João Vasconcelos Costa
A Europa – como todo o mundo, mas com especificidades nossas — tem vindo a manifestar tendências políticas essencialmente convergentes para um padrão comum. Portugal parece ser exceção, pelo menos em relação a quatro fenómenos marcantes. Será mesmo exceção? Se sim, porquê? Ou é só um desfasamento num processo geral?
1. O bipartidismo em causa.
Com exceção do Reino Unido, o bipartidismo europeu não é o que deriva do sistema eleitoral uninominal e maioritário, como nos EUA, dominado por dois grandes partidos alternantes: conservadores e trabalhistas no RU, democratas e republicanos nos EUA. Na Europa, são habitualmente os polos principais de dois conjuntos de forças, relativamente equilibrados, com muito entendimento “ao centro”, mas num quadro eleitoral que permite maior representação. Caracteristicamente, é difícil a obtenção de maiorias absolutas, governando-se em coligação ou com acordos extragovernamentais.
Este modelo está a claudicar, com o enfraquecimento do que eram, durante muitos anos, os polos tradicionais do que alguém chamou cá o “arco da governação”. Casos marcantes são o francês, com a emergência de Macron, o da nova configuração italiana, ou o de Espanha, com o Podemos e o Ciudadanos a ameaçarem a hegemonia do bipartidismo do PSOE e do PP. Por outro lado, a lógica partidária, de instituição, tende cada vez mais a ser substituída pela mediatização de figuras carismáticas, com menorização da discussão programática e da identidade do partido.
Em Portugal, o sistema, praticamente como desde as primeiras eleições livres (fora o aparecimento posterior do BE), mantém-se inalterável e aparentemente sólido, tendo fracassado ou tido grandes dificuldades a formação de novos partidos.
As sondagens dos últimos meses mostram bem que, mesmo com uma solução governativa envolvendo partidos fora do “arco”, as transferências eleitorais se continuam a fazer entre o PS e o PSD, sem que o BE e o PCP tenham beneficiado da novidade política do seu acordo com o PS.
Assim como o peso do CDS não dá para juntar consideravelmente mais direita à direita, também a esquerda não juntou consideravelmente mais esquerda à esquerda. São dois blocos em que a parte mais movediça de cada um está apontada para o centro.
Ao contrário dos países referidos, não se vê uma alteração deste balanço oscilante com eixo no centro.
2. A extrema-direita
Novamente, somos exceção à regra, sem emergência de uma extrema-direita (melhor dito, ultradireita, por essa Europa fora) organizada e com expressão política. Os grandes temas desse novo fascismo são-nos comuns, mas com intensidade muito diluída.
Os imigrantes não rivalizam com os naturais para o mercado de trabalho, não são subsídio-dependentes e por isso o racismo, larvar, existe mas não tem manifestações coletivas. Os não heterossexuais são vistos pelas camadas conservadores como gente à parte, mas não são agredidos nem humilhados abertamente. As mulheres sofrem como sempre sofreram, mas isto é bem português, “sempre foi assim”. A violência e a criminalidade não chegam para criar um clima de desejo de maior autoridade.
Por tudo isto, e ao contrário da exceção anterior, pode-se compreender, objetivamente, que haja fundamentação social e cultural para sermos ainda uma exceção. Mas há que nos acautelarmos, porque a mudança social está acelerada e podem modificar-se rapidamente aqueles fatores de almofada de proteção.
3. O social-liberalismo
Por toda a Europa, admitamos que com a exceção recente do Partido Trabalhista e Corbyn, os partidos socialdemocratas renderam-se ao pensamento económico, social e político hegemónico do neoliberalismo, começando pela assimilação pós-thatcheriana do trabalhismo sob a forma da terceira via blairiana. Essa degenerescência europeia é ainda mais manifesta por via da pressão do consenso de Bruxelas, dado que praticamente nada diferencia o europeísmo de socialistas e de conservadores.
A atual solução governativa portuguesa é impensável nos outros países europeus, mesmo naqueles em que a esquerda real tem equivalente peso político (por exemplo, na Alemanha), principalmente porque isso seria inaceitável para os próprios partidos socialistas ou socialdemocratas.
Mas seremos nós exceção? Parece-me que não. No essencial, a atitude diferente do PS não destoa, devendo-se fundamentalmente à necessidade bem prática e clientelar de garantir o poder. É verdade que o governo PS tomou medidas ao arrepio da tendência geral da sua família, mas foi o preço muito indesejado que teve de pagar. É instrutivo ler-se o programa do PS nas últimas eleições. Os pontos de encontro com o PSD (de Rui Rio, talvez não tanto de Passos Coelho) são bem mais do que pode parecer se nos lembrarmos só do que o PS teve de fazer, obrigado pelas circunstâncias. O poder justifica muitas torsões de corpo.
