Bolonha revisitada (II)

João Vasconcelos Costa

Já há bastante tempo, escrevi um artigo, “Bolonha revisitada” com uma visão crítica, claro que a minha, sobre uma Bolonha cada vez mais mitificada. Talvez isto tenha a ver com um meu lado infantil de provocador e iconoclasta. Durante muito tempo, gabo-me de ter sido um estudioso e divulgador do processo de Bolonha, já tratado em muita extensão no meu livro velhinho (?) “A universidade no seu labirinto”. Isto até já me valeu o apodo de “bolonhólogo”. Hoje, felizmente, grande parte dos académicos estão com Bolonha, bem ou mal. Isto leva-me a uma provocação, com alguma demarcação. Ao mesmo tempo, vou ter de ser cuidadoso, para não alinhar com o niilismo de muitos dos nossos fazedores de opinião.

Este artigo pode ser mal interpretado. A minha intenção é fazer sair a nossa discussão de Bolonha do nível rudimentar e esquemático em que está e passá-la para um nível de reflexão critica de onde poderão emergir ideias criativas. Em boa parte, vou fazer o papel de advogado do diabo.

Começo por falar a sério. Estou profundamente atraído pelo chamado paradigma de Bolonha. Lá irei. Defendo tudo o que facilite a mobilidade, a vivência dos jovens de outras realidades com que se constrói a sua identidade europeia e que os ajudarão mais tarde a aproveitar as oportunidades de um mercado de trabalho alargado. Interessa-me ao máximo ver, na Europa, verdadeiros mecanismos de garantia de qualidade da educação superior. Considero que o processo é irreversível e que, com erros ou não, passar à margem é suicida. Verifico que tem conduzido, entre nós, a muita reflexão sobre a educação superior. Finalmente, quero ver a “área europeia da educação superior” mais competitiva, mas aqui é que está a minha principal dúvida.

Não acredito nisto e julgo que os instrumentos de Bolonha – harmonização, legibilidade, encurtamento de formações, empregabilidade do 1º ciclo – não bastam. Sou pessimista. Os “pobres” terceiro-mundistas já sabem bem o que querem. Os poucos com os necessários recursos continuarão a ir para as “top” internacionais e não é Bolonha que vai alterar significativamente a posição das universidades europeias nos “rankings”. Cambridge e Oxford já lá estão, com ou sem Bolonha.

E quem é que se quer atrair? Latino-americanos, com longa ligação com as universidades americanas? Africanos, com dois grandes pólos de atracção, a Inglaterra e a África do Sul? Asiáticos, que hoje dispõem ali próximo das melhores universidades do mundo?

No entanto, o processo de Bolonha tem coisas muito ricas e outras até caricaturais. Uma das coisas que me divertem é que Bolonha foi um tiro no pé dos políticos. Mal sabiam o que os esperava. Comece-se por se ler a declaração da Sorbonne. Revela bem o que hoje se chama a “agenda oculta” de Bolonha. Os motivos declarados são a “ideia europeia” e a competitividade. Não vou falar sobre o europeísmo, enjoa-me. Sou um europeísta convicto e, por isto, não suporto o aproveitamento medíocre de tão nobre ideia civilizacional. Passo para a competitividade, que abordei em parágrafos anteriores. Vendo bem, limita-se a fornecer formações mais curtas do que nos EUA. Nestes, o 4+2, na Europa, o 3+2. Alguém acredita que isto vá ser determinante?

O 3+2 merece-me grande reflexão, até no que respeita ao meu sentido de responsabilidade quando me lêem como seu defensor. É possível que esta minha defesa possa ser irrealista porque, baseada no sucesso do velho modelo inglês, precisa do cumprimento dos seus pressupostos. 1. Uma boa educação secundária, embora sejam os britânicos os primeiros a pôr em dúvida essa qualidade. 2. Uma educação superior que, com a velha influência newmaniana, incorpora tradicionalmente muito do novo paradigma de Bolonha. 3. Uma noção de empregabilidade geral da educação superior, avessa à nossa tradição de saída directa para as “profissões superiores” e para a especialização. 4. Exigência de prática certificada em algumas profissões, designadamente nas engenharias e na advocacia.

