“Grey power”, o poder grisalho

João Vasconcelos Costa

Não é só o PIB, não é só crescimento, não é só equilíbrio orçamental. Um país também se mede pela forma como trata os seus velhos e as suas crianças.

Há dias, em Espanha, os velhos e reformados gritaram isso nas ruas, em manifestações surpreendentes para quem os julga acomodatícios e medrosos.

Tenho 73 anos e, se fosse espanhol, certamente que me teria manifestado com mais dezenas de milhar de pessoas de terceira idade ou reformados (diz-se que para cima de uma centena de milhar). É um movimento nascente a que já chamam o “grey power”, o poder grisalho.

Há minorias com pouca visibilidade, por pouco se poderem afirmar. Outras até têm conseguido juntar ao seu nome o atributo de “poder”, “power”. “Black power” foi provavelmente o primeiro. O acontecimento mais mediático vai fazer 50 anos, o da entrega das medalhas olímpicas com os premiados de punho erguido, calçado com luva preta. Também depois o “gay power”, até associado a orgulho da diferença, o “gay pride”. E não falo dos movimentos feministas porque, de facto, elas até são a maioria, embora tratadas como minoria explorada e inferiorizada.

Olhe-se portanto com atenção para o “grey power”. Os partidos de direita têm uma perspetiva principalmente caritativa, que não me motiva muito discutir. Os de esquerda manifestam preocupações mas muitas vezes a nível predominante de bem-estar económico e de forma tão mitigada que quem lida com a 3ª idade (65 anos ou mais) sabe que há um forte sentimento de falta de representação política. Diga-se em justiça, todavia, que tem havido ações relevantes orientadas para os idosos, nomeadamente a nível autárquico. 

Também os sindicatos parecem preocupar-se mais com os trabalhadores no ativo, os seus associados, do que com os reformados (e, já agora, com os jovens à procura do primeiro emprego),

A política de austeridade afetou gravemente os reformados. Eles, os jovens sem acesso ao mercado de trabalho e as classes médias, mais do que os trabalhadores de menores rendimentos foram, vendo-se os números, os mais atingidos pela crise e pela política troikiana.

É verdade que a capacidade de luta de idosos e reformados é muito limitada. Faltam-lhes forças, estão muito isolados e sem espírito de coletivo. Vai-se ficando, em regra, mais conservador com a idade, tem-se medo da mudança que perturbe o quantas vezes ilusório conforto e hoje até se teme pelas consequências sobre os filhos que já não ajudam os pais como antes, agora sendo eles próprios tantas vezes dependentes do socorro paterno.

Exemplo flagrante desse acomodamento conservador é a última sondagem CIS sobre o voto etária em Espanha. No grupo 18-24 anos, votam Unidos Podemos 23% dos sondados, e apenas 6% no PP. Inversamente, nos de 65 ou mais anos, 3% votam Unidos Podemos e 29% são eleitores do PP.

Sem poder elaborar mais neste espaço, deixo algumas notas soltas para se considerar a importância da atenção à terceira idade.

Começo por essa designação, que formalmente engloba todos os maiores de 65 anos. A situação mudou, principalmente porque essa camada etária deixou de ser principalmente de reformados, passando a haver mais pessoas ativas com idades mais avançadas. Por isso falo de idosos e reformados, categorias que já não se sobrepõem tanto.

A distribuição etária passou de pirâmide, com o vértice nas idades mais avançadas e com uma base larga de crianças e jovens, para uma forma em barril, com a maioria na idade adulta, menos jovens e muito mais pessoas de terceira idade. Em 1980, o segmento 10-24 anos contava com cerca de 2,46 milhões de portugueses e residentes (dados Pordata), tendo passado em 2016 para cerca de 1,63 milhões, ou seja uma descida de 34%, devida à correspondente baixa da natalidade.

Inversamente, o aumento da esperança de vida (70 anos em 1980 e 80 anos em 2016), relacionado com a melhoria do estado geral de saúde, tanto na prevenção como no tratamento, fez com que o segmento de 65 anos ou mais passasse, no mesmo intervalo, de 1,1 milhões para 2,2 milhões, o dobro. Mais espetacularmente, os maiores de 85 anos quintuplicaram de número nesse intervalo.

A esta mudança quantitativa corresponderem também alterações qualitativas. Há muito maiores necessidades de saúde: tornam-se muito maiores as ações necessárias de rastreio de certas patologias (cancro, doenças cardiovasculares, patologias neurodegenerativas), há crescente necessidade de serviços e especialistas de geriatria, muito maior procura de cuidados continuados e paliativos, para o que o subsistema hospitalar do SNS não estava preparado, nem está perto ainda hoje de estar preparado.

Emergem também outros problemas agora mais evidentes e mais decisivos para o bem estar psíquico dos idosos, como a desagregação da vida familiar, com frequente dispersão geográfica, a falta de condições para a solidariedade entre gerações, a solidão, etc. Não se esqueça também a marca cultural destes tempos de carreirismo, oportunismo ou “yuppiismo” que desvaloriza os velhos e o que eles podem dar. Um reformado, por exemplo, mesmo que esteja em ótimas condições, não pode aceder a concursos para dirigente de instituições públicas. Também a idade média na política tem vindo a descer, com governos de gente de quarentas em vez dos governos cinquentões ou sessentões dos anos oitenta. Claro que são preparados hoje em máquinas mais rápidas, as jotinhas.

A nova situação da terceira idade é um desafio político. Não é só garantir a justiça das pensões e a dignidade da existência material, é providenciar soluções para as grandes mudanças qualitativas que exemplifiquei. Tal como, no outro extremo, a saúde materno-infantil nunca pode ser lucrativa sem ferir os direitos essenciais de acesso, também hoje os cuidados necessários para com os idosos, e mesmo só falando na saúde, são de grande custo (a geriatria é em tudo muito cara) e, em minha opinião, não é possível uma atividade privada sustentada que não conte com enorme subsidiação pelo Estado. Então que seja este a tomá-la a seu cargo, garantindo a equidade e universalidade. Forçosamente com investimentos e custos de financiamento incompatíveis com uma política de contenção extrema do défice orçamental.

Nós, idosos ou reformados, merecemo-lo. Entre muito mais, somos a última geração que ainda transporta a memória do fascismo e que pode vividamente esconjurar esse perigo sempre latente. E temos hoje uma disponibilidade grande, a favorecer a experiência, sabedoria e capacidade funcional, mental e física, muito superior à das gerações de idosos que nos antecederam.

Manifestemos a nossa capacidade para o “grey power”. Claro que não o poder exclusivo…

18.4.2018