Além do mais, tenhamos presente que a conjuntura (e só ela!) possibilitou que alguma política a garantir a maioria parlamentar não tenha beliscado o essencial da preocupação estrutural da política do PS: cumprir as regras da UE, não por simples obrigação inelutável mas sim por profunda convicção, tanta como a do PSD. Aliados no que toca ao europeísmo, como por toda a Europa.
4. Os movimentos sociais
Com exceção de um sindicalismo enfraquecido, a vida político-social portuguesa não tem a dimensão social e movimentista-associativa-comunitária, tudo se resumindo, mesmo à esquerda, ao quase absoluto exclusivo da atividade institucional. O cidadão pratica a sua cidadania em frente da televisão, vendo as notícias do governo e do parlamento, entre muito mais tempo de futebol; ou então, como eu agora…, escrevendo no Facebook.
Por outras partes, na última década, surgiram, embora – reconheça-se – sem muito seguimento, consideráveis movimentações sociais, novas, independentes do sistema político-partidário tradicional. Os protestos de Atenas, as agitações violentas de Inglaterra e França, agora os coletes amarelos, o 15 de maio em Espanha, as marchas da dignidade, etc. tiveram em alguns casos como motor fatores sociais que não temos, como se disse atrás. Mas em outros, e vejam-se por exemplo as atuais reivindicações dos coletes amarelos, traduzem problemas económicos e sociais até menos gravosos do que os nossos.
É verdade que houve a manifestação gigante do “Que se lixe a troika”, mas que morreu de morte natural e esperada (ou de morte matada?…). No entanto, a regra é a apatia, a dificuldade de mobilização e o total predomínio da política institucional.
Concluindo, porquê?
Não tenho uma resposta. Melhor, algumas intuições, sem fundamentos racionalmente validados, são pouco simpáticas e “politicamente incorretas”.
Por falar no p. c., não será que há um excesso de discurso sobre questões identitárias, exclusivistas, que dificultam a compreensão da política e o sentimento de solidariedade de largas camadas que podiam ser atraídas por uma esquerda com mais sentido popular?
E é preciso mais do que andar pela rua, por exemplo, vendo como se conduz, para se ter a ideia da nossa enorme falta de educação cívica? E sem sentido dos deveres de cidadania, para com os outros, há solidariedade que vença o nosso “cá me arranjo e estou-me nas tintas”?
E é preciso ser-se professor para se verificar o fracasso da escola na formação de mentalidades, de racionalidade, de espírito crítico, tão necessários nesta época de competição económico-social, com reflexos de selvajaria a necessitar de compensação humanista? Ou tão necessária para a anulação dos efeitos nefastos (o outro lado da medalha) da comunicação maldosa ou até só mentalmente indigente das redes?
E percebermos que toda a gente tem nas mãos os gadgets tecnologicamente mais sofisticados mas na cabeça ainda um velho ábaco e uma ardósia?
E é preciso ter lido Gramsci para se ter a ideia de que, conscientemente ou não, a esquerda não tem tido eficácia no essencial combate ideológico e cultural à hegemonia da classe dominante, não só mediante a comunicação social, mas muito por meio da formatação ideológica pela universidade, ou pela “cultura de empresa”?
E ainda que muita gente de esquerda, se não revê no seu quadro partidário limitado, entre – passe a simplificação caricatural, só para facilitar a ideia – um PCP visto por muitos como rígido, funcionalizado, desatualizado, entre uma teoria de que a história fez desconfiar e uma prática rotineira e que não rasga horizontes; e, por outro lado, um BE visto por muitos como um partido com imaturidade, pouco sentido das realidades, de intelectuais pequeno-burgueses desligados do povo e com muito diletantismo libertário, indo a todas, desde o trabalho precário e o Estado social às pseudomedicinas e à “cultura canábica”.
E, mais um e, essa situação dilemática sem que pareça viável a formação de um novo partido (ou qualquer outra “coisa” política) de esquerda, qualitativamente diferente dos atuais, com uma visão moderna da dinâmica social e das novas formas do “motor da história”, com capacidade de mobilização por bandeiras bem sentidas e enraizadas na vontade popular, e com firmeza, clarividência e recursos no combate cultural e ideológico.
A lista é muito mais longa. Se não refletirmos, podemos bem deixar de ser a tal feliz exceção na Europa.
4.12.2018