Debate sobre regulação, Estado e mercado (I)

Alberto Amaral e João Vasconcelos Costa

O meu texto “A regulação da criação de cursos – o papel do Estado e do mercado” suscitou uma estimulante troca de ideias, por e-mail, com o Prof. Alberto Amaral (AA), que me enviou comentários que reconheço como de alta qualidade e pertinência, mesmo quando não concordo com eles (e, como se verá, muitas vezes concordo, achando que a diferença entre nós é mais aparente que real). Penso que é um exemplo instrutivo do que deve ser um debate sério e bem fundamentado, e por isto, com autorização de AA, coloco-o nestas páginas. O que se segue são as minhas respostas às mensagens de AA. Publico só as respostas para evitar repetições, porque elas contêm (como nos “reply” dos “e-mails”) os comentários de AA. Começo por um comentário geral que só fica perceptível depois de, logo adiante, se ler os comentários de AA. Os leitores que me desculpem esta ordenação um pouco irregular, mas pareceu-me a única forma de conseguir editar como texto a troca de correspondência. Se quiserem, comecem pelos comentários de AA e regressem depois à minha resposta geral. Mas tenho que a colocar em primeiro lugar para que se percebam algumas das respostas pontuais que dou depois a AA e que, por ter escrito a introdução geral sobre a minha posição, ficam por vezes muito sintéticas e com riscos de má interpretação.

1º mensagem de JVC a AA, em resposta aos seus comentários

Muito obrigado pelos seus comentários e pela paciência de ter lido o meu texto. O problema é que, suscitando-me, com o maior prazer intelectual, uma resposta, obrigo-o a mais trabalho! O problema dos e-mails é que nos obriga a ser concisos, o que muita vez trai a complexidade do pensamento. Arrisco-me a que esta resposta gere novos mal entendidos. Só com uma boa conversa é que nos entenderemos e veremos que talvez não tenhamos tantas discordâncias como parece (apesar de as termos, de facto).

Alguns dos seus comentários referem-se a omissões do meu texto, justificáveis por economia de espaço. Os outros são substanciais; em alguns casos mostram divergências de facto entre nós, mas em outros são resultado de equívoco sobre a minha posição, certamente por deficiente exposição minha. Deixe-me, por isto, fazer uma introdução geral de esclarecimento, antes de responder aos seus comentários.

Para simplificar a conversa por aqui fora, vou reduzir a regulação a três modalidades extremas: auto-regulação pelas universidades (o que de facto, para mim, não é regulação nenhuma), regulação pelo mercado e regulação pelo Estado. A minha posição é a que o AA chama híbrida.

A sua posição, tanto quanto a interpreto do que tenho lido de si (sempre com o maior interesse), nomeadamente todos os seus artigos do CIPES que estão na net e outros, parece-me clara, como defensor da regulação pelo Estado e forte crítico do mercado. Ou estou errado? Também não me parece ver da sua parte uma posição de defesa da nossa situação actual de desregulação/auto-regulação. Só não consigo perceber bem dos seus trabalhos é a forma prática que defende de regulação pelo Estado: governamental? por consenso ou diálogo entre o governo e as universidades? por órgãos intermédios ou independentes? Ou considera que a auto-regulação pelas universidades, sendo elas parte do Estado, é também uma forma aceitável de regulação pelo Estado (julgo que não pensa assim, até porque escreve em vários sítios sobre a dualidade autonomia das universidades e supervisão pelo Estado, diferenciando assim as duas entidades).

Nos seus comentários, parece que me vê como um adepto do mercado, puro e duro. Nada mais falso – não me soube fazer compreender. A minha posição é híbrida, um termo que o AA usa muito nos seus escritos. A minha perspectiva é a da intervenção do mercado mas só naquilo que ficar para além do que chamo serviço público, contratualizado. O que acho é que nem tudo o que a universidade decide e produz tem que ser obrigatoriamente considerado serviço público e por isto cai residualmente no mercado. Mas, por outro lado, pelo próprio conceito de serviço público, entendo que, obviamente, não é ao mercado que compete defini-lo.

