João Vasconcelos Costa
Nos últimos dias, somam-se notícias, de vários países, anunciando para breve ou mesmo já em termos de passado, o atingir-se o pico da epidemia, com a expetativa de progressivo regresso a uma vida normal. Mesmo descontando o exagero desse “vida normal”, fica dessas notícias a esperança de um alívio das medidas de bloqueio para tempos muito próximos. É evidente o interesse político na passagem desta mensagem, mas é bom interrogarmo-nos sobre o seu fundamento objetivo e científico.
Em Portugal, começou a dizer-se que talvez (outros até dizem provavelmente) já tenha sido atingido o pico em fins de março. Não disponho de modelos matemáticos para avaliar da justeza dessa afirmação nem sequer tenho competência para os construir, nem mesmo para os utilizr. Limito-me a uma comparação empírica com os dados objetivos.
Não conheço ao certo a origem dessa tese. Ainda há dias li afirmações de Baltazar Nunes, coordenador do grupo de epidemiologia do INSA Ricardo Jorge que apoia a DGS, no sentido prudente de que, para já, o que se pode dizer é que estamos a aplanar a curva. Não faz previsões porque “o mais provável é saber que chegámos ao pico depois de ele passar”. É arriscado fazer previsões. Ou mesmo garantir que há ajustamento a um modelo quando se dispõe apenas de um número limitado de casos. Como se verá adiante, basta um dado surpresa para fazer ruir tudo.
Pelo que consegui obter de informação sobre este assunto, parece-me haver duas origens possíveis para a tese de já se ter ultrapassado o pico da epidemia em Portugal. Uma é uma previsão do Institute for Health Metrics and Evaluation (IHME) da Universidade de Washington que indica que o pico do número de mortes foi atingido a 5 de abril com um total acumulado de 295 mortes e com 29 mortes diárias nesse dia, decaindo progressivamente até nenhuma morte nova no dia 22 de abril. Segundo esta previsão, haveria um total de 471 mortes até 4 de agosto. Note-se bem que este estudo se debruça apenas sobre o número de mortes e não sobre o número de infetados, que é o que conta para parametrização da epidemia. Isto traria o pico da epidemia para antes desse dia de 5 de abril, dado que as mortes estão sempre desfasadas, na curva, em relação ao número de infetados diagnosticados.
Ainda não se passou o tempo suficiente para análise rigorosa desta previsão, mas é interessante comparar as previsões com os dados reais.
A outra origem da tese de ultrapassagem do pico parece-me ser a entrevista de Gabriela Gomes ao Público, com base num seu modelo matemático, analisando o número diário de novos casos de infeção diagnosticada. A sua conformação a uma curva modelizada pode ver-se na figura seguinte, ampliando parte da figura publicada no artigo. Acrescentei, a vermelho, os dados reais posteriores ao dia de publicação dessa figura.
Ontem, 9 de abril, quando fiz uma primeira versão do gráfico, escrevi: não sei se se ajustam ou não ao modelo e à sua previsão. Aguardo uma análise da autora, que certamente atualizará o seu estudo dentro de algum tempo. Hoje, 10 de abril, completando o gráfico com o grande número de novos casos anunciado hoje, tenho mesmo muita dúvidas sobre a validade desse cenário.
O que se segue, sem pretensão de fundamentar uma previsão, é o resultado do tratamento muito elementar dos dados reais até ao dia em que escrevo (10 de abril de 2020). Começando pelo que é referido no artigo de Gabriela Gomes, o número diário de novos casos de infeção, a figura seguinte mostra a sua evolução desde o dia d100, isto é o dia em que foram ultrapassados os 100 casos totais (13 de março).
Verifica-se, como era de esperar, a existência de consideráveis oscilações diárias e, muito notoriamente, de 9 para 10 de abril. Aguardemos o valor de amanhã, dia 11. O número é forçosamente impreciso, dependendo de múltiplos fatores, desde a execução de maior ou menor número de testes, de flutuações na notificação, de diferenças na população testada e das prioridades de execução dos testes. À primeira vista, é difícil interpretar estes dados sem qualquer forma de ajustamento, para “fit” de uma curva. Há técnicas para isto, mas tenho de deixar a palavra aos estatísticos e modeladores.
As oscilações diárias do número de novos caos ocorrem também com todos os países. Para exemplo, mostro os casos de países europeus com população da ordem da nossa e com um perfil epidémico – duração e dimensão da epidemia – não muito diferente do nosso: Áustria (OT), Bélgica (BE) e Chéquia (CZ). Em abcissas, o número de dias a partir de d100 até 10 de abril.
Aparentemente, uma grande confusão e, para o leitor comum, a impossibilidade de tirar alguma conclusão prática, especialmente do gráfico dos novos casos.
Como atenuar os efeitos das flutuações diárias? Uma das formas é agrupar os dados e comparar não os casos do dia e da véspera mas sim as médias de uma série antes do dia com a de série equivalente antes da véspera. É o chamado métodos de médias móveis. Por exemplo, pode-se tomar os dados dos dias d-7 e d (dia atual) e calcular a média m1. O mesmo para todos os dias da série, tanto anteriores como posteriores ao dia atual. A figura seguinte mostra as curvas para as médias de novos casos nos sete dias anteriores. No gráfico da esquerda apresentam-se os dados de Portugal e no outro a comparação com os referidos países europeus
Como se tem dito, não se pode falar de pico em Portugal, antes de um planalto, que é difícil ainda dizer quando vai passar a curva descendente. Só nessa altura se pode pensar em novo plano de medidas.
