Imunidade de grupo a 10%?

João Vasconcelos Costa

Gabriela Gomes, matemática a trabalhar na Liverpool School of Tropical Medicine, tinha anunciado em vários órgãos de comunicação social que um seu estudo de modelação da COVID-19 concluía que se pode atingir a imunidade de grupo com uma taxa de infeção de 10% da população. É um resultado surpreendente, que desafia o consenso epidemiológico sobre a taxa de infeção que confere a uma população a imunidade de grupo. O valor consensual é de 60 a 70%.

Foi agora divulgado o trabalho de Gabriela Gomes e colaboradores, em pré-publicação não submetida à avaliação por pares. A meu ver, é um exercício académico sem significado prático, sem correspondência aos dados empíricos e perigoso por poder criar expetativas infundadas, se mal interpretado. Não sou epidemiologista, embora com a formação básica no campo necessária ao meu trabalho de virologista, mas este é um caso em que a crítica me parece ao alcance de qualquer cientista habituado à leitura crítica.

O título do artigo é “Individual variation in susceptibility or exposure to SARS-CoV-2 lowers the herd immunity threshold” (“A variação individual na suscetibilidade ou exposição ao SARS-CoV-2 baixa o limiar da imunidade de grupo”). Não duvido. Do que duvido, e fortemente, é de haver essa variação de suscetibilidade – quanto à exposição, é óbvio e nisto o artigo em nada adianta. Os autores não apresentam evidência de que existe essa variação, pelo que a conclusão é apenas uma dedução matemática sobre uma premissa cuja validade é desconhecida.

Deve-se começar por salientar que a imunidade de grupo (designação mais elegante do que a literal “imunidade de rebanho”) não é um mero dado numérico, dedutível de um modelo matemático. É um fenómeno com significado biológico, objetivo. É bem sabido que uma doença infeciosa deixa de ser transmitida e “desaparece” quando o agente não encontra na natureza um número mínimo de pessoas suscetíveis. Essencialmente, isto é devido a um número susbstancial de pessoas terem passado a estar imunizadas contra o vírus (neste caso), quer porque foram infetadas – mesmo sem doença aparente – e ficaram imunizadas, quer porque foram vacinadas (neste caso, quando e se houver a vacina).

Por exemplo, todos os planos de vacinação têm falhas mas o seu sucesso mantém-se, apesar disto, por haver a imunidade de grupo. Se 1% das pessoas forem antivax e não vacinarem os filhos contra o sarampo, isto é lamentável como sinal social e cultural, mas felizmente não é o mesmo risco do que se isso se passar com uma percentagem de 5% ou 10% de oponentes da vacina.

Que percentagem de infeção com o SARS-CoV-2 confere imunidade de grupo? Não o saberemos tão cedo, sem se conhecer a taxa real de seroprevalência, dado que o número de diagnosticados é certamente muito inferior ao dos infetados. A modelação da epidemia pode dar uma ideia, mas depende dos pressupostos com que é feita a modelação. É lapalissiano que o resultado de uma simulação depende crucialmente dos dados que lhe são fornecidos e das condições a que são sujeitos esses dados. Pior ainda, como neste caso, não só os dados ainda são muito insuficientes como foram introduzidos no modelo pressupostos de validade muito discutível, para não dizer mais.

O modelo consagrado SEIR, usado por Gabriela Gomes e colaboradores, usa quatro variáveis essenciais (e daí a sigla): número de pessoas suscetíveis à infeção, número de pessoas efetivamente expostas, número de infetados e número de recuperados da infeção. Presumindo-se que os recuperados desenvolvem todos imunidade, este é o fator principal da aquisição da imunidade de grupo.

A novidade concetual e metodológica do trabalho do grupo de Gabriela Gomes é ir contra a condição habitual assumida geralmente de que a suscetibilidade à infeção no caso de uma epidemia deste género, com a sua alta taxa de transmissão, é uniforme. Isto é, hipotéticos fatores de variação na suscetibilidade, genéticos ou outros, não são suficientes para se deixar de considerar como suscetível toda a população. É certo que a população suscetível fica reduzida pela taxa de exposição, afetada pelo distanciamento social, por exemplo. Mas só em parte, como veremos, é que este trabalho considera essa variação de suscetibilidade.

Essencialmente, o trabalho parte da hipótese de trabalho de que a população é heterogénea na suscetibilidade, introduzindo no modelo um coeficiente de variação (CV) que pode ir de 1 – caso de homogeneidade na suscetibilidade, como é geralmente considerada – até 4. À diferença de CV correspondem valores de infeciosidade total que permitem o desaparecimento da epidemia. Ignorando a que se deve esse resultado e falando em imunidade de grupo, o trabalho extrapola um mero resultado matemático para uma situação real de estado imunitário, sem base empírica. 

Além disto, e não é culpa dos autores que a comunicação social não saiba ler o trabalho, é óbvio que a conclusão do trabalho não é “a imunidade de grupo na COVID-19 consegue-se com uma taxa de ataque de 10%”. É apenas que, “SE” o CV for de 4, a extinção da epidemia pode ocorrer ao fim de uma taxa de ataque de 10%”. E também confirmam a ideia estabelecida, calculando que a taxa de ataque para aquisição de imunidade de grupo numa população uniformemente suscetível (CV = 1) é de cerca de 60%.