A minha posição tem a ver com o problema central da indissociabilidade entre regulação e financiamento, que é colocado por alguns factos que me parecem indiscutíveis, já ou tendencialmente: 1. a oferta é exagerada e as universidades públicas já estão a entrar na situação oposta à de há alguns anos, isto é, maior oferta que procura; 2. daí, com a diminuição do número de alunos e a fórmula de financiamento segundo o número de estudantes, o financiamento vai diminuir ou terá que haver novo sistema de financiamento (o que eu defendo com a contratualização e com várias propostas alternativas que apresento no meu livro); 3. o encurtamento dos cursos, na tendência de Bolonha e não só, leva à mesma situação; 4. independentemente disto, as dificuldades orçamentais, pelo lado do governo, vão-se agravar; 5. como não se vão despedir professores, as despesas de pessoal vão ser custos fixos e a redução do financiamento vai afectar o funcionamento de maneira desproporcionada; 6. a diversidade, de que trataremos adiante, não pode deixar, realisticamente, de ter limites por parte do financiamento público e, portanto, sendo ela necessária (aqui estamos de acordo), as universidades vão ter que a suportar de outras formas e não vejo alternativa ao mercado; 7. pelo desequilíbrio oferta/procura, as privadas, mais sujeitas ao mercado e aos seus riscos, ou vão falir ou vão ter que se ajustar mais rapidamente a esta nova situação (veja-se o exemplo que me dá adiante da medicina), deixando para trás as públicas, com a sua inércia, o que agravará a situação destas, sem alternativa actual ou proposta por elas a estarem sentadas à mesa do orçamento.

Com tudo isto, estou convencido de que é insustentável (e mesmo não ético, politicamente) o sistema actual de livre iniciativa da universidade, sem limites, obrigatoriamente sustentada pelo orçamento público. Donde, é necessário que o sistema tenha alguma regulação. Está de acordo? mas que regulação?

De tudo isto nasce a minha tese, cujos pontos enumerei por ordem enganosa no meu texto, mas que agora corrijo: 1. o Estado deve fazer com as universidades públicas contratos de serviço público abrangendo os cursos relevantes (cuidado com a palavra – não falo em relevante para o mercado, como adiante deixarei bem claro!), com reflexos financeiros (a custos reais); 2. o serviço público deve ser considerado em sentido amplo, inclusivamente cultural, e não só determinado por motivações utilitaristas e relacionadas exclusivamente pelo mercado de trabalho; 3. esta contratualização deve ter por base uma posição muito determinante de um organismo independente, para evitar os erros de burocratismo inevitáveis na acção da administração, especialmente a nossa; 4. a utilidade pública, nestes termos alargados, deve estar relacionada com a avaliação, a acreditação e critérios políticos de relevância (insisto que mais largos que a mera empregabilidade); 5. mas, para garantia da maior diversidade e concorrencialidade das universiaddes, elas podem ter iniciativas e ofertas para além do serviço público, mas então sujeitas ao mercado e com financiamento dele decorrente; 6. a acreditação e a avaliação são factores de informação e correcção dos vícios do mercado, em especial do mercado especial da educação, com características próprias que AA bem discute nos seus artigos.

Em conclusão, para usar os seus termos, parece-me que a minha posição é de hibridismo, mas até começando por dar mais ênfase ao papel do Estado (mas por via da contratualização) e deixando ao mercado só um papel complementar.

Vou responder agora aos seus comentários, intercalando as respostas no seu texto.

AA – 1.ª página, 1.ª linha – o que diz é verdade da Europa continental mas não se aplica ao UK onde durante séculos as universidades gozaram de forte autonomia que só foram perdendo à medida que passaram a depender dos fundos do Estado, problema que se agravou com Margaret Thatcher.

JVC – É verdade. É um dos casos de simplificação minha para não me alongar. Mas de facto indesculpável em quem, como eu, é tão admirador do sistema universitário inglês (pré-Tatcher e pré-unificação do sistema). Mas já que a nossa discussão é tanto sobre o mercado, não esqueça o papel que o financiamento não estatal (propinas, mecenato, rendimentos fundiários e mobiliários, etc) e, logo, o mercado, tinham no sistema inglês, principalmente nas universidades de elite, que nunca foram baratas.

