João Vasconcelos Costa
A tão discutida crise de subfinanciamento do ensino superior não é redutível à magreza da dotação do Orçamento de Estado. Ela tem que ser vista também à luz de outros dois factos: a falta de capacidade e competitividade das instituições de ensino superior para angariar fundos à margem do orçamento de ensino (fundos esses que, nos EUA, representam 48% do financiamento total das universidades) e o valor quase simbólico das propinas, isto é, por ano, o salário mínimo nacional.
Realisticamente, o factor orçamental, ache-se ou não correcto politicamente, não é de molde a permitir grande margem de manobra, numa situação de necessidade de reduzir o défice orçamental e quando Portugal já gasta com a educação cerca de 2% da despesa pública (apenas inferior à da Bélgica) ou seja 5,6% do PIB (dos quais 1,1% com o ensino superior) contra a média de 4,6% da OCDE. Isto não impede que o custo por estudante seja de cerca de metade da média da OCDE, o que mostra a irracionalidade do nosso sistema. Também a incapacidade de angariar fundos não se corrige de um momento para o outro e não é por esta via que virão, a curto prazo, acréscimos consideráveis no financiamento do ensino superior. Resta, portanto, a solução do aumento das propinas.
É obviamente a solução de que o Governo e as universidades e politécnicos nem querem ouvir falar, e a que só recorrerão esgotadas todas as hipóteses alternativas. Todos se lembram dos anos de contestação ao aumento das propinas, que aliás ocorreu um pouco por toda a Europa, onde a regra era não se pagar propinas mas onde actualmente, com a excepção da Alemanha e dos países escandinavos, o pagamento de propinas é geral, correspondendo a cerca de 25% dos custos do ensino ou até 30% na Espanha e na Irlanda. Os 8% de Portugal tornam as nossas propinas quase simbólicas: 29 € por mês gasta-se com um bilhete de futebol ou uma ida à discoteca.
Para além da contestação estudantil, há muita gente favorável à total gratuitidade do ensino superior, defendendo que ele é um bem público, que a Constituição dispõe que deve tender para a gratuitidade. O aumento da qualificação geral do trabalho e do número de diplomados com grau superior é do interesse nacional, como factor de enriquecimento e de aumento de competitividade da economia, de construção de uma sociedade democrática inclusiva e de desenvolvimento da cultura nacional. Nesse sentido, não diferiria substancialmente dos outros níveis de ensino, de acesso universal e gratuito. De qualquer forma, bem público não significa gratuidade. Para ficarmos por um só exemplo, paga-se parcialmente outro bem de inegável interesse público, como é a saúde.
Os que defendem um peso considerável do esforço das famílias no financiamento do ensino superior, por meio das propinas, argumentam que, ao contrário do ensino geral e obrigatório, o ensino superior é um bem de mercado de interesse privado, embora com importantes externalidades. É assim, por exemplo, que na Inglaterra o retorno público se fica pelos 6%, para além dos benefícios inestimáveis, como sejam os culturais, enquanto que os diplomados, com maiores salários e outros benefícios, emprego mais cedo e maior segurança laboral, têm uma taxa de retorno de 11 a 14%. Os defensores de propinas com valor significativo argumentam também que isso constitui um factor de competição das universidades e aumento de qualidade, procurando atrair os estudantes pagadores de propinas, e que aumenta a probabilidade de sucesso escolar, por os estudantes terem maior consciência do custo dos seus estudos e darem-lhes maior valor.
Aumentar as nossas propinas para a média europeia, sensivelmente o triplo, significa um dispêndio familiar anual de 1044 € ou seja, 87 € por mês. Consideramos um aumento uniforme, com propinas iguais para todos os cursos, para, como se tem defendido, evitar distorções na procura por efeito do preço das propinas. Já é um aumento considerável para muitas famílias e seria um factor de exclusão se não acompanhado de medidas compensatórias. O modelo de ajudas mais em voga na Europa é o dos empréstimos a devolver na vida activa, acompanhado de um plano de bolsas para os mais desfavorecidos.
O princípio do modelo dos empréstimos é que, à distância e no ciclo da vida, o estudante tem riqueza para pagar a sua educação, com que beneficia, pode é não ter liquidez na altura dos estudos, fornecendo o Estado essa liquidez por meio de empréstimo. O estudante pode pagar as propinas na totalidade e fica livre de encargos. Em alternativa, pode receber um empréstimo que paga depois, na vida profissional, mas só se os seus rendimentos ultrapassarem um limiar que signifique vantagens da aquisição do grau (o salário médio na Austrália ou a média dos salários iniciais dos graduados, como na Inglaterra). Assim, o pagamento futuro, dependente dos rendimentos, seria uma partilha de riscos entre o diplomado e o Estado.
Paralelamente ao sistema de empréstimos, nos casos de estudantes carenciados, continuaria a haver bolsas de estudo, não reembolsáveis. Tendo em conta que muitas famílias favorecidas não recorreriam ao empréstimo, por preferirem não suportar os correspondentes encargos futuros, o Estado economizaria uma verba substancial do financiamento dos empréstimos, que poderia reverter para bolsas para os desfavorecidos que não têm meios de acesso à universidade. Na Inglaterra e na Irlanda, 10% e 21% do financiamento, isto é, metade a dois terços do valor das propinas, respectivamente, é pago “a pronto”, sem recurso aos empréstimos.
Façamos um exercício sobre a situação portuguesa. Admitamos que o financiamento mínimo mas aceitável das universidades, segundo o CRUP, é de 732 M€ (milhões de euros) e que o dos politécnicos, na mesma proporção de aumento sobre o orçamento de 2002, é de 266 M€. Adicionando os 8% de propinas, chega-se a um financiamento total do ensino superior de 1078 M€, dos quais 998 M€ pagos pelo Estado. No novo esquema das propinas (1044 € ), o valor total a pagar pelos estudantes do ensino público seria de 240 M€. Adicionemos, por uma questão de equidade e pelos imperativos legais de eliminação das diferenças de acesso ao ensino privado, os cerca de 200 M€ de propinas do ensino privado. Admitindo que, em comparação com os valores referidos acima para a Inglaterra e para a Irlanda, 20% dos estudantes recorresse a empréstimos, o encargo imediato daí decorrente para ao Estado (esquecendo agora que é reembolsável no futuro) seria de 88 M€. Com uma despesa total de 1078 M€ com o ensino superior, como vimos, o encargo do Estado seria de 926 M€ (88 M€ de empréstimos mais a diferença entre os custos totais de ensino – 1078 M€ – e as propinas – 240 M€, ou seja, 838 M€). Triplo resultado positivo: menor custo para o Estado (926 M€ contra 998 M€), possibilidade de usar parte dessa economia com bolsas de estudo e extensão do sistema ao ensino privado, que tem direito legal a apoios financeiros que atenuem as diferenças de condições de acesso.
21.11.2002