Vamos adoptar em Portugal, como se vê na maioria dos casos, um esquema 3+2 que incorpore estas características essenciais? Admito que não tenho dados objectivos para emitir uma opinião fundamentada. Estão a ser aprovados centenas de novos cursos “adequados” a Bolonha, mas ninguém os conhece. Desconfio de que, em muitos casos – a maioria? – é só cosmética. Muitos meus correspondentes me dizem isto, em relação à situação que conhecem bem das suas instituições, mas não quero ser mais acusado de fazer “escrita de confessionário”, baseada em conversas privadas. Seria inaceitável num artigo científico, mas desculpo-me com o facto de isto ser um artigo de opinião.

Se, de facto, o encurtamento da duração dos cursos é apenas menos do mesmo, dou a mão à palmatória, embora com alguma retracção da mão. De facto, em muitos casos, o simples encurtamento de duração já é benéfico, em termos de economia pública e das famílias. Julgam que vou falar das tecnologias da saúde? Gato escaldado…

Os outros dois aspectos parecem-me importantes. Primeiro a mobilidade. Nada a dizer contra. Com orgulho paterno, vou pedir licença ao meu filho, estudante do IST, para transcrever parte do que ele escreveu na sua carta de motivação na candidatura ao Erasmus (garanto que não tem uma palavra do pai e o inglês é o dele):

“I believe in the great idea of a European Union, but I see it mainly under the perspective of a balanced construction of diversified cultures and ways of living. Living and studying for some time in another country, learning its language and seeing in practice how people with a different culture acts, certainly will contribute a lot to my feeling of being an European. (…) My school is very good, but does not correspond to the real situation of higher education in Portugal, still retarded. Professors will certainly have a major role in improving the situation, but I feel that students will also have an important role. Studying in a more qualified system, like the Swedish, will be very important to my knowledge about what higher education should be nowadays and for my intervention after my return. (…) Being an Erasmus fellow will be a great voyage to learning and mind growth just by moving me to a different country and lifestyle. Moreover, I know that in Sweden it will be particularly special. Extremes are prone to provide stimulating atractions.”

Outro aspecto importante é o da harmonização. Nas minhas discussões sobre Bolonha, cada vez menos abordo os aspectos consagrados da estrutura de graus e da sua duração. Mas admito que, para um não europeu, a presente clarificação é benévola, face à anterior selva dos modelos europeus de educação superior. Que isto baste, como factor de atracção, é coisa muito diferente.

Volto ao tiro no pé dos políticos, que me diverte. Não tenho dúvidas sobre o que se chama a “agenda oculta” de Bolonha (melhor, da Sorbonne): cursos mais curtos, com maior “turnover”, significam menor financiamento. Significam também a entrada mais cedo no mercado de trabalho, com as consequências nos impostos e nas contribuições para a segurança social. Saiu-lhes mal, porque, com o processo e o paradigma de Bolonha, toda a gente vê hoje que isto só faz sentido com maior financiamento da educação superior.

Neste sentido, avulta o financiamento do mestrado. Já há muito tempo que a ESIB e os Trends mostravam a tendência para uma forte motivação para a continuação dos estudos a nível do mestrado. Isto é manifesto principalmente no domínio das ciências e das humanidades. Se assim for, os governos vão sofrer enormes pressões no sentido do financiamento dos mestrados. Talvez venha a ser mais um tiro no pé. Antes financiavam, em regra, quatro anos de estudos, agora vão ter de financiar cinco.

Mas os políticos são mestres em dar a volta. Um dos aspectos mais interessantes do processo de Bolonha é o da sua muito maior amplitude, em relação à UE, embora essa diferença tenha sido relativamente esbatida com o recente alargamento da UE. Mas a burocracia de Bruxelas é capaz de aceitar isto? Um sinal óbvio é a tendência recente para associar o processo de Bolonha à estratégia de Lisboa, nas mãos comunitárias.  Outro, mais preocupante, porque mais prático, é o de controlar a avaliação e a acreditação. A bem intencionada ENQA é muito capaz de soçobrar perante as tentativas bruxelenses de controlar o processo de acreditação da educação superior europeia. Tudo isto é uma apropriação comunitária ilegítima, porque a educação superior não é matéria dos tratados europeus, mesmo que tudo isto venha disfarçado com o aparentemente flexível “open method of coordination (OMC)”.

Pode mesmo haver grandes riscos de confusão, com trabalhos paralelos incoerentes ou mesmo contraditórios. É aconselhável que se vá acompanhando criticamente o projecto comunitário “Implementation of Education and Training 2010 – Work Programme”.

No entanto, com tudo isto, o processo de Bolonha é um sucesso indiscutível. Vale a pena reflectir porquê, para extrairmos as principais virtualidades e as aproveitarmos plenamente. Alguns factores são de natureza política e provavelmente secundária. É um processo alargado, isento da contaminação dos juízos, preconceituosos ou não, em relação à burocracia comunitária; é um processo consensual, não só entre governos mas também entre partes interessadas, tem dado grande importância à contribuição das universidades (nomeadamente precedendo as reuniões ministeriais das convenções universitárias, Salamanca, Graz, Glasgow) e das associações nacionais e europeias de estudantes.

Mais importante me parece o factor de fundo. Bolonha foi o motor-pretexto para as universidades finalmente se defrontarem corajosamente com uma crise larvar de muitos anos, manifesta, principalmente, nas consequências da massificação, no insucesso escolar, na desvalorização do título universitário pelo mercado de trabalho e, até, em alguma degradação científica face aos EUA.

No fundo, está o progressivo desfasamento da inerte educação superior europeia em relação aos desafios da sociedade do conhecimento. Numa época de preservação dos recursos e de volatilidade das tecnologias, a vantagem competitiva deixou de ser o capital fixo e a força de produção. O único factor permanente de riqueza é o homem, a sua capacidade intelectual e o seu conhecimento. É o capital humano, essencialmente caracterizado pela formação científica e técnica sólida, pelo sentido da inovação, pela rapidez e eficácia da adaptação. É aqui que acerta em cheio no alvo o paradigma de Bolonha: as competências são mais importantes do que a informação.

O trabalho na economia do conhecimento mudou radicalmente, anunciando o pós-taylorismo. Acaba a linha de produção, em que cada técnico superior tinha um lugar definido, bastando apenas actualizar-se tecnologicamente. O trabalho hoje caracteriza-se por inovação, organização por projectos, interdisciplinaridade, menor importância da especialização na divisão do trabalho, flexibilidade, hierarquia não rígida.

É neste contexto que se definem as competências inerentes ao paradigma de Bolonha: capacidade de inovação e adaptação, mentalidade de rigor e crítica, capacidade de raciocínio analítico e sintético, valorização do “emergente” em relação ao “autorizado”, numeracia e domínio das TI, capacidade de aprendizagem permanente, capacidade comunicacional, responsabilidade social.

Também não é alheio a isto o modelo em três ciclos. Eles correspondem a três níveis distintos do novo trabalho de projectos interdisciplinares. Primeiro, o de direcção. Exige liderança, grande sentido da inovação, promoção da colaboração e, consequentemente, ampla formação científica e técnica. É o nível do doutoramento e do mestrado. Segundo, o da participação criativa na concepção. Maior domínio especializado, mas em banda larga que permita o dialogo com a equipa, capacidade de interacção. É o nível da nova licenciatura. Mas, concebido o iPod, é preciso que alguém o fabrique bem, com soldaduras impecáveis e excelente desenho de circuitos impressos, com grande “know how”. É o nível descurado no processo de Bolonha, do ensino terciário pré-grau, dos nossos invisíveis CET. Já alguém estudou bem, entre nós, a experiência dos “community colleges” e dos “colleges for further education”?

Até agora, tudo parece indicar que sou devedor de Bolonha, embora de uma Bolonha re-revisitada. No entanto, fica-me uma provocação: porque é que o sistema americano de educação superior se “está nas tintas” para Bolonha? Porque é que Oxbridge pensa, sobranceiramente, que Bolonha é um pechisbeque do seu próprio sistema?

28.10.2009