João Vasconcelos Costa e José Manuel Tengarrinha
Pensar o futuro de Portugal neste Congresso [“Portugal, que futuro?”, 1994] exige, antes de tudo, superar limitados interesses partidários imediatistas ou estritas perspectivas conjunturais, que reduziriam inapelavelmente o alcance dos trabalhos. Não são tantos os debates com estas características para que desaproveitemos a oportunidade de tentar alcançar, com outro grau de exigência, níveis do processo social e político numa visão mais global e de mais longo termo.
Por nossa parte, o exame crítico da realidade portuguesa actual dirige-se, sobretudo, a tentar detectar os sinais – reconhecíveis com crescente relevo na nossa vida social e política – de muitos dos vícios e insuficiências que têm vindo a marcar as sociedades democráticas contemporâneas. Isto é, pôr em causa, em diversos planos e sob diferentes enfoques, alguns aspectos da própria natureza e funcionamento do sistema político. Não perdemos a esperança de que as sociedades democráticas tenham, dentro de si, energias para se renovar. Mas duvidamos de que os motores da renovação possam ser os que actualmente comandam o sistema.
Estamos, sem dúvida, a viver uma fase nova na história das sociedades democráticas – uma fase marcada por agravamento dos desequilíbrios, das marginalizações, das inseguranças, dos medos. Sem que se descortinem, com nitidez, caminhos seguros e soluções fáceis, o que torna ainda mais indeciso o futuro.
Abreviadamente, poderá dizer-se que a estabilidadede uma sociedade depende, em grande medida, da sua capacidade de engendrar válvulas de descompressão, bem como a sua eficácia, também, da capacidade de assimilar os protestos. O que pressupõe não só eficazes mecanismos de comunicação e de representação das bases, mas também que as instâncias superiores sejam capazes de recepção satisfatória. Só assim se poderá atender, simultaneamente, ao indivíduo e ao conjunto, ao local e ao global, funcionando a sociedade como uma totalidade, isto é, tendendo à sua maior eficácia.
Ora um dos mais dramáticos problemas que se colocam às sociedades desenvolvidas dos nossos dias, e também à portuguesa, é: o que podem elas fazer com uma parte, em crescendo, do seu corpo marginalizado?
Defrontamo-nos agora com um problema semelhante ao das sociedades que se lançaram na expansão industrial desde meados do século XIX. Então, foi: que estatuto social e político conceder a essa crescente massa de trabalhadores industriais – que no passado haviam tido um estatuto menor – que era óbvio serem motores indispensáveis do desenvolvimento material?
As sociedades capitalistas encontraram, depois, perfis e formas novas (insuspeitadas para Marx e outros teóricos até ao terceiro quartel de Oitocentos) inerentes ao seu próprio equilíbrio e às exigências da sua expansão: empolamento do sector terciário, partidos políticos como hoje existem, entrosamento das associações sindicais na própria lógica do desenvolvimento do sistema, participação dos trabalhadores nos lucros das empresas através da distribuição de acções e dividendos, intervenção no planeamento económico nacional e na gestão empresarial através da pressão sindical, etc.
Porém, perante a redução da necessidade de braços resultante do rapidíssimo avanço tecnológico e da robotização, o número cada vez maior de jovens procurando trabalho nas cidades, o bloqueio do terciário e as dificuldades da agricultura, a elevação do nível etário das populações, o alargamento das reformas compulsivas antecipadas, etc – perante tudo isto, as formas e os mecanismos institucionais adoptados há mais de um século mostram-se hoje cada vez mais ineficazes. Ao mesmo tempo, revelam uma dificuldade crescente de serem veículos e centros de acolhimento das aspirações sociais, acentuando a sua opacidade.
* * * * *
Aí se radica, em grande medida, esse preocupante fenómeno patente nas democracias estabilizadas do alheamento da vida democrática, a que se tem chamado a “melancolia da democracia”. Essa melancolia da democracia é parte da crise geral de alienação, de autismo da vida individual e de massificação da vida colectiva que afecta as sociedades economicamente desenvolvidas.
As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam-se até um ponto de crise que aponta para uma mudança radical dos próprios paradigmas civilizacionais, para a necessidade de uma revolução dos modos de vida, das relações sociais, do conceito de desenvolvimento, questionando por reflexo todas as formas de organização social e política, incluindo as instituições democráticas.
