Bolonha e a educação superior privada

João Vasconcelos Costa 

Talvez seja falta de informação, mas não vejo grande discussão de Bolonha nas universidades privadas. A minha já tomou medidas para uma reflexão interna e daí este contributo individual. Mas todas deviam pensar bem, assim como a APESP, porque vai afectá-las muito mais intensamente do que as públicas. O panorama para os próximos anos, com a retracção da procura e a maior facilidade de matrícula nas universidades públicas, já era ameaçador para as privadas. Tenho a impressão de que iríamos assistir a uma considerável reorganização, com a consolidação das melhores mas também com extinções e fusões. Bolonha vem perturbar mais ainda esta perspectiva.

Perante Bolonha, as universidades privadas portuguesas estão em situação difícil. Vão ter que pensar por si próprias, sem ajuda, porque falta o apoio de reflexão e documentação internacional. Isto traduz a nossa situação particular, com um peso muito considerável da educação superior privada, o que não acontece na generalidade dos países europeus signatários de Bolonha. Por outro lado, dependem de uma futura legislação que está a ser estudada (vejam-se os trabalhos das comissões por área) com praticamente nulo envolvimento das privadas e sem consideração pela sua situação específica.

No velho conflito essencialmente preconceituoso entre públicas e privadas, tento manter, como creio que se vê em muitos dos meus escritos, uma posição objectiva e desapaixonada. Não sou profissional nem de umas nem de outras. Não penso que tudo é uma maravilha na universidade pública nem que todas as privadas merecem o título de universidade. Não as conheço bem, nem sequer a minha, por onde só passo episodicamente, muito grato pela oportunidade que me deram de, na reforma, poder dedicar algumas horas a uma minha paixão, o ensino. Creio, no entanto, que, com isto, tenho uma perspectiva global e objectiva de todo o sistema de educação superior, que me permite que este artigo, embora pedido pelo reitor da minha universidade, seja totalmente independente.

Antes de entrar na discussão mais aprofundada do problema, talvez valha a pena alguma informação básica, principalmente para os muitos professores convidados do ensino superior privado, provavelmente menos familiarizados com esta questão hoje central.

As três Bolonhas

Bolonha comporta três coisas distintas, embora intimamente imbricadas. Convém distingui-las mas compreender a dialéctica das suas relações: a declaração, o processo e o paradigma.

A declaração de Bolonha

Da declaração, tão bem conhecida por quase todos os universitários, não há muito mais a dizer do que algumas notas históricas interessantes. Muitos esquecem a sua génese, quase que um “pecado original”. Em 1998, reuniram-se na Sorbonne os ministros da educação da França, do Reino Unido, da Alemanha e da Itália. Todos eles tinham preocupações politicas menos nobres que dificilmente conseguiriam fazer vingar nas suas opiniões públicas sem apoio mútuo. Essencialmente, era o que hoje conhecemos como a “agenda oculta” de Bolonha. Por um lado, o encurtamento das formações universitárias, com consequente economia de gastos públicos. Por outro, o lançamento mais precoce dos jovens no mercado do trabalho, como contribuintes para sistemas de segurança social em pré-falência. O sistema de graus inglês, essencialmente o hoje bem conhecido 3+2 (“bachelor”+”master”, em anos) era uma boa solução, em comparação com as tradicionais formações longas europeias, de 5 anos de ciclo único.

Por razões politicas nacionalistas, esta iniciativa foi mal vista pelos estados ditos pequenos da UE. Os quatro grandes emendaram a mão e promoveram, em 1999, a reunião de Bolonha, alargada a muitos estados não comunitários. A declaração final comporta, essencialmente, quatro princípios, abrangidos pela fórmula genérica de um “espaço europeu do ensino superior”:

  • Um esquema de graus em dois níveis, com um primeiro grau de duração de 3-4 anos e relevante para o mercado de trabalho e um segundo grau de especialização, mas não ultrapassando a duração total dos estudos dos dois graus os 5 anos;
  • A promoção da mobilidade de estudantes e professores;
  • Para isto, a adopção de um sistema de créditos de transferência e reconhecimento de estudos já em uso europeu, o ECTS;
  • A criação de mecanismos aceites internacionalmente de avaliação de qualidade e de acreditação mútua.