A Áustria é, desses países (e de toda a Europa) aquele em que já parece haver uma descida consistente do número de novos casos e em que a fase de estabilização foi curta, na prática um pico. A Chéquia parece acompanhar-nos numa faee de planalto, mas conseguiu-o com muito menor número de casos, cerca ide um terço, tanto de total de infetados como de novos casos diários. A Bélgica, com muito maior número de casos, talvez (?) esteja perto do planalto. A Suécia, com uma política diferente de medidas, continua ainda a ver crescer o seu número de novos casos diários, mas em valor absoluto muito inferior a Portugal.
Também podemos lidar com taxas de crescimento, que também podemos chamar de expansão ou de progressão. A mais simples é, simplesmente, a variação diária como fração do número total de casos do dia anterior:
x = (nd – nd-1) / nd-1
Traçando os gráficos para os mesmos países,
Já se começa a notar um padrão, apesar das grandes oscilações. Em todos os casos começa-se com uma taxa de 0,3 ou mais, que cai depois para entre 0,1 e 0,2, atenuando-se progressivamente para valores entre 0,01 e 0,05. A entrada em planalto dá-se em certa altura da fase em que esta taxa se mantém durante algum tempo sempre em valor cada vez mais baixo, por exemplo, inferior a 0,02. Na fase de supressão, a taxa tende para 0. No entanto, sem se analisar simultaneamente a variação do número de novos casos, em valor absoluto, pode não ser visível, pela observação da curva da taxa de expansão, quando ocorre o pico da epidemia. Por exemplo, é provável, como se viu acima, que o pico da epidemia na Áustria tenha ocorrido por volta de 30 de março mas isto não se deduz da curva de taxas de expansão.
Na última semana, os valores da taxa simples, em Portugal, com exceção de um único dia, mantiveram-se sempre acima de 0,05. De todos esses países europeus, o único que parece estar a manter uma taxa muito baixa é a Áustria. Isto corresponde também a uma tendência mantida para a diminuição diária do número de novos casos. É por isso aquele que já anunciou para breve algum alívio das medidas de bloqueio. Como estamos com atraso em relação à Áustria, em cronologia da epidemia, pode-se a mesma evolução.
Voltando a aplicar o método das médias flutuantes, podemos tomar os dados dos dias d-7 e d (dia atual) e calcular a média m1. Fazer o mesmo à série d-8 a d-1 para cálculo m2 e calcular a taxa x’ = (m1 – m2) / m2.. A figura seguinte mostra as curvas para as taxas x’ dos mesmos países.
É clara a atenuação das oscilações e confirma-se a tendência geral de baixa da taxa de expansão, mas agora com menor diferença entre a Áustria e os outros países. Portugal e a Chéquia têm um trajeto semelhante ao da Áustria, mas com menor duração ainda da epidemia. O caso sueco é interessante, sabido que o país não adotou uma política de bloqueio do grau da dos restantes países europeus. Vendo-se a evolução da taxa, parece que ela foi controlada com sucesso (ou diminuiu por quaisquer razões) ainda antes dos outros países, mas, a partir de um valor baixo, mantém-se estável, sem maior diminuição. Não há supressão, não há planalto, mas parece haver uma expansão “suave” da epidemia, provavelmente controlada por monitorização dos reputados organismos de modelação epidemiológicos da Suécia.
Este método de cálculo de médias tem uma incorreção teórica. A média aritmética tem significado no caso de coleções de dados independentes, numa distribuição probabilística. Neste caso, os dados não são independentes. É evidente que, numa série em progressão geométrica, as diferenças de ponto para ponto são proporcionais ao valor total anterior. Assim, é melhor trabalhar com média geométrica, que se define, neste caso, como a raiz de ordem 7 do produto de todos os dados individuais entre os dias d1 a d7 Ou seja
Mg = ∏ (x1..xn) exp (1/n)
A taxa é então
x’’ = (mg1 – mg2) / mg2
Sendo mg1 a média geométrica dos novos casos entre os dias d-7 e d (dia atual) e mg2 a média geométrica dos novos casos entre os dias d-8 a d-1.
A figura mostra a evolução das taxas x’’ para o mesmo conjunto de países
Salvo resultado em contrário de cálculos laboriosos de significância que agora não posso fazer, não parece haver uma diferença notória para as curvas do gráfico anterior.
Em conclusão. Há fundamento para se afirmar que já atingimos o pico da epidemia e que o número de novos casos está a diminuir? Pelo menos dois modelos dizem que sim, mas será que a realidade o confirma? Creio que ainda vai ser preciso esperar mais um pouco para o sabermos. Para já, uma quase certeza: o ritmo de crescimento da epidemia está claramente a abrandar mas de forma comum a outros países, independentemente da diferença de tipo e de grau das medidas de supressão/mitigação. E também a prenunciar um pico ou planalto dentro de poucas semanas, mas muito longe de se ter adquirido imunidade de grupo. A importância deste facto e o seu peso no planeamento da retoma de atividades agora bloqueadas serão discutidos em próximo artigo.