Criou-se riqueza, com um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a nossa esfera de comunicação e informação. Mas diluiu-se a cidadania e enfraqueceu a privacidade. A intensificação e diversificação das relações sociais despersonalizou-as, com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares). A vida individual é pobre de conteúdo, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia. A segurança social ameaça crise, com o envelhecimento da população a tornar já os custos de segurança mais altos que as receitas contributivas. E, provavelmente o mais grave problema para o equilíbrio social, não se vê solução para o desemprego crescente, mesmo nos períodos de melhor situação económica.
Um outro outro factor de afastamento da vivência democrática deriva da crescente profissionalização da política. Para além das suas seculares funções de gestão preferencial da ordem jurídica e, depois, da ordem económica, ela é hoje cada vez mais a gestão da técnica, com crescente complexidade e inacessibilidade ao cidadão da solução e mesmo da formulação das questões colectivas.
O político tradicional, polivalente e ecléctico, não desapareceu mas tende a inserir-se obrigatoriamente num sistema relativamente fechado de relações de tecnoestrutura, com subalternização da cultura política e dos valores democráticos. A especialização e profissionalização diminuem o alcance humano da visão política e favorecem a hierarquização das responsabilidades políticas, agravada pela dependência carreirista em relação aos estados maiores partidários. Entre nós, esta tendência é manifesta ao nível do Governo. Abaixo de um Primeiro Ministro que concentra em si a decisão política, os outros membros do Governo aparecem muitas vezes como simples técnicos, muitas vezes sem experiência ou cultura política. Ao contrário de algumas tradições democráticas, por exemplo, nem têm que ser validados por um voto como deputados. Esta subalternização do carácter político em relação à competência técnica pretende dar um tom asséptico de mera administração das coisas à vida política, excluindo a participação dos cidadãos.
Outro risco para a democracia provém da aparente crise das ideologias, referenciais tradicionalmente facilitadores das opções democráticas. As principais formulações ideológicas que chegaram até nós são a herança de um período social e histórico já ultrapassado pelas aceleradas mutações sociais que o mundo sofreu nas últimas décadas. A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Esta construção ruíu definitivamente e as coordenadas de referência do pensamento social e político sofreram deslocações que ainda não estão racionalizadas.
A todos estes factores gerais de questionamento da vida democrática, que partilhamos com os países mais desenvolvidos, acresce, no nosso caso, a fraqueza da opinião pública. Fora dos momentos eleitorais, a opinião pública não derruba governos, nem sequer obriga à demissão de um governante envolvido em qualquer caso clamoroso de indignidade cívica e democrática. Graciliano Ramos chamou ao fascismo brasileiro o “pequenino fascismo tupinambá”, mais anestesiante que um fascismo brutalmente repressivo. Talvez também seja verdade que o nosso pequenino mas generalizado nível de clientelismo, corrupção e falta de dignidade cívica nos canse a capacidade de indignação e protesto. É certo que a comunicação social começa a ser mais interveniente, mas também não se pode esquecer que ela reflecte o nível geral de educação e responsabilidade cívica. Neste sentido, é cada vez mais preocupante o panorama da televisão, de crescente uniformidade na mediocridade, tanto mais grave quanto ela contribui decisivamente para o “panem et circenses” alienante de hoje que é o centro comercial, a telenovela e o futebol, a ameaçar a “burlesconização” da democracia.
Perante estes desafios, pensamos serem indispensáveis dois caminhos para o aprofundamento da democracia: a sua conversão em democracia participada, para além dos simples mecanismos formais da vivência institucional democrática; e a revisão das ideias e práticas da Esquerda, com emergência de formas mais dinâmicas e flexíveis de organização política.
A participação dos cidadãos
A democracia participada não se opõe à democracia representativa, prolonga-a e valoriza-a. A defesa da democracia participada começa, por isto, no aperfeiçoamento dos mecanismos representativos e do seu funcionamento institucional.
A valorização do Parlamento continua a ser um aspecto central, até no plano simbólico, da valorização de todo o sistema democrático. Deve-se, no entanto, reconhecer que a Assembleia da República não goza de uma imagem de prestígio correspondente à sua importância no nosso sistema constitucional.