Uma das preocupações expressas é a da competição com os EUA. Mas, a meu ver, não se estudou convenientemente o sistema americano, adoptando-se como competitivo um “modelo” inglês que, afinal, só resulta em pleno, em termos de competitividade mundial, nas duas grandes universidades de Oxford e Cambridge. O seu esquema de 3+2 não tem correspondência nos EUA, onde a generalidade das universidades adopta um esquema mais longo, de 4+2. Mas só isto não é comparável, porque o sistema americano inclui um ensino universitário intermédio, o dos “colleges”, que forma uma enorme maioria de estudantes em cursos de dois anos de pendor profissional muito diversificado.

O processo de Bolonha

De uma simples declaração politica, evoluiu-se para um processo muito rico e complexo que tem conduzido a reformas acentuadas em muitos países europeus, algumas quase radicais. Entretanto, o debate tem sido muito intenso, com resultado em reflexão e documentação muito rica. Têm-se realizado numerosos simpósios internacionais sobre os vários aspectos de Bolonha – a empregabilidade, a orientação do primeiro grau, o ensino académico e vocacional, os ECTS, a avaliação, etc. Dois projectos internacionais, a “Joint Quality Initiative” e o “Tuning Project” têm feito um trabalho considerável no estudo dos novos perfis formativos e o “European Network for Quality Assurance” (ENQA) desde logo começou a debater um novo sistema europeu de avaliação e acreditação. Muita desta documentação pode ser obtida, directa ou indirectamente, nas páginas de Internet do autor.

Entretanto, a nível oficial, realizaram-se mais duas reuniões inter-governamentais, em Praga em 2001 e em Berlim em 2003, que, para além da adesão de muitos mais países (inicialmente 19, hoje 41), acrescentaram aspectos novos ao processo. Julgo que o mais significativo foi a da maior variabilidade do 1º grau, que passou a ter tanto uma finalidade académica como o objectivo do emprego, podendo mesmo ser considerado apenas um passo para prosseguimento de estudos. Outra evolução significativa diz respeito ao ECTS que, de simples instrumento de medida de aprendizagens para facilitação da mobilidade, passou a sistema organizativo dos estudos, em termos ditos acumulativos, tendendo cada vez mais a ser o método básico para a elaboração dos próprios programas curriculares. Introduziu-se também, como objectivo de Bolonha, a aprendizagem ao longo da vida e concretizaram-se mais os objectivos e critérios da avaliação.

Um dos factores de sucesso do processo de Bolonha foi ter-se sabido articular eficazmente e em bom espírito de colaboração os estudos oficiais e a reflexão e propostas académicas, quer das universidades quer das associações de estudantes. Só para dar um exemplo, muito do que resultou, como avanços no processo, das reuniões oficiais de Praga e Berlim foi fortemente influenciado por duas reuniões prévias limitadas às instituições de educação superior, as chamadas convenções de Salamanca e de Graz. É pena que o outro componente indispensável deste debate, o dos empregadores, ainda não esteja suficientemente envolvido, com riscos de tão importante reforma educativa se vir a defrontar com a falta de receptividade do mercado do trabalho.

O paradigma de Bolonha

É certamente o aspecto mais significativo de todo este processo. Até há pouco tempo, via-se a discussão de Bolonha, entre nós, centrada no esquema de graus, com reduzida compreensão do significado e alcances muito mais profundos de Bolonha. Creio que, felizmente, a situação está a mudar visivelmente.

Comecemos por uma pergunta elementar mas raramente formulada: como é que um declaração vista inicialmente com algum cepticismo e mesmo desconfiança deu origem a um processo com tal dinâmica?

Julgo que foi principalmente uma questão de oportunidade, uma daquelas situações em que todo um mecanismo está pronto mas necessita de um motor de arranque no momento certo. Com efeito, durante principalmente a década de noventa, foram-se acumulando grandes desafios o ensino superior, alguns de ordem prática (redução da procura, dificuldades de financiamento, ineficácia da governação, etc.), outros, muito mais importantes, em virtude de grandes modificações sociais e da crescente desadequação das formações às novas necessidades do trabalho. A sociedade do conhecimento e a globalização estavam a bater à porta da universidade mas esta estava surda.