AA – Não é verdade que as universidades americanas estejam apenas sujeitas às regras de mercado. Pelo contrário, existe abundante legislação ao nível estadual que condiciona a sua actuação e a evolução recente aponta para uma intervenção crescente do estado. Além disso a existência de um Board of Trustees altera completamente a lógica de funcionamento.

JVC – É erro meu de generalização. Estava a pensar principalmente nas americanas privadas, que são, em termos de qualidade e notoriedade, as paradigmáticas (embora haja muitas estaduais de grande qualidade). Quanto aos Boards, julgo que também é a sua vez de generalizar. Há boards com a lógica de defensores da qualidade, diversidade e inovação contra os interesses utilitários estreitos (estes são os constituídos em função da qualidade pessoal dos seus membros), mas também há os casos em que são principalmente conselhos de administração de empresas, só “business oriented” e representantes dos empresários (diga-se donos) da universidade.

AA -A questão da empregabilidade e da relevância que aparecem não só na 1.ª página mas em todo o artigo. Como diz Guy Neave o conceito de emprego tem vindo a ser substituído pelo de empregabilidade – o que era um direito – o direito ao emprego – está a ser convertido em nome das sacrossantas leis do mercado e da procura do lucro numa mera capacidade para atrair a atenção dos empregadores num regime de trabalho que se aproxima do da jorna. Lembra os filmes sobre a Sicília onde na praça da vila se agrupam os trabalhadores esperando ser escolhidos pelo capataz para o trabalho braçal. Não sei se estaremos a construir um mundo mais justo e mais feliz. Quem define relevância? O mercado? Na discussão que está a haver no Futures Project (é americano!) reconhece-se que o mercado é incapaz de visões de longo prazo; a satisfação dos clientes faz-se em regra no curto prazo, na moda. Será que se pretende isto para o ensino superior? Da minha experiência como reitor nunca consegui extrair nada de muito positivo dos nossos empresários sobre as necessidades e a empregabilidade, a não ser banalidades ou visões míopes.
E será que só devemos manter cursos que garantam emprego? E se o meu filho quer ser pianista ou pintor ou filósofo? E como conjugar essa ideia com a defesa de que o aluno como cliente tem o direito de escolher? Devemos acabar com os cursos de Letras? E com os cursos de Física que não conseguem atrair alunos em quantidade?
No relatório Mjos sobre a nova reforma da Noruega aponta-se claramente como obrigação do Estado proteger as áreas que não tendo embora procura são importantes para a Noruega. Como é que isso joga com o mercado?
Já leu no Futures Project o relatório sobre a Nova Zelândia onde o Ministro da Educação reconhece que a utilização do mercado como regulador do ensino superior levou ao caos?
Confesso que tudo isto é fascinante. No debate do Futures em New York, em que participei, vi os americanos a clamar que é fundamental que o Estado proteja as universidades do mercado. Na Europa vejo os aprendizes de feiticeiro a depositar no mercado todas as esperanças de resolução dos problemas, invocando o exemplo americano! Meu amigo, pessoalmente estou convencido que o mercado nunca será um bom regulador (não só sob o ponto de vista da eficiência mas, também, do interesse e justiça social) do ensino superior.

