro geral de organização das universidades. A meu ver, os dois primeiros não merecem crítica de fundo. Já o terceiro me parece em grande parte desajustado dos objectivos e condicionalismos reais que justificam uma lei de autonomia das universidades.
Há algumas constrições legais ou práticas no que respeita a um ou outro dos conteúdos da autonomia. Assim, por exemplo, no que se refere à autonomia científica, que, de facto, é praticamente nula. A política científica faz-se hoje, fundamentalmente, por via do financiamento selectivo. Entre nós, ele tem duas origens: o chamado financiamento plurianual dos centros de investigação pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e, em maior volume, o financiamento de projectos específicos de investigação, quer seja o financiamento nacional pela Fundação para a Ciência e Tecnologia quer seja o financiamento comunitário europeu, sendo irrelevantes outras fontes de financiamento. Em ambos os casos, a universidade não tem hoje qualquer papel a desempenhar na definição de critérios ou na decisão concreta de aprovação ou rejeição de um projecto. Nem sequer este assunto é da competência do ministério da tutela das universidades. Também a autonomia administrativa e financeira está limitada, salvo uma ou outra excepção relativamente irrelevante do decreto da flexibilização, pela legislação geral da administração financeira do Estado. Anote-se, como exemplo, que nem beneficiam do regime especial de dispensa de consulta e concurso até 15000 contos de que gozam as instituições de investigação, às quais também é permitida a contratação de pessoal pelo regime geral de trabalho.
Pelo contrário, como já discutido em vários artigos desta colecção, a autonomia pedagógica é excessiva, permitindo às universidades a criação de cursos sem critério, redundantes ou sem correspondência às necessidades sociais. Quanto a isto, fica para o Estado apenas a via teórica de intervenção correctora por intermédio do financiamento, o que nunca foi feito.
A segunda parte principal da lei da autonomia é a que estabelece as matérias da competência da tutela. É obviamente um capítulo importante, porque, melhor do que a descrição vaga do conteúdo da autonomia, é a especificação das competências da tutela que mostra com precisão o que fica reservado ao ministro, subentendendo-se que o restante compete às universidades.
O artigo 28º da lei, sobre as competências do ministro, não tem merecido muita crítica. As competências que lhe estão reservadas cabem, sem dúvida, na acção de supervisão que é própria do Estado, mesmo na mais larga acepção da autonomia universitária. Trata-se, por exemplo, de homologar os estatutos das universidades, mas só podendo basear-se a recusa em razões formais, de irregularidade na elaboração dos estatutos, inconstitucionalidade ou falta de conformidade com a lei; de aprovar os números clausus; de aprovar a criação ou extinção de faculdades ou outros estabelecimentos das universidades; de autorizar a venda ou doação de edifícios, etc. O que é preciso é que este dispositivo legal seja cumprido escrupulosamente.
Já o terceiro aspecto da lei, o da regulamentação dos órgãos de governo das universiades, me parece inteiramente criticável. Com efeito, o quadro definidor dos requisitos obrigatórios dos estatutos das universidades (e até das suas unidades orgânicas, isto é, faculdades, institutos ou departamentos) parece-me desrazoavelmente minucioso e preciso, espartilhando as universidades num dispositivo estatutário excessivo e uniformizante, que restringe grandemente a capacidade de cada universidade escolher soluções organizativas e funcionais adaptadas às suas próprias especificidades.
Com efeito, a autonomia deve ser também a forma de as universidades melhor poderem corresponder à enorme diversidade de condicionalismos internos e externos e de exigências que lhes são postas pela sociedade. Não há duas situações iguais nas universidades. Variam na composição do seu corpo docente, variam na sua cultura institucional histórica, variam na sua vocação, mais nacional ou mais regional, variam conforme o peso relativo dos interesses mais académicos e científicos ou da vocação mais tecnológica e imediatamente profissionalizante. A autonomia, permitindo às universidades organizarem-se estatutariamente da melhor forma para corresponderem a esses diferentes condicionalismos, devia ser a forma de respeitar essa diversidade e de permitir às universidades experiências organizativas inovadoras, promotoras de políticas mais prontas e eficazes e também um factor da desejável competição entre as universidades.
No domínio da organização e funcionamento das universidades, a lei precisava de um grande aligeiramento e flexibilização. Devia ficar-se apenas por linhas gerais, com o objectivo de garantir princípios básicos de uma governação moderna e eficaz. Não deveria ir mais longe do que regras tais como: o reitor é o responsável máximo pela gestão académica, administrativa, financeira e de pessoal e é eleito por um colégio eleitoral com participação obrigatória de membros externos à universidade; o órgão de definição de políticas e estratégias deve ter uma dimensão máxima estabelecida por lei e incluir membros externos; deve haver um órgão representativo dos professores, investigadores, estudantes e funcionários não docentes (senado), com funções típicas de assembleia (homologação de políticas, acompanhamento e consulta).
Tal como está, a lei é um atestado de menoridade das universidades. Mas também é verdade que as universidades parecem sentir-se bem neste quadro normativo rígido, que acaba por tirar sentido real à autonomia. Os estatutos das universidades parecem decalcados uns dos outros e, em grande parte, da lei da autonomia. No seu único pronunciamento sobre a lei da autonomia, o CRUP, no documento referido, propõe alterações de pormenor mas nenhuma relativa a este aspecto decisivo da orgânica das universidades. O quadro pré-fixado e a regulamentação estreita são tranquilizadores, não desafiam as universidades ao esforço de uma reflexão sobre os requisitos próprios de cada uma e a encontrarem soluções próprias imaginativas.
No entanto, felizmente, ouvem-se cada vez mais vozes contestando as actuais formas de governação, correspondentes a um modelo colegial e “basista” que cada vez menos domina as universidades europeias. É assunto que tem sido muito discutido nestas páginas. Para isto, está na ordem do dia a revisão da lei da autonomia.
1.4.2002