Como escrevi recentemente (“Bolonha: uma reforma do esquema de graus ou um novo paradigma?”):

“A organização do trabalho mudou muito. Antes, imperava a linha de produção, com uma duração tecnológica relativamente longa e com o pessoal superior colocado hierarquicamente em posições temporalmente fixas. O que se aprendia na universidade era importante para a colocação inicial e as suas funções e a prática rapidamente corrigia as insuficiências. Depois, era uma questão de actualização tecnológica. A situação mudou radicalmente. Por um lado, a competitividade na sociedade do conhecimento é baseada essencialmente na inovação e na incorporação cada vez mais directa do conhecimento científico. Por outro lado, o desenvolvimento de novos produtos passou a ser transversal, por projectos ad hoc, reunindo interdisciplinarmente quadros de diversos departamentos verticais da empresa.

Disto decorre o que chamo as “novas formações”. A especialização já vale pouco. O que conta é a cultura científica sólida que permita a compreensão dos problemas do projecto, as abordagens possíveis e a potencialização das relações cooperativas e do diálogo entre os outros membros do projecto, porventura com formações mais especializadas. Ao mesmo tempo, a formação universitária tem hoje que criar nos líderes competências: iniciativa, gosto pela inovação, capacidade de continuar aprendendo, relações sociais de liderança e de cooperação, etc.”

A grande virtude da declaração de Bolonha foi a introdução de uma rotura – a nova estrutura de graus – em si própria aparentemente menor, mas que “obrigou” os países e as universidades a considerar essa mudança, inevitavelmente, à luz de todas esses desafios. Daí o sucesso de Bolonha e a sua quase geral aceitação, como transformação muito mais profunda do que inicialmente previsto e adequada à resposta aos novos desafios. É hoje um erro de base pensar o processo de Bolonha apenas em termos do novo esquema de graus. Bolonha não é o encurtamento das formações, é a transformação profunda das próprias formações.

Não cabe no espaço deste artigo, que tem outros objectivos, discutir em profundidade o paradigma de Bolonha, mas não se pode deixar de enunciar os seus principais aspectos, mesmo que como simples tópicos:

  • Formações diversificadas e facilmente interpenetráveis, permitindo múltiplas vias e formas eficazes de educação recorrente.
  • Coexistência de formações académicas e vocacionais, com peso diferente do componente científico mas sempre uma formação científica ampla e sólida.
  • Interdisciplinaridade e banda larga.
  • Ênfase na aquisição de competências, mais do que na informação perecível.
  • Ênfase na aprendizagem orientada, com desenvolvimento da capacidade essencial de “aprender a aprender”.
  • Importância da formação cultural e cívica.
  • Desvio significativo do papel tradicional do professor no ensino formal para o de facilitador da aprendizagem e tutor.

As universidades privadas no processo de Bolonha

A nova oferta de cursos e a regulação

Estamos com atraso em relação à generalidade dos países e às metas temporais fixadas para Bolonha. As consequências deste atraso são mais graves para as instituições privadas do que para as públicas. Fixado o quadro legal e a duração dos graus em cada área disciplinar, todas as universidades e politécnicos vão ter que redefinir de raiz os seus cursos, tão rapidamente quanto puderem vencer a sua proverbial inércia. Mas, feito isto, as públicas têm a vantagem de uma aprovação rápida, o simples registo, enquanto que as privadas, se não for mudada a legislação, passarão por um período demorado de aprovação de todos os seus cursos. Imagina-se quanto tempo isto vai levar. As privadas correm o risco de chegar tarde a um mercado em que a procura já esteja a ser fortemente influenciada pela novidade de Bolonha. E em que as públicas já oferecerão cursos de três anos com o mesmo valor dos de quatro ou cinco das privadas. Em termos de mercado, isto parece-me muito preocupante para as universidades privadas.

