Na minha idade, o Natal

João Vasconcelos Costa

Na minha idade, não há vez em que, ida com o tempo em pessoa viva a minha gente querida, não viva com eles o Natal, forçosamente o da infância. Ai, a infância! Não há nada mais belo no mundo, a não ser, no extremo oposto, a sabedoria dos velhos, trocada por vezes nos silêncios eloquentes, sentados no banco à porta da taberna, bebendo o sol alimentar do seu sangue tristemente arrefecido, de répteis humanos.

A minha história é simultaneamente da infância e dos setenta, mas estes já a desenharem a ponte para os desejados noventa. São indissociáveis. É um ajuste de contas com a vida e a minha visão da imortalidade, eu que não creio noutra mais espiritual – apenas a de uma memória deixada, com a ambição que a descendência me mantenha vivo da mesma forma como mantenho vivos os meus avós, os meus pais e todos os que me foram queridos.

Já acabou a memória mesma da minha infância e do seu Natal? Às vezes digo-me que sim, tão diferente ele é hoje, em época de coisa de que então nem nome havia, o consumismo. Carrinhos de lata, uns jogos da Majora, um indispensável pulôver, uns presentes para os pais que saiam do nosso trabalho de desenho, colagens e montagens em cartão, os postais de Natal que se mandavam pelo correio, a missa do galo que não havia TV que a pudesse transmitir. Roupas de marca, último modelo do smartphone, consolas de jogos, quem imaginaria?

Quando é que acaba a infância? Podemos desenvolvermo-nos em homens-meninos, coisa muito diferente de continuarmos meninos-homens? Assunto complicado, que tem a ver com o perecimento do adquirido. Diz-se que ninguém se esquece de nadar, patinar ou andar de bicicleta, depois de aprendido em miúdo. Isto é prosaico. Há outras coisas muito mais importantes que a vida oblitera, como saber voar para a Terra do Nunca, namorar aos cinco anos de forma tão diferente, sempre com a pergunta inquieta de como é o pipi das meninas, saber apreciar como néctar o dedo final da cerveja do pai nas festas do Senhor Santo Cristo e, lá mais para o fim, a tosse escondida do primeiro cigarro. 

Acima de tudo, a roturante morte da infância que é dizerem-nos que o Pai Natal não existe. Na minha terra, chamava-se o Velho do Natal. Não existe? Essa agora, quantas vezes eu o vi, escapando-se rapidamente da despensa onde tinha deixado as prendas, depois de tocada a campainha a chamar a miudagem? Confesso, no entanto, que sempre me ficou a atormentar que o meu Velho do Natal não fosse a rotunda personagem a quem eu escrevia as cartas dos desejos. Coitado, o meu tio Carlos não podia fazer melhor, era magro que nem um espeto.

Há quem me diga que não teve uma infância marcante. Não há infância imarcante, pode haver é infância esquecida. Ela está lá sempre, para quem sabe ser sempre um pouco menino no fundo dos modos de adulto. Conversando no libertar pós-prandial das inibições, tenho muito prazer em observar, frequentemente, que as minhas histórias vão evocando outras parecidas nos meus amigos mais preocupados com a vida do dia-a-dia. Todas as nossas infâncias são marcantes, todos nos podemos lembrar delas; o problema é que, em geral, as arrumamos no lugar demasiadamente organizado de todas as memórias. São diferentes conforme a vida, mas são todas marcantes, sejam as de “gente feliz com lágrimas”, sejam as que depois acordam como “raiz comovida”.

Se alguém me disser que a sua infância foi vulgaríssima, não acredito. Esqueceu foi a escola, as reguadas de uma qualquer D. Salete, o ranho sempre a correr de um Francisco, os traques constantes de um Zé Gordo e a cabeça sobre a carteira de um António, atascado com o seu pequeno almoço de mata-bicho, uma sopa de pão e vinho. Esqueceu os terríveis berlindes de aço, pedidos ao mecânico da esquina dos restos das caixas de rolamentos. Esqueceu as reuniões clandestinas de braguilha aberta para comparação de pilas ainda não amadurecidas. Esqueceu o bafo de sotaina encardida do confessor. Esqueceu a catequista, velha decrépita entre freira frustrada e beata com sonhos fantasiados. Esqueceu o chapéu posto a meio da rua, tapando uma pedra, para grito dos amantes do pontapé seja lá em que for. E tanto mais!

É neste divagar que me vem sempre à ideia a frase final do argumento de John August para o excelente filme de Tim Burton, O Grande Peixe:”Um homem conta as suas histórias tantas vezes que se torna nas histórias. Elas ficam para além dele.”

24.12.17