JVC – Ao contrário do que possa parecer (penso que temos culpas partilhadas: eu não me soube explicar bem, mas o AA talvez me tenha lido com algum “partis pris”, na sua desconfiança contra o mercado) estamos aqui inteiramente de acordo, como tentei dizer sinteticamente na introdução a esta mensagem. Interesse público não é só emprego no seu sentido mais imediato. Volto a insistir que o centro da minha tese sobre regulação é a noção de serviço público contratualizado e não a de satisfação – muito menos a curto prazo – do que PARECEM ser as necessidades do mercado. E quanto ao que penso da empregabilidade, anoto só, anedoticamente, que costumo dizer que o sistema ideal (volto aos meus referenciais ingleses, entre nós utópicos e mesmo já lá, se descontarmos as universidades de elite) é o das empresas da City com quadros superiores formados em Cambridge ou Oxford em filosofia ou humanidades, assim como costumo dar o exemplo dos estudos teológicos do Darwin. Continuo a ter grandes pecados de elitismo em relação às universidades (creio que transparecem bem no meu livro) e acho que uma das suas missões é formarem “well educated gentlemen”. Acho que isto diz tudo e mostra a nossa convergência.
Também concordo consigo em que esta tendência de resistência contra os interesses do mercado puro e duro está a crescer nos próprios EUA. Para além do que me diz do Futures Project, que tenho lido com interesse, sabe que são hoje muitos os casos em que os órgãos académicos estão a querer maior intervenção junto dos “boards” para acutelar os interesses formativos gerais e culturais e a “scholarship” contra os interesses imediatistas do mercado.
Mas obviamente que hoje temos que falar em relevância e em empregabilidade. Mas, com também insisto largamente no meu livro, a empregabilidade hoje está muito mais relacionada com cultura, competências, saber-fazer e aptidões gerais ou transversais do que com meros conhecimentos especializados. Estou certo de que está de acordo. E aqui entra outra vez a questão da necessidade da regulação das nossas ofertas educativas, porque as universidades têm um longo catálogo de cursos de banda estreita totalmente ao contrário desta filosofia e que o Estado sustenta. Mas também lhe concedo razão, neste aspecto, na sua desconfiança em relação ao mercado, porque as empresas ainda não souberam ver os vícios desta situação e ainda não têm critérios modernos de empregabilidade e de valorização das verdadeiras riquezas do capital humano.

AA – não me parece que, na prática, os objectivos da regulação tenham sido jamais os da qualidade e da relevância.

JVC – Não digo que tenham sido. Digo é que, a meu ver, devem ser, mas admito que possa estar enganado.

AA – 3.ª página – o conceito de diferenciação é usado com um significado diferente e com o mesmo sentido da diferenciação de funções e órgãos que surgem a partir de um embrião. Numa instituição social como a universidade diferenciação será, por exemplo, a criação de um gabinete de relações internacionais ou de uma escola de estudos graduados para assegurar novas funções. Veja, por exemplo Huisman, J., (1995), “Differentiation, Diversity and Dependency in Higher Education”, Utrecht, Lemma.

JVC – Tem razão. Neste caso, não estou a ir ao encontro das designações usadas correntemente. Fugiu-me para aí porque me interessa muito o problema da diferenciação, no contexto da inovação nas universidades. Mas para o problema em discussão, o da regulação, o que interessa é a diversidade e não a diferenciação.

AA – o conceito de mercado informado não faz sentido. Um mercado para funcionar tem de fornecer informação suficiente aos clientes ou compradores; um mercado sem informação é apenas um mercado imperfeito. E esse é o grande problema do “mercado” em educação – falta de informação e clientes imaturos. Veja, por exemplo, Amaral, Alberto e Magalhães, António, (2001), On Markets, Autonomy and Regulation. The Janus Head Revisited, in Higher Education Policy, pp. 1-14; e Dill, D., (1997), “Higher Education Markets and Public Policy”, Higher Education Policy, vol.10, 3/4, 167-185.
Imagine a seguinte situação: eu sou do Porto e quero seguir economia, podendo optar pelos cursos de Economia do Porto, da Técnica ou da UNL. Ir para a Técnica ou UNL implica um investimento adicional devido à deslocação para longe da casa paterna. Será que as mais valias obtidas na UNL em termos de proveitos futuros e carreira justificam o investimento adicional em relação a ficar em casa? Onde existe a informação relevante?

JVC -Creio que, como acima, a sua observação tem a ver mais com o que é a realidade do que com o que eu proponho. O que digo é que o mercado tem que ser informado – e, para mim, entre outras formas, por via da acreditação – o que subentende, como o AA diz, que ele não o é. Parece-me que está a tomar uma crítica minha como afirmação de um facto, quando é o contrário.