Esse SE é o busílis. A fundamentação dos autores para a introdução no modelo de um CV tão alto não tem, a meu ver, sustentação. Baseia-se em dois factos.

Primeiro, saber-se que há considerável variação na suscetibilidade à malária e à tuberculose e, mesmo assim, os autores admitem que, nestes casos, o CV não chega a 4, estimando-o como 1,8 a 2,4 para a malária e entre 2,4 e 3,3 para a tuberculose. A extrapolação para o caso de uma infeção por um vírus respiratório relativamente simples é surpreendente para quem não for matemático mas tiver formação em virologia, biologia, patologia, infeciologia, etc.

A interação agente-hospedeiro na tuberculose e na malária é muito complexa, mais do que mesmo no caso de infeções virais com relativa complexidade biológica, como por exemplo o HIV ou os herpes. A multiplicidade de fatores genéticos, imunológicos, metabólicos, de resposta inflamatória geral e local, etc., traduz-se realmente em consideráveis variações de suscetibilidade. Nada permite afirmar que o mesmo se passe com o SARS-CoV-2, ainda por cima um vírus novo, que encontrou uma população totalmente “ingénua” e uma infeção em que a natureza ainda não estabeleceu o equilíbrio biológico que determina alguma homeostase na relação vírus-hospedeiro, em que a heterogeneidade passa a desempenhar algum papel.

O segundo argumento dos autores é o da variação da suscetibilidade à infeção em algumas epidemias virais, nomeadamente o SARS, o sarampo e a varíola. Como virologista, fiquei interessado e fui ler os dois artigos referidos pelos autores, este e este. Não se percebe como os autores deste trabalho conseguiram tresler aqueles dois artigos. De facto, os artigos demonstram uma heterogeneidade, aliás bem conhecida, mas na transmissibilidade, não na suscetibilidade. É o fenómeno bem conhecido do “superspreading”, aliás já documentado na COVID-19. Gabriela Gomes e os seus coautores reconhecem isto (linhas 142-144 do manuscrito) mas parece-me que mantêm a confusão entre variabilidade da infeciosidade e as suas possíveis componentes: variabilidade na transmissibilidade e variabilidade na suscetibilidade.

Um leitor menos prevenido desta nota pode achar que não estou a valorizar outra variabilidade, a da gravidade clínica e letalidade, esta bem conhecida para o grupo etário de risco ou de pessoas com comorbilidades. É que esta variabilidade não conta para o que é tratado no artigo de Gabriela Gomes e colaboradores.

Diga-se em abono dos autores que não apresentam a sua tese em termos tão taxativos como noticiado: “we argue that CV is generally higher and prognostics more optimistic than currently assumed. However plausible, this needs to be confirmed for the current COVID-19 pandemic and, given its relevance to policy decisions, it should be set as a priority.” Concordo com esta afirmação final, mas não de todo com a frase inicial, “however plausible”. Não há qualquer evidência que sustente essa plausibilidade. Cientificamente, não é correto formular uma hipótese só porque se a imagina. É necessário um mínimo ce suporte empírico, o que aqui não acontece.

Como indicado no título, os autores também consideram que a variação pode residir na exposição em vez de na suscetibilidade, com resultados equivalentes na redução da taxa de ataque necessária para a aquisição de imunidade de grupo. Não domino a modelação e não vou discutir o tratamento da variável “expostos” no modelo, mas confunde-me, novamente, que se identifique controlo da epidemia, por supressão derivada das medidas de confinamento, com imunidade de grupo.

As consequências práticas são óbvias, por se desafiar a ideia generalizada de que a supressão da epidemia, como está a acontecer na Europa, traz consigo o risco de novas ondas epidémicas, exatamente por falta de imunidade de grupo. É certo que o modelo prevê que para um CV de 3 na exposição a segunda onda será muito mais baixa tanto na Itália como na Áustria (os dois únicos países que foram analisados nesta modelação). Já agora, anote-se que o modelo faz a previsão muito preocupante de, para um CV igual a 1 (homogeneidade da suscetibilidade) e com a política de distanciamento social adotada, haver um enorme segundo pico mo próximo inverno, com um máximo d enovos casos diários de cerca de 25000 na Itália e de cerca de 9000 na Áustria (6 a 7 vezes mais do que no atual pico). Assim, o trabalho tanto é otimista se for válida a premissa da variação da suscetibilidade como é preocupante se considerada a ideia geral de homogeneidade.

Lembrando o que ficou dito: o trabalho conclui que a variação da exposição por efeito do distanciamento social dá praticamente o mesmo resultado que a variação na suscetibilidade. No entanto, parece-me pressupor-se que se tem de manter sempre a mesma variação de exposição, o mesmo CV, isto é, a mesma intensidade das medidas sanitárias adotadas até agora. Em vez de imunidade, confinamento. Se assim é, não se percebe qual o valor prático deste estudo, sabendo-se que é impossível manter inalteradas aquelas medidas. Seria muito diferente se a variação na exposição resultasse na aquisição de imunidade de grupo, como pretendem os autores, mas isto, do ponto de vista biológico ou epidemiológico, parece-me um contrassenso.