Escrever contra a hegemonia

João Vasconcelos Costa

Na cartilha marxista-leninista (diga-se que a única forma de formação possível na época), o marxismo era tido como um determinismo estritamente político-económico com base exclusiva na luta de classes e na contradição entre as forças e os meios de produção. era uma leitura catequística, porque Marx sempre apontou para fatores superestruturais, com destaque para os ideológicos e culturais.

Mais tarde, um grande pensador marxista e lutador, mártir do fascismo de Mussolini, António Gramsci, teorizou sobre esses fatores superestruturais, principalmente no plano da informação, da cultura, da ideologia. A classe dominante pode, e faz, ultrapassar a luta de classes no sentido clássico, económica e social, construindo a hegemonia cultural e ideológica, pela qual as camadas populares assimilam valores e ideias de “sentido comum” que servem os interesses dos dominantes e que travam oposições revolucionárias.

Para conquistar o poder, não basta ao proletariado ganhar nas condições objetivas e económicas, é necessário que conquiste o “sentido comum”, cultural, ideológico, da maioria da população (isto, principalmente, se se quiser respeitar a democracia maioritária). Da mesma forma, o capital pode manter o seu domínio se alienar a consciência das massas, se lhes interiorizar formas “espontâneas” de cultura, ideologia, conceção da sociedade, da política e da ideologia. Isto é, tão importante como a luta de classes (e, afinal, dialeticamente interligada com ela) é a luta pela hegemonia.

Exemplos deste “sentido comum”? A democracia só pode ter a forma de democracia representativa partidária que conhecemos. A propriedade privada é sagrada. Os políticos são todos corruptos. Não quero o meu filho em escolas com muitos ciganos. As mulheres não são tão competentes, porque limitadas pelas tarefas maternas. O Estado é um mau gestor. As pessoas devem lutar sempre pela sua competitividade e por isso serem premiadas. As ajudas sociais só premeiam a preguiça. O cheque de ensino é um sinal de igualdade. E tantos mais.

A degenerescência dos ideais da social-democracia, os centrismos, a difusão de consensos como o de Washington ou o de Bruxelas, o pensamento único económico, a mentalidade de competição selvagem e a falta da solidariedade ou de preocupação pelos grandes problemas transversais, a aceitação do enriquecimento corrupto no terceiro mundo facilitado pela globalização, etc., são simples exemplos de aspetos da conquista de hegemonia pelo capitalismo, e a que não se vê resposta.

Por muito importante que seja a luta pelos objetivos sociais, pelo estado social, pelos direitos dos trabalhadores, o seu sucesso é precário ou localizado enquanto o capital, exercendo a hegemonia – com a alienação de largas camadas sociais não burguesas clássicas – souber que, no plano estratégico, não está ameaçado.

Os instrumentos de domínio da hegemonia são múltiplos – universidade; teoria, normas e práticas da “modernidade” de organização e gestão empresariais; igrejas; instituições corporativas; as escolas-jotas partidárias; as mais diversas “fraternidades” – mas é óbvio que, acima de tudo, a comunicação social.
Atiro ao acaso, sem números certos. De quatro em quatro anos, o cidadão exerce aquilo a que reduz toda a sua cidadania, o voto. Aposto que 90% desse voto é determinado pela comunicação social, ficando o resto para o estudo e programas, a assistência a debates políticos ao vivo, etc.

O principal instrumento da hegemonia é, sem dúvida, a televisão. Pelos meios envolvidos, é obrigatoriamente um instrumento conservador e defensor do pensamento hegemónico. É verdade que muitos estados, como o nosso, têm uma TV de “serviço público”, mas é patente, sem que este espaço me permita desenvolver, que pouca diferença faz para a privada.

Os jornais em papel estão em decadência, em vendas e qualidade. Já não se vê sentido para se falar em “referência”. Uma regra de concorrência é a pluralidade. Mas esta limita-se, tal como nos debates de televisão, a dar voz às várias correntes, transformando esse tipo de informação/opinião em mera câmara de eco das intervenções oficiais partidárias.

Não há uma comunicação social da sociedade civil!

Refiro-me à comunicação tradicional, mesmo incluindo a eletrónica. Muito mais complicada é a informal, de portais, sítios pessoais, facebook e outras redes sociais. Fica para próximo artigo.

Importante, desde logo, é distinguir a comunicação independente da oficiosa. A composição do corpo de jornalistas e de colunistas dá ideia do pluralismo, tanto quanto o conteúdo. Claro que por independente não entendo um albergue espanhol, mas fundamentalmente a independência da publicação em relação a ideologias, objetivos táticos (“não é oportuno publicar!”) e propaganda de partidos. Pode ser isto um objetivo comum de esquerda? É mais um tema a discutir seguidamente.

É óbvio que cada partido tem o direito de criar os seus próprios mios de comunicação, mas isto não corresponde ao que pretendo e me faz escrever aqui. Referindo-me só às publicações online, o PCP tem o Avante e o Militante. Muito bem, embora desconfie de que são lidos apenas pelos militantes do partido ou apoiastes indefectíveis. Mas também tem o AbrilAbril, menos visível como jornal controlado pelo PCP. Também o esquerda.net é obviamente o órgão oficioso do BE.

Na nossa fase política atual, com o sucesso da “geringonça”, a atenção geral desviou-se para o plano institucional, dos partidos, dos órgãos de poder. Interessam é as notícias sobre as pequenas medidas políticas, não se discute o significado histórico, mesmo a médio prazo, desta estratégia, diminui-se o valor da reflexão política e da participação social. É uma forma de alienação do político como cidadania. Mais uma razão para uma comunicação de esquerda, pluralista e não enfeudada aos interesses do quotidiano.

26.3.2018