AA – 3.ª página. É por essa razão que os “rankings” fazem pouco sentido e são muitas vezes um disparate com pouco significado, trazendo mais prejuízos do que benefícios. Já fiz avaliações em muitas universidades por esse mundo fora e ainda não encontrei um grupo de alunos que afirmasse ter escolhido uma instituição pela “qualidade do ensino”. Veja, por exemplo, Lindsay, G., Rodgers, T., (1998), Market Orientation in the UK Higher Education Sector: the influence of the education reform process 1979-1993, in Quality in Higher Education, 4, No.2, pp. 159-171.

JVC – Admito que tenha razão. Não conheço estes dados e não tenho essa sua experiência pessoal. Quanto a Portugal, estou certo de que, pelo menos durante muito tempo, o factor da qualidade quase não jogava (daí a falta de noção da necessidade de competição nas nossas universidades). Mas parece-me haver indícios de que isto está a mudar. E mudará certamente quanto o balanço vagas/procura se desequilibrar mais (até só por razões demográficas), quando houver maiores condições económicas para a mobilidade dos estudantes e quando as empresas começarem a ter critérios diferentes de empregabilidade.

AA – É falso que a questão da escolha pela proximidade geográfica seja um problema português. Mesmo nos EUA a esmagadora maioria dos alunos não sai do sítio de residência. No próprio UK o aluno está cada vez menos móvel – com a massificação os custos da mobilidade são insuportáveis. Que a localização da instituição de ensino é um determinante forte da escolha já é conhecido há muito tempo e é uma das razões do “cliente imaturo” apontadas por Dill. Veja, por exemplo, Clancy, P., Numerical Expansion and Contracting Autonomy in Irish Higher Education, in Prometeus Bond: The Changing Relationship Between Government and Higher Education in Western Europe, Oxford, Pergamon Press, 1992.

JVC – Falei de Portugal só como exemplo, porque o texto está orientado para a discussão da regulação entre nós. Mas parece-me exagero da sua parte comparar Portugal com os EUA (concordo que o faça com a Europa). O que diz é verdade para as universidades de segunda linha que, por variadas razões (principalmente preço mais baixo das propinas) recrutam a maioria dos estudantes e de facto fazem-no, em grande parte, localmente. Mas se formos para as grandes universidades (inclusivamente algumas estaduais, não falo só de Harvard, Yale ou Princeton), têm estudantes que a elas acorrem vindos de todo o país. Isto é ainda mais notório a nível do master ou do PhD.

AA – A situação das universidades privadas em Portugal tem muito mais a ver com o efeito da privatização tardia do que com o mercado. Nos EUA as primeiras universidades constituídas foram todas privadas, não públicas, sem intervenção do governo federal. Apesar de tudo, é preciso perceber que nos EUA os alunos frequentam maioritariamente o sector público (cerca de 70% dos alunos) e não o privado. O fenómeno do domínio do privado ocorre em países de baixo desenvolvimento – América Latina e Sudoeste Asiático. Veja por exemplo Teixeira, Pedro e Amaral, Alberto, (2001), Private Higher Education and Diversity: An exploratory survey, Higher Education Policy, 55, 4.

JVC – Concordo consigo, mas não creio que tenha escrito em contrário. Nomeadamente, escrevi que as privadas portuguesas não se movem num mercado normal, mas num “mercado viciado”, em parte por elas próprias que, restringindo-se a universidades de papel e lápis, impõem ao mercado a sua gama estreita de produtos, sem correspondência ao que seria a procura normal e mais diversificada. É como se todas as padarias do país acertassem entre si só vender pão de centeio. Pode-se chamar a isto mercado?

AA – 4-ª página – A medicina! Não houve investimento das privadas em medicina devido ao seu valor extremamente elevado; uma das características da privatização tardia é exactamente a fuga ao risco! Porém, curiosamente, agora que as privadas lutam com enorme falta da candidatos e a falência de algumas aparece no horizonte, algumas julgam que o investimento nas áreas de saúde é uma oportunidade de salvação pois há sempre um pai rico para pagar 1500 contos de propinas por ano para ter um filho médico. Ao contrário do que pensa existem neste momento 6 propostas privadas para a criação de Faculdades de Medicina as quais estão em apreciação no Ministério. E se fossem aprovadas, essas 6 instituições estariam a curto prazo de novo numa situação económica precária devido à desvalorização do valor do curso de medicina por excesso de licenciados.

JVC – Da resposta anterior, conclui-se pela minha concordância. Sei que há agora propostas privadas para a medicina. Quando digo no texto que as privadas não se tinham interessado por esta área referia-me à “situação histórica”, pelas razões que acabei de referir.

AA – Será que a oferta deve corresponder exactamente à procura? Então vamos saturar o país com mais 15 cursos de medicina na certeza de que quando os alunos concluírem os cursos não terão uma carreira médica à sua frente e possivelmente irão guiar um táxi. Então a procura irá diminuir drasticamente pois a medicina perdeu valor posicional, vamos de novo diminuir os numerus clausus e recomeçar todo o processo!

JVC – Concordo. Aliás, uma das grandes diferenças do mercado educacional em relação ao mercado em geral é a da imprevisibilidade no imediato e da necessidade de antecipar necessidades a prazo.

AA – A proposta americana feita ao GATS é uma barbaridade! Tem origem não na Educação mas no departamento de comércio, numa lógica de que é uma exportação importante dos EUA. Seria bom que lesse o documento “Education and Training Services in International Trade Agreements” preparado por Bernard Ascher, Director of Service Industry Affairs at the Office of the US Trade Representative in Washington, D.C., bem como a posição extremamente negativa assumida conjuntamente pelas associações representantes das universidades da Europa (EUA), dos Estados Unidos (CHEA) e Canadá, na qual se instam os governos a não aprovarem a proposta americana.

JVC – Não tomo este seu comentário como discordância, porque acho que o meu texto deixa bem claros os riscos do GATS, que muito me preocupam. Limitei-me a descrever o processo e a ter em conta, realisticamente, que provavelmente, em função dos interesses investidos, talvez não possamos fugir às suas consequências desastrosas. Felizmente, como diz, está a haver luta (conheço o documento Europa-EUA-Canadá que refere e cito-o no meu texto), mas não confio demasiadamente nos seus resultados, principalmente quando penso na força da educação transnacional de origem americana (e não falo da de boa qualidade, mas de toda a outra que é mero negócio). Oxalá me engane.

AA – Duvido muito das virtudes dos órgãos intermédios como órgãos dinâmicos, inovadores e progressistas. Tendem, pelo contrário, a tornar-se horríveis burocracias como aconteceu em Espanha e Itália ou na Hungria (eu avaliei a agência Húngara para o Banco Mundial e posso garantir-lhe que é um verdadeiro pesadelo que até o Banco Mundial quer alterar). E a ideia de lhe adicionar uma representação do Governo e da Assembleia da República, politizando o processo, é uma excelente receita para a catástrofe! Veja-se, a título de exemplo, o papel e funcionamento do CNE!

JVC – Talvez tenha razão, mas ainda acredito menos na regulação por uma direcção-geral. Com alguma imaginação, talvez cheguemos a uma solução que conjugue rigor, qualidade, eficiência e desburocratização. Qualquer coisa que não permita processos como o que estava previsto no projecto de decreto de criação dos cursos! De qualquer forma, eu adiantei que, na prática a acreditação e regulação que propunha, por estreitamente relacionadas com a avaliação, podiam ficar a cargo de uma espécie de CNAVES modificado, por exemplo com maior participação de “stakeholders” (embora este assunto e a validade PRÁTICA da intervenção dos “stakeholders” dê pano para mangas, como o AA já escreveu). Ora, ao contrário do exemplo que dá do CNE, julgo que há uma ideia muito mais favorável em relação ao CNAVES.

AA – 6.ª/7.ª página – as instituições são livres de criar cursos mas estes são sujeitos a uma acreditação inicial. Depois entra o mercado! Não são coisas a mais, até mesmo contraditórias?

JVC – Creio que desfiz este equívoco na introdução a esta mensagem.

AA – é falso que haja uma tendência geral, real para a acreditação; o que há é uma propaganda de certos sectores, em regra liderados por consultores internacionais com interesses salariais no assunto que leva a fazer crer que isso é verdade.
Os primeiros sistemas de acreditação foram estabelecidos nos US, quer a nível de cursos quer a nível institucional e não são tão voluntários como isso. Se uma instituição não estiver acreditada os seus alunos não podem receber apoio federal, por exemplo como bolsas ou vouchers! E o curioso é que nos US, com essa longa tradição de acreditação, o sistema entrou em crise e há propostas para o alterar de forma a que se aproxime do sistema de auditorias de qualidade praticadas, por exemplo, pela CRE. Ora isto deve levar-nos a pensar! Veja, por exemplo, Dill, D., et al (1996), “Accreditation & Academic Quality Assurance – Can We Get There From Here?”, Change, September/October, p. 17-24 e, ainda, The US accreditation sustem and the CRE’s quality audits – a comparative study, A. Amaral, Quality Assurance in Education, vol 6, nº4, 1998.
Por outro lado é preciso ver que a posição dos Ministros em Praga é bem mais cautelosa do que a dos exaltados em relação aos sistemas de acreditação, sendo a declaração bem inócua e nada tem que ver com as pressões que foram feitas no sentido de se criar uma agência europeia de acreditação – proposta que foi completamente destroçada na reunião de validação de Lisboa.

JVC – Neste ponto, não estou de acordo consigo. Estou mesmo convencido de que a acreditação é uma tendência forte, independentemente de subscrever alguns dos seus argumentos que indicam que ela tem por detrás, muitas vezes, razões pouco sérias. Mas veja que mesmo em Portugal, se pensar na acreditação dos cursos pelas ordens e na acredidação pelo INAFOP, talvez metade de todas as nossas licenciaturas já são objecto de acreditação.

AA – sendo o nosso sistema de avaliação dos mais aperfeiçoados da Europa deixo-lhe esta pergunta: está satisfeito com a eficácia desse sistema na melhoria da qualidade do Ensino?

JVC – Ora aqui está a questão mais difícil! Em primeiro lugar, concordo consigo – e escrevi-o – em que a nossa avaliação é muito avançada em termos europeus. Mas as consequências? Em primeiro lugar, temos que as ver em termos dos próprios relatórios. Li todos os que estão publicados e são de qualidade relativamente heterogénea. Há-os que considero excelentes e outros de menor qualidade e que pouco ajudam as universidades a melhorarem. Mas mesmo em relação aos primeiros, muitas vezes com recomendações muito importantes, que efeito têm tido nas universidades? Não me consta que tenham conduzido a grandes consequências práticas, mas não tenho dados seguros. Em todos os meus contactos com universitários nunca ouvi dizer, por exemplo, que um curso tenha sido modificado em função da avaliação.
É por isto que já escrevi que, não só cá mas praticamente por toda a Europa (com as excepções já actuais da Dinamarca e da Finlândia e futuramente da Noruega), o ponto fraco das avaliações é não terem instituído mecanismos eficazes de “follow up”. Até admito que não fosse o CNAVES a ficar sobrecarregado com esse processo e que coubesse às próprias universidades. É o que se passa na França. Um exemplo indirecto de que as próprias universidades avaliadas devem estar interessadas no “follow up” das avaliações foi a reunião de Granada, em que provavelmente esteve, das universidades do sul da Europa avaliadas pela CRE.
Uma das propostas que faço no meu livro é a de que a auto-avaliação deve ser um exercício regular das universidades, idealmente anual ou bienal mas sempre a intervalos mais curtos que as avaliações externas. Seria uma boa oportunidade para as próprias universidades terem que reflectir sobre a importância das recomendações da avaliação e o grau em que foram tidas em conta.

(continua Debate II)

11.11.2001