Centros de investigação – uma minha velha luta

Desde há bem 30 anos que critico persistentemente a nossa organização binária do ensino-investigação universitários, dividido entre unidades orgânicas universitárias (faculdades, escolas, institutos) e suas subdivisões (departamentos, etc.) e, por outro lado, em centros de investigação reconhecidos e financiados (na prática criados e tutelados) pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

A história é longa e começa ainda na primeira metade do século XX, com o Instituto de Alta Cultura. Os seus centros, autónomos da universidade, funcionavam no seu seio e com professores universitários, mas a conjuntura era completamente diferente.

Os centros tal como existem atualmente foram criados por Mariano Gago (JMG), então presidente da JNICT, antecessora da FCT. Constituiram uma rede universitária mas parauniversitária, independente da política e funcionamento das universidades. Malevolamente, muito se dizia disso como sinal da construção de um domínio de poder à margem da universidade e centrada numa geração relativamente jovem de doutorados no estrangeiro. Pessoalmente, quero crer que era principalmente a menor atenção prestada por Mariano Gago à universidade e à política universitária integrada, mesmo algum preconceito, por razões pessoais e de interesse científico.

Bastantes vezes discutimos isto, sem nunca nos entendermos. Argumentava JMG com razões de eficácia, de facilidade de avaliação, de focalização na atribuição de recursos, e de quebra do mandarinato universitário. Discordo de todas, porque é indiscutível que se pode obter o mesmo, sem a desvantagem de estruturas paralelas, na organização departamental, conjuntamente – melhor, integralmente – de ensino e de investigação.

O último argumento merece mais alguma nota. Em primeiro lugar, os centros criaram uma rede paralela de poder, tanto ou mais negativa do que a tradicional das universidades. De certa forma, até clivaram os universitários em duas camadas, os cientistas de primeira, sempre a escaparem-se ao peso do ensino, e os que ou não eram admitidos nos centros ou ficavam pelo caminho, a suportarem o grosso da carga docente. Mais, foi ciclo vicioso, porque, dependendo cada vez mais da investigação a carreira universitária, e esta necessitando dos financiamentos públicos, via FCT no caso nacional, quem não tinha acesso aos centros ficava prejudicado na carreira. 

Em segundo lugar, o mandarinato dos centros não foi nunca menor do que o das universidades. Eram as mesmas pessoas, com a mesma cultura, as mesmas ambições, mas tendo o mandarinato científico a vantagem do prestígio e dos recursos. Mas que eram dois poderes, nenhum melhor do que o outro, é comprovado pelo conflito frequente entre um e outro, em situações institucionais muito ambíguas. Eu vivi bem essa situação e posso fazer uma longa crónica. E o poder dos centros era exercido pessoalmente com muito menos equilíbrio de “pesos e contrapesos” do que no caso tradicional da organização universitária. Quem tinha o dinheiro para distribuir é que tinha o poder real.

É certo que um mandarinato eficaz é possível (o que não quer dizer desejável), desde que com a gestão de conflitos e o equilíbrio de ambições e poderes. Em muitos casos, mandarinato universitário e mandarinato da investigação coexistem bem, em proveito mútuo, mas em prejuízo a dobrar do sistema. O problema é que há sempre os muitos que atuam segundo a sua natureza incontrolável, como o escorpião.

Finalmente, é paradoxal que tenha sido o mesmo JMG a fomentar o grau mais extremo de concentração pessoal de poderes universitários, com o regime jurídico das instituições de ensino superior (RJIES), que, na prática, acabou com os mecanismos de governo participativo da universidade. Sobre isto, terei de escrever com mais espaço, dentro em breve.

Para a criação dos centros, depois acrescentada com os Laboratórios Associados, também foi muitas vezes invocado o exemplo internacional. É falso. JMG, bastante distante da cultura universitária anglossaxónica, conhecia o caso francês, com o CNRS paralelo às universidades. Simplesmente, o CNRS não vivia do pessoal e infra-estruturas universitárias. Embora com grande colaboração com a universidade (eu trabalhei temporariamente num laboratório em que coexistia universidade e CNRS), a separação institucional era total. Voltei a ter a mesma experiência na Suíça, onde eu trabalhava no Instituto do Cancro, lado a lado com membros da universidade. Mas cada um pertencia a um ou a outro. 

No modelo anglossaxónico (e escandinavo), das universidades de investigação (“research universities”) só excepcionalmente, por questões de patrocínio ou financiamento, mesmo de promoção de interdisciplinaridade, em geral temporalmente definidos, é que se criam centros de investigação à margem da estrutura departamental, integrada, de ensino e de investigação. As vantagens, em termos de conceção e planeamento da estratégia institucional, de resposta aos desafios, de procura de fundos, de promoção da qualidade e gestão das carreiras, são evidentes.

Chega a haver entre nós casos limites, aberrantes, de coincidência praticamente total entre uma unidade orgânica universitária e um centro da FCT. O diretor da unidade X de uma universidade faz relatórios sobre o ensino, investigação e serviços dessa unidade universitária X, tem um orçamento, gere-o, contrata pessoal. O mesmo diretor – pior ainda se não for o mesmo – do centro Y faz o mesmíssimo relatório, para avaliadores da FCT, gere outro orçamento paralelo, contrata pessoal e bolseiros em paralelo. Se isto tem lógica e é boa gestão, expliquem-me.

Claro que isto nada tem a ver com o sistema de financiamento. Mesmo nos países do modelo anglossaxónico, o financiamento da investigação é em muito separado do financiamento geral e de ensino das universidades. Mas uma coisa é duplicação na fonte, outra na receção. Tudo bem na existência da FCT como organismo especializado na programação, avaliação e concessão de financiamento científico, também como interface com fontes e programas de financiamento internacional, mas não patrocinadora das suas próprias unidades institucionais. É mesmo essencialmente contraditório.

7.5.2009