Acresce que, como se deduz facilmente do que apelidei de paradigma de Bolonha, a transformação dos cursos, para não ser só uma operação de cosmética com fracasso certo a prazo, exige uma nova cultura académica, a construir progressivamente mas obrigatoriamente lançada desde já (devia ter sido desde há anos) e eu não vejo essa acção a nível significativo na maioria das universidades privadas.

Os mais “sensatos” objectar-me-ão: vale a pena começar a rever concepções, objectivos e currículos dos cursos quando não se sabe que duração terão? Penso que sim. Já são conhecidos os pareceres das comissões disciplinares e não acredito que a decisão governamental se vá afastar significativamente dessas conclusões. Se eu fosse responsável por uma universidade privada, partia imediatamente dessa base, correndo o risco de, num caso ou noutro, o trabalho ser inútil. Mas, em geral, estaria pronto para submeter ao ministério todos os novos planos de cursos no dia seguinte à publicação do decreto. Só assim combateria o “handicap” que referi.

Pelas mesmas razões, creio que as privadas não podem seguir, neste caso, os seus processos de decisão académica tradicional. Não é que esta mudança dispense a participação consciente e responsável da comunidade, mas há que conjugá-la com a eficácia e a celeridade. Neste sentido, as privadas até têm uma vantagem organizacional, a do poder das entidades instituidoras. A melhor solução parece-me ser a da constituição de grupos especiais para Bolonha, constituídos pelos elementos melhor informados da universidade e com poderes transversais em relação aos departamentos ou estruturas similares.

Estou a falar de realidades, mas não deixo de anotar, brevemente, que esta não é a situação que defendo. O nosso sistema ultraliberal de criação de cursos pelas nossas universidades públicas é um absurdo e resulta numa oferta disparatada. Tenho sempre defendido um sistema de acreditação por uma entidade independente. Neste caso, não se justificaria qualquer distinção entre as públicas e privadas, estas também sujeitas a acreditação institucional.

A questão financeira

Este é certamente o busílis de Bolonha em relação às universidades privadas. Também o vai ser em relação às públicas, mas estas têm maior poder de combate politico. A questão é de aritmética elementar: cursos mais curtos, menos alunos. Para as universidades públicas, menor financiamento porque a fórmula é essencialmente por capitação; para as privadas, menor financiamento, porque menos alunos, menor receita de propinas.

Isto é duplamente preocupante, porque o novo paradigma de Bolonha é caro e vai acarretar exigências de avaliação de qualidade com impacto financeiro. Falarei a seguir da despesa de pessoal, depois de abordar, por de leve, outros aspectos. O primeiro é o das despesas de capital. Bolonha levada a sério e de forma digna de merecer usá-la com factor de competitividade, implica novos investimentos. A ênfase na auto-aprendizagem obriga muitas universidades a triplicar o seu acervo de biblioteca, a pagar muito mais tráfego de Internet, a montar um bom número de salas de reunião, a comprar software de “e-learning”, etc. Também quanto aos custos fixos, se não é previsível que haja aumento, também não haverá diminuição com o decréscimo do número de alunos. Qualquer bom gestor universitário sabe que as despesas de limpeza, de segurança, de outros “outsourcings”, de electricidade, de telefones, de correio, etc., não dependem significativamente do número de alunos, que não são os principais utentes. E são consideráveis. Não sei o que representam nas universidades privadas, mas quando fui director de um instituto, tinha que contar com pelo menos 50% dos custos de funcionamento.

Este problema vai ter, provavelmente, consequências mais gravosas é em relação às despesas de pessoal, tanto nas públicas como nas privadas, mas de forma diferente. Nas públicas, não se vê que haja despedimentos. Mas, se não forem revistos os rácios, o financiamento das despesas de pessoal ficará muito deturpado e não me surpreenderá que a percentagem de despesas de pessoal passe dos desejados 80% do orçamento total para os 95 ou mesmo uns impossíveis 100%.