Para além dos vícios de funcionamento directamente atribuíveis aos partidos, a Assembleia da República sofre do facto de, para boa parte da opinião pública, o seu papel político real parecer secundário. Desejável ou não, é facto adquirido a personalização e mediatização da escolha política, o que se agrava agora com a crise dos referenciais ideológicos e com a desconfiança, aliás merecida, da sinceridade e valor de compromisso dos programas eleitorais. Um resultado perverso é que a escolha dos deputados se faz menos por si própria que em função do potencial Primeiro Ministro. Daí a menorização do Parlamento, com constituição de maiorias servis ao Governo, ao contrário de algumas tradições presidencialistas em que o eleitor frequentemente escolhe um parlamento de oposição para equilibrar os poderes presidenciais. O nosso semi-presidencialismo tem evoluído viciadamente para uma espécie de bi-presidencialismo. Esta situação de facto exige a manutenção ou mesmo reforço dos poderes presidenciais e a conservação da sua legitimação pelo sufrágio directo, sob risco de se acentuar o excesso de governamentalização de toda a vida política.
O Parlamento não pode ser uma cena de alguns actores e um fundo baço de muitos figurantes anónimos. É preciso dar-lhe rostos, fazê-lo reflectir a realidade social, identificar o eleito e aproximá-lo do eleitor. A revisão da lei eleitoral é reconhecidamente um passo decisivo para este fim, merecendo um amplo debate nacional em que todas as hipóteses se ponham em aberto, incluindo a de círculos uninominais compensados por outros mecanismos de proporcionalidade.
Outra importante medida de fundo no sentido da participação é a facilitação das candidaturas de listas de cidadãos, não partidárias. Proposta pelo MDP logo na elaboração da Constituição, esta possibilidade, mesmo que só a nível autárquico, foi rejeitada então e ao longo dos anos por todos os outros partidos. Só recentemente pareceu merecer concordância mas o adiamento sucessivo da sua concretização faz duvidar da convicção dessa concordância. Hoje vamos mais longe e defendemos que a candidatura de listas de cidadãos deve ser possível – e facilitada por meios práticos – não só para as Câmaras municipais (e, por extensão, para os futuros órgãos regionais), mas também para a Assembleia da República.
Estas medidas de fundo defrontam-se com alguma inércia, passando por revisões constitucionais ou por leis que exigem maioria qualificada, sendo mesmo útil que elas resultem de um consenso social e político alargado, nem sempre fácil no imediato. Já no plano da efectivação dos direitos dos cidadãos e do aperfeiçoamento funcional das instituições, há propostas que não exigem uma revisão global do sistema, ou que são só de carácter regimental. Citamos, como exemplos, alguns dos que já repetidamente temos defendido :
– o direito de iniciativa legislativa, isto é, a faculdade de alguns milhares de cidadãos apresentarem propostas de lei;
– a capacidade de iniciativa popular para a realização de referendos, iniciativa até agora limitada aos órgãos de soberania;
– a facilitação e maior resultado prático do direito de petição;
– o direito de acesso aos dossiers da administração ou aos dados informáticos pessoais;
– a extensão da actividade de provedoria não só às ilegalidades, mas também aos entraves burocráticos ou à arbitrariedade administrativa;
– a transparência e ligação maior dos cidadãos aos trabalhos parlamentares, de que são exemplos a obrigatoriedade de informação e discussão parlamentar de actos governamentais de grande alcance (como os que envolvem a construção da União Europeia), a regularidade das sessões de perguntas ao Primeiro Ministro na Assembleia da República, a publicidade das sessões das Comissões parlamentares de inquérito e das audições parlamentares, ou a criação de gabinetes dos deputados nos seus círculos eleitorais, medidas já há muito propostas e afinal correntes em muitos parlamentos.
Há também exemplos de sistemas com muito maior descentralização política que o nosso, e com correspondente descentralização na colheita de impostos. Uma considerável redistribuição de poderes e competências não perturba a lógica constitucional e é um factor essencial para a dinamização da vida democrática. O nível autárquico é aquele em que a participação do cidadão, nas questões do seu quotidiano, é mais apelativa e eficaz e em que mais facilmente se podem instaurar mecanismos e hábitos de democracia directa ou participada. A disparidade frequente dos seus resultados eleitorais em relação às legislativas indica bem um maior poder de escolha, menos condicionada, que nas eleições parlamentares.
A regionalização é um imperativo constitucional que ainda aguarda concretização. Ela é tecnicamente útil, por permitir a a acção integrada e coerente sobre problemas de maior âmbito que o local, mas sobretudo é útil, no plano político, como forma de maior aproximação ao cidadão e de facilitar a sua participação. Por isto, a regionalização terá que ser a criação de um nível intermédio de efectivo poder descentralizado, nunca a criação de um mero aparelho administrativo que apenas prolongue à periferia o poder central ou que ainda mais agrave o clientelismo. Pela mesma razão, as competências regionais devem ser estabelecidas principalmente por transferência do poder central e não do poder autárquico.
Outra forma de compensação da profissionalização política tem a ver com a chamada ao poder central de pessoas mais libertas da dependência de carreira profissional em relação aos aparelhos partidários. A descentralização da escolha de candidaturas é apenas um passo mínimo, de alcance muito limitado. Mais significativa é a possibilidade de livre candidatura não partidária, como defendemos. Como solução intermédia, aventamos a hipótese de um sistema bicamarário, com uma câmara constituida por deputados eleitos de entre todos os autarcas (incluindo membros de assembleias autárquicas) tendo em conta as razões de maior independência e ligação à sociedade real. Em alternativa, haveria que se conferir maior importância, com papel mais determinante na elaboração das leis, ao Conselho Económico e Social, eventualmente revisto na sua composição e designação de forma a reforçar-se a sua legitimidade democrática e social.
Na mesma lógica, e tendo em conta que as motivações profissionais e sociais são uma razão fortemente apelativa para a participação dos cidadãos, é importante conferir às organizações não governamentais um papel consultivo e participante, com regularidade formal, junto de cada sector governamental ou de cada comissão parlamentar, à semelhança aliás do que já é corrente em organizações internacionais.
Uma Esquerda alternativa, nas propostas e na acção
Referimos atrás algumas características da mudança social nos países desenvolvidos, com emergência de novo tipo de problemas quando os económicos básicos estavam resolvidos. Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista nesta tendência de evolução das sociedades. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população, mesmo das zonas mais desenvolvidas, vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não são comparativamente relevantes. Mas, ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações, às quais é necessário dar uma resposta actualizada.
O repetido sucesso eleitoral do actual Governo é em boa parte devido a uma política que tem sido eco destas alterações na sociedade portuguesa. A rápida transição de filhos de trabalhadores dos sectores tradicionais para novas actividades, principalmente de serviços, com melhores perspectivas, bem como as tensões e insatisfações causadas pela convivência, em meios urbanos apertados, das “duas sociedades”, geram permeabilidade ao “populismo do sucesso” em que assenta a actual política conservadora. Ao contrário da tendência tradicional para interpretar redutoramente as motivações de voto em termos de interesses económicos e sociais, é necessário ter em conta factores psico-sociológicos complexos e dificilmente racionalizáveis. A osmose social e a convivência mediática com padrões de maior riqueza criaram aspirações e mitos que constituem fortes motivações para uma simpatia primária por um discurso de sucesso e crescimento económico. Por outro lado, a insegurança de vida e a complexidade e mobilidade da situação social arrastam as pessoas para o desejo de estabilidade e para a satisfação pessoal de se sentirem projectadas nos vencedores ou em figuras tutelares. Estes fenómenos verificam-se especialmente em situações de alguma estabilidade económica, em que os valores estabelecidos estão equilibrados. Este quadro pode alterar-se significativamente numa situação de dificuldades económicas, como as que já estão a resultar do impacto do Mercado Interno e da política de austeridade exigida pela convergência nominal decorrente da União Económica e Monetária.
O aparecimento de uma mentalidade nova-rica, culturalmente medíocre, egoísta e agressiva, e desligada do sentido da solidariedade é factor de suporte da arrogância e falta de diálogo democrático, do comportamento de partido único, do clientelismo, da menorização da cidadania efectiva. A resposta a dar a esta situação não pode ficar-se pela luta economicista tradicional. Tem que combater o esquema de valores que se está a instilar, com perversão da consciência social.
Neste sentido, é urgente que a Esquerda reencontre a sua vocação e tradição de luta consequente. Converge para esta recusa sistemática um largo leque de forças e movimentações sociais que não se reconhecem obrigatoriamente nos quadros de referência tradicionais. Entendemos este largo e difuso movimento como a Esquerda de hoje, envolvendo sectores tão diversos (mas também hoje tão próximos) como os socialistas de várias tendências, ecologistas, progressistas de inspiração cristã. Consideramo-la sob a noção abrangente, tradicional na história europeia, de um conjunto de concepções e posições políticas marcadas por uma atitude de optimismo histórico e de racionalismo, por valores de humanismo, igualitarismo e solidariedade, pela luta contra o autoritarismo e pela defesa das liberdades.
Os objectivos e as vias dessa luta têm que ser recolocados em termos novos. A Esquerda está em crise relativa e não mostra ainda um esforço consequente para a procura de um novo quadro global coerente de referências ideológicas que exprimam a sua renovação, que dêem resposta à ofensiva ideológica liberal e às ridículas teses do “fim da história”. Pode-se mesmo pensar que sectores tradicionais da Esquerda não só não procuram um novo projecto como até pensam que não o procurar é condição do seu êxito eleitoral.
Mantendo-se como simples alternante do poder, a Esquerda está condenada, como até agora, a ser chamada a governar em época de constrições económicas, sendo depois penalizada. Num sentido cruamente técnico, a Esquerda não sabe gerir a crise económica. Tenta fazê-lo com as receitas liberais mas com margem técnica reduzida, porque limitada pelo seu eleitorado que não lhe permite os custos sociais daquelas soluções.
A apreciável capacidade de adaptação que o sistema económico dominante tem demonstrado liga-se à tendência para as “sociedades de dois terços”, em que a maioria recolhe benefícios consideráveis do sistema à custa do estrato inferior. Este estrato inferior não se define apenas pela menor capacidade económica, mas principalmente pela exclusão da mobilidade social e do trânsito de aspirações, nos sentidos da auscultação e da resposta. Por isto, este estrato tende a incluir também os jovens em busca de emprego e os reformados. A exclusão da camada inferior é condição obrigatória para a estabilidade do sistema. No entanto, esta estabilidade é frágil. À medida que esta parte excluída foi crescendo, tornou-se incómoda, entre outras por três razões: significa um custo social incomportável; é uma amputação que diminui a eficácia do corpo social como um todo; trata-se de um campo favorável ao medrar de uma contestação marginal, sem enquadramento, constituindo, pois, um factor de desestabilização institucional. Em crise económica ou alteração brusca do sistema (como aconteceu na integração alemã) o estrato inferior amplia-se de forma a pôr em perigo os “dois terços”, que se enquistam e mais marginalizam os excluídos, com extremar das tensões sociais.
Quebrar estas barreiras e resolver as crises económicas sem maior exclusão social terá que ser o conteúdo definidor de uma política de Esquerda. A Esquerda terá que se mostrar capaz de gerir bem a economia, demonstrando que esta gestão e o desenvolvimento económico não são exclusivo da Direita e não são incompatíveis com a solidariedade e a correcção das injustiças sociais. Com isto, garante a sua vocação prioritária de defesa dos desfavorecidos e excluídos, ao mesmo tempo que corresponde às motivações de estratos mais desenvolvidos economicamente e assim solidifica o seu apoio eleitoral.
Mas ao mesmo tempo que se mostre como alternativa neste terreno mais convencional da política, terá que corresponder aos anseios e preocupações de grupos e camadas que vêm sentindo com crescente acuidade toda uma nova ordem de problemas qualitativos. Mesmo nos estratos sociais que hoje beneficiam da riqueza das sociedades industriais desenvolvidas emerge um novo tipo de aspirações que ainda não tiveram reflexo claro no pensamento de Esquerda e que não são satisfeitas mesmo nas formas mais avançadas da social-democracia. Nos países que mais agudamente sofrem os novos problemas do desenvolvimento tradicional começa a emergir, em franjas mais conscientes, o embrião de uma nova atitude de insatisfação e protesto. O indivíduo na sociedade industrial desenvolvida, resolvidas em grande parte as carências básicas, vai crescentemente sentir carências mais qualitativas: maior flexibilidade e variabilidade na vida individual, com maior capacidade de movimentação entre o trabalho, o estudo e o lazer; desejo de efectivo controlo e participação nas tomadas de decisão, desde o campo profissional ao comunitário, ao da política de Estado; maior “sentido da vida”, com reintegração harmónica das suas parcelas atomizadas (o estudo, o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política). Estas mudanças subjectivas, que conduzem ao desdobramento da sociedade unidimensional em múltiplas dimensões individuais, serão potencializadas por factores sociais e culturais já evidentes: o desvio demográfico, a alteração dos papéis sexuais, dos padrões morais, a insegurança de emprego, em particular dos jovens, a preocupação crescente com o ambiente, o aumento dos tempos livres e correspondentes exigências culturais e de lazer, a necessidade de formação profissional permanente, a mobilidade pessoal e a explosão da informação, com a consequente osmose de culturas.
No centro desta nova atitude social está a revisão da noção de progresso e de desenvolvimento. A concepção economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva, é cada vez mais contestada e objectivamente posta em causa pela limitação dos recursos naturais e pelos danos ao ambiente. O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento sustentado, integrado nas suas dimensões socio-económica e cultural, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos e as capacidades e espírito comunitários. Esta noção renovada de “desenvolvimento humano” é cada vez mais um polo de convergência de sectores diferenciados de Esquerda com pontos de partida diferentes.
O desbloqueamento do sistema democrático
Com esta vastidão do horizonte da mudança, as ideias e aspirações que darão corpo ao projecto de Esquerda não virão certamente apenas das formações políticas tradicionais, nem a acção política se centrará apenas nos partidos. Se o sistema partidário, como discutimos atrás, apresenta deficiências notórias como suporte preferencial (na prática, único) do quadro político-institucional tradicional, muito menos será capaz, por si só, de dar resposta adequada aos novos desafios.
Essa resposta exige um esforço de debate e reflexão estratégica e de assimilação de experiências e contributos teóricos muito diversificados, inclusivamente das ciências sociais, que se choca com características praticamente inamovíveis dos actuais partidos. As energias partidárias estão canalizadas para os objectivos imediatistas da conquista do poder e os partidos estão condicionados por grande peso de aparelho, tendencialmente conservador da actual situação, bem como pela necessidade de gerir os conflitos internos de interesses, em grande parte derivados da profissionalização política. A prática tem demonstrado que, nestas condições, o seu contributo para a elaboração de novas ideias mobilizadoras é diminuto e está longe de corresponder à sua força eleitoral.
Isto explica o sucesso que têm tido na Europa os novos “partidos alternativos”, mais permeáveis a novas experiências e aspirações sociais. Apareceram inicialmente como defensores do ambiente e do equilíbrio ecológico, ou dos direitos das mulheres, ou dos consumidores, ou de interesses específicos de âmbito local ou regional, mas cedo compreenderam a necessidade de dar coerência e alcance mais geral a essas acções. Sob o lema “agir localmente, pensar globalmente”, têm vindo progressivamente a integrar aquelas preocupações parcelares num projecto, ainda em elaboração, de modificação radical do sistema social. No entanto, não é de esperar que o seu exemplo conduza necessariamente à reconversão dos partidos tradicionais e ao desbloqueamento do quadro partidário.
Assim, as pessoas politicamente intervenientes defrontam-se hoje com uma situação paradoxal dificilmente sustentável. Por um lado, em termos de eficácia do resultado eleitoral, tendem a confiar o voto às grandes formações políticas de vocação eleitoral, tendencialmente bipolarizadoras e redutoras da complexidade das opções políticas e sociais. Por outro lado, cada vez mais procuram uma maior eficácia na resolução de problemas específicos – defesa de direitos, interesses locais, políticas sectoriais relacionadas com os seus interesses profissionais e culturais – em movimentações associativas exteriores aos partidos, com a vantagem de muitas vezes se obterem a este nível consensos que intersectam as divisões partidárias.
Os movimentos sociais e as lutas temáticas ou transversais serão o terreno por excelência da geração de novas perspectivas concretas de dinâmica social. Todavia, pelo sua fragmentação, podem não ter as melhores condições para o simultâneo processo de síntese de quadros mais gerais de referência. A este nível, são fundamentais associações mais vincadamente políticas mas não partidárias que, embora podendo e devendo intervir na prática política, estejam libertas das constrições partidárias e de uma preocupação preferencialmente eleitoralista. Este tipo de associação política é também mais atractiva da participação política de pessoas com desejo de intervenção, mas relutantes à militância partidária, ao mesmo tempo que, não sendo uma oposição aos partidos, pode contar com o contributo de militantes partidários. Além disso, as associações políticas não partidárias têm melhores condições de interpenetração com a acção e preocupações dos movimentos sociais, sem riscos de instrumentalização para fins eleitorais.
Sendo necessária esta “ascensão do social ao político”, é indispensável que o sistema institucional não a obstrua. Os novos caminhos de aprofundamento da democracia serão experimentais, vindos do auto-laboratório social, e por isso não são pré-definíveis pelo ordenamento constitucional e jurídico as formas concretas daquela ascensão ou o papel a desempenhar pelas organizações políticas não partidárias. Mas é necessário que o sistema mostre capacidade de recepção a novas formas organizativas da reflexão e acção política, lhes dê à partida cobertura institucional e lhes faculte meios de funcionamento.
Reencontramos afinal, a terminar, a mesma lógica com que começámos por defender a democracia participada, concluindo que a “melancolia da democracia” não é sanável no quadro limitado, formal e rígido da democracia representativa tradicional.