Memória curta

João Vasconcelos Costa

A imprensa espanhola progressista tem escalpelizado o processo de transição, do franquismo para a democracia, com a decorrente constituição de 1978. Está cheio de episódios bem ilustrativos, ainda hoje, que só se resolverão, ao menos parcialmente, com a adoção do regime republicano. E contra o mito, hoje fundamentadamente contraditado, do papel salvador de Juan Carlos no 23 de fevereiro, ele que tudo indica ter estado bem conivente com o golpe até ao seu fracasso.

Portugal e Espanha tiveram processos muito diferentes de derrube das ditaduras franquista e salazarista, mas muito em comum no branqueamento de responsabilidades, na transformação de vilões em personagens exemplares.

As transições, revolucionária a nossa, negociada a espanhola, estão cheia de contradições. Adolfo Suárez era um franquista nova-via só para si e para amigos próximos. Juan Carlos tinha sido educado na nata do sistema franquista e tinha jurado os seus princípios. Fraga Iribarne, o pai do atual PP, o partido de governo, assinou as últimas sentenças de morte do franquismo.

E, entre nós, não teve grande peso a camaradagem de caserna? Ou proteções a amigos, como Veiga Simão, o dos gorilas e o maior demagogo da “reforma” educativa marcelista, dando-lhe a embaixada na ONU? Ou a chamada ao Conselho de Estado de um desconhecido e jovem professor de direito e de direita, Freitas do Amaral, apenas conhecido como delfim académico de Caetano e diz-se que por ele recomendado a Spínola? Ou José Hermano Saraiva, embaixador no Brasil? Ou Adriano Moreira, recauchutado sem se perceber como?

E os spinololista, golpistas, recuperados por Soares, até o chefe da sua Casa Militar, Carlos Azeredo. Souto Cruz, Pedro Cardoso, são homens que entram no Conselho da Revolução, por mão da ala direita do 25 de novembro, de Eanes. Mas, no rescaldo do 25 de novembro, até parecia que tudo o que era militar era a pureza da revolução.

Canto e Castro era simultaneamente conselheiro da Revolução e membro do MDLP/ELP, suspeito também no caso de Camarate. Talvez não seja tão conhecido por ter sido sempre educado à responsabilidade de Salazar. Outros ligados aos “nove” também estiveram envolvidos em relações, admitamos que apenas negociações, com a rede bombista (sigo aqui o livro de Miguel Carvalho, “Quando Portugal Ardeu”” e as minhas memórias da época).

Falta falar de Otelo. Custa-me. Falaria não só por causa das FP-25, mas já de antes, das muitas asneiras e erros crassos, em boa parte por defeito básico de vaidade pessoal e obsessão pelo palco, que tanto puseram em risco o-processo revolucionário.

Mas vamos às recuperações. É muito útil a leitura do livro de Miguel Carvalho, leitura imprescindível para informação dos mais novos e para refrescar a memória dos mais velhos. Não se fica com dúvidas sobre a implicação descarada do PSD e do CDS na rede bombista, bem como todas as tentativas militar-corporativistas para apagar os traços da intervenção militar, em particular de Mota Freitas. Transparece a coexistência dos dois 25 de novembro, o dos nove-Eanes-Jaime Neves e o de Pires Veloso. Este um homem de pouco discernimento, que nunca percebeu nada, mas que aparentemente foi apoiado pelos serviços secretos alemães, com Carlucci a apoiar os nove. Mário Soares perdido entre os seus dois amigos, a ir para o Porto, quando tudo se jogava em Lisboa. Mas, no livro, também o PS não sai nada limpo.

A memória histórica, a que nos é inculcada pelas instituições, é manipuladora, aos interesses do poder de cada momento. Vejamos, por exemplo, o Panteão.

Entre políticos, lá figuram Teófilo Braga, Manuel de Arriaga (só depois do 25 de abril, e lamentavelmente, triste figura que facilitou o primeiro golpe ditatorial contra a República), Sidónio Pais, Óscar Carmona e Humberto Delgado. São as maiores figuras da política contemporânea? 

Escritores, só, inicialmente, Garrett, Junqueiro (um poeta menor, apenas panfletário republicano) e João de Deus. Depois Sophia de Melo Breyner e Aquilino. É certo que Camões, Herculano e Pessoa estão em destaque nos Jerónimos. Mas Fernão Lopes e Gil Vicente (mesmo que só simbolicamente), Camilo, Eça, Saramago? Domingos Sequeira, Columbano, Amadeo? E João Domingos Bontempo, Viana da Mota, Lopes Graça? Canto da Maia? É verdade que S. Engrácia é pequena, mas arranjem um local maior e mais adequado ao número das nossas personagens “que da lei da morte se foram libertando”.

E a gesta dos descobrimentos? Só Vasco da Gama, nos Jerónimos. E Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão ou Bartolomeu Dias (este é verdade que com os ossos perdidos no mar), que em nada lhe ficam atrás?

Também os populares, Amália e Eusébio. Mas António Silva e Vasco Santana? Ou Joaquim Agostinho?

Muito instrutiva, voltando à memória da resistência e da democracia de abril mas com evidente significado em relação ao 25 de novembro, é a lista dos condecorados com a Ordem da Liberdade. É a que mais revela as discriminações do poder político de cada fase do processo revolucionário/contrarrevolucionário/consensual-europeu.

Dos principais dirigentes da primeira fase da revolução, receberam-na Adelino da Palma Carlos, Mário Soares, Sá Carneiro, Gonçalo Ribeiro Teles, só faltando Freitas do Amaral, mas era demais. Não constam da lista de condecorados Álvaro Cunhal, nem Francisco Pereira de Moura. Do conjunto histórico de dirigentes máximos clandestinos do PCP, que emergiram à luz do dia no 25 de abril, só, para não se dizer que ninguém, Francisco Miguel.

Dos militares de abril, praticamente todos, exceto Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho ou João Varela Gomes, entre outros exemplos do gonçalvismo. Ajuste de contas.

Das grandes figuras da resistência antifascista, muitos, principalmente da oposição democrática, republicano-maçónica, mas também, é verdade, companheiros de estrada do PCP. No entanto, é evidente que estes estão em franca minoria.

E Aristides Sousa Mendes, só condecorado este ano? E os professores universitários demitidos nas grandes purgas? Ou os perseguidos do MUD? E os promotores dos congressos da oposição?

Já nos militares, para além das figuras indiscutíveis do 25 de abril, temos os duvidosos, sempre oscilantes ou ambíguos, por exemplo Almeida e Costa, Ramalho Eanes, Galvão de Figueiredo, Costa Neves, Sanches Osório, Rocha Vieira, etc. 

E, nem sequer a título póstumo, aparecem os mortos no Tarrafal.

A memória é muito traiçoeira e os homens movidos por interesses mesquinhos não têm a grandeza da humildade perante os heróis.

(4.11.17)