As privadas vão certamente para os despedimentos. Apesar da boa protecção do emprego que temos, em geral, na actividade económica privada, as universidades adoptaram toda uma variedade de sistemas contratuais que tornam o trabalho precário. Há uns tempos, ouvi um responsável universitário privado afirmar que a sua universidade garantiria, após Bolonha, a mesma percentagem de custos de pessoal que tem actualmente em cada curso, em relação às receitas. Afirmação muito hábil, de bom politico, mas que significa, de facto, o que digo: mesma percentagem, mas menos receitas, logo, menor despesa de pessoal em valores absolutos.

Isto é muito preocupante, porque, como discutiremos adiante, Bolonha é essencialmente o reforço do capital humano das instituições.

Aumento de propinas?

Esta poderá ser uma válvula de escape das universidades privadas para combater a ameaça económica. Actualmente, a generalidade do ensino superior privado não cobra propinas exageradas, quando comparadas com as de universidades privadas estrangeiras – nem falo nos EUA, apenas de Espanha e da América latina. Em alguns casos, até são inferiores às de colégios privados de ensino básico ou secundário. 

Como é de esperar, as propinas na educação superior pública vão aumentar e, significativamente, para quem quiser passar do 1º para o segundo ciclo. Isto permitirá às privadas uma certa margem de aumento, mas duvido da sua eficácia real, porque a procura das privadas não me parece que tenha comparação, por exemplo, com a situação americana. Aí, quando nasce a criança, abre-se-lhe uma conta de poupança-educação com a perspectiva de Harvard ou outra “top”, um investimento de que o estudante tem um enorme retorno privado durante toda a vida. Em Portugal, mau grado a qualidade de algumas universidades privadas, elas são em boa parte é a solução de recurso para quem não entrou no ensino público. 

Raramente se pensa no significado social deste facto. Eu próprio só me apercebi dele depois de muitas conversas com os meus alunos. As privadas vivem hoje fundamentalmente de cursos a que as públicas dão oferta reduzida. Ficam com alunos menos qualificados e isto tem muito a ver com a situação económico-social das famílias. Menor nível cultural, menor disponibilidade para a educação dos filhos, menor capacidade para os complementos de ensino (as tradicionais explicações). Numa privada, já ouvi coros de protesto quando recomendo um livro mais caro, porque os alunos não têm posses. A minha experiência diária é de ver uma pequena minoria irritante de meninos-bem, descapotáveis e ouros em profusão, tiques de “tia” antecipada, que não vão às aulas e se flanam pelo bar em conversas parvas. E de uma grande maioria que come mal na cantina, que não veste roupa de marca e que são conscientes do que ser estudante custa aos seus pais.

Neste sentido, não creio que um considerável aumento de propinas seja uma solução viável para as consequências económicas de Bolonha. Já será diferente a situação do 2º grau, o mestrado, porque, neste caso, é provável que se atenue a diferença de custos, para as famílias, entre o público e o privado. Mas há aqui um grande risco, porque desde há bastante tempo as universidades privadas se têm habituado a ver no mestrado uma mina financeira, e poderão ter tendência a manterem-se nas velhas concepções de mestrado. O mestrado de Bolonha, na tradição do “master” americano e inglês vai ser muito diferente e poucos professores saberão o que isso é. Pode ser uma galinha de ovos de ouro, mas não a actual, que já só põe ovos de pechisbeque.

Cursos de especialização profissional

O processo de Bolonha não tem dado grande atenção ao ensino pré-grau, o ensino estritamente profissionalizante, de três a quatro semestres, que a OCDE chama de ensino terciário não universitário. Muitos dos nossos cursos de politécnico, a meu ver, são um desperdício de tempo e dinheiro e deviam ser cursos pré-grau. Como disse, são estes cursos que tira a esmagadora maioria dos estudantes terciários nos EUA, nos seus “Community colleges”. Também é a actual experiência inglesa. A Sra. Thatcher teve a infeliz ideia de transformar os politécnicos em universidades, perdendo-se com isso essa tradicional formação profissional superior curta, muito aceite pelo mercado de trabalho. O Reino Unido emendou parcialmente o erro e criou novamente os “Colleges for further education”, que concedem os chamados “foundation degrees”.

Este tipo de ensino, que julgo que venha a popularizar-se entre nós porque apetecido pelo mercado de trabalho, pode ser uma janela de oportunidade para o ensino privado: não se vê que o subsistema público esteja, por ora, muito interessado; não exige uma actividade complementar significativa de investigação; não exige grande profissionalização dos docentes; e, pela duração curta, pesa menos às famílias, em termos de custos.

No entanto, há que considerar um aspecto potencialmente negativo. Este ensino exige uma cultura própria, de grande sentido prático e sem predomínio das tradições académicas. Está, portanto, mais adequado aos estabelecimentos de ensino politécnico. Receio que uma universidade privada que apareça com um grande peso de cursos de especialização tecnológica fique com uma imagem pública desvalorizada.

Profissionalização

Este é, para mim, o grande desafio que o processo de Bolonha coloca às universidades privadas. Algumas têm uma percentagem razoável de professores profissionais a tempo inteiro, mas, em geral, predominam os professores contratados à hora, praticamente só para dar aulas. Não há paradigma de Bolonha que possa ser concretizado nestas condições. Basta ver o que disse acima, sumariamente: ensino muito ligado à investigação, tutoria, aprendizagem orientada com reuniões frequentes e multiplicadas com pequenos grupos de alunos, grande disponibilidade para o aconselhamento e para a avaliação permanente do sucesso individual da aprendizagem, etc.

Sem isto, a aplicação de Bolonha é um arremedo caricatural. Mas duvido de que o sector privado tenha condições financeiras para uma rápida criação de um corpo docente profissionalizado. E nem sequer há condições humanas: hoje há numerosos jovens investigadores doutorados sem emprego ou em situação precária, que muito poderiam contribuir para esta nova necessidade, mas falta o componente de senioridade, indispensável. Não vejo que as universidades privadas, em geral, tenham competitividade para atrair professores seniores de mérito das universidades públicas: não lhes podem pagar melhor, não lhes dão a segurança da carreira docente do Estado e, principalmente, raramente lhes poderão propiciar as mesmas condições de trabalho, principalmente no que toca à investigação.

Conclusão

Os problemas que referi são um alerta e um desafio, mas não devem ser confundidos com uma ideia generalizada de que Bolonha será, inevitavelmente, uma agressão letal às universidades e politécnicos privados. Muito pelo contrário e há que distinguir situações. Creio que, para muitas, será um factor importante de agravamento da sua situação já critica. Pelo contrário, para uma ou duas, será um desafio à melhoria e à transformação. Sendo professor de uma universidade privada, não vou referir casos particulares, para não se levantarem suspeitas sobre a isenção e objectividade com que quis escrever este artigo. Refiro apenas o que me parecem ser algumas características necessárias de uma tal universidade (ou mais do que uma) que lucrará certamente com Bolonha.

  • Existência de um verdadeiro espírito de missão educativa, um projecto institucional que não se limite a um negócio de ensino.
  • Administração da entidade instituidora com largueza de visão e sentido estratégico.
  • Proporção considerável de professores profissionalizados.
  • Condições aliciantes para o reforço desse corpo docente.
  • Oferta educativa larga e diversificada, das humanidades às ciências e às tecnologias, a permitir a lógica de banda larga e de interdisciplinaridade das novas formações.
  • Investimento nas infra-estruturas científicas, a permitir o concurso, em boas condições, a projectos de investigação.
  • Cultura institucional e académica moderna, com instrumentos práticos para um debate construtor de uma motivação colectiva de mudança.
  • Escolha criteriosa dos principais responsáveis “políticos” pela estratégia e pelo processo de mudança, sem sujeição ao aparelho académico do quotidiano.
  • Bom campus, boas infra-estruturas, actividades extra-escolares, tudo o que faz um estudante sentir-se num meio que fomenta a sua formação cultural e social.
  • Bom sentido de “marketing” e dos mecanismos de mercado peculiares do ensino superior (que não é simples negócio de supermercado!).

A meu ver, é importante que cada administrador ou reitor olhe para estas linhas com cuidado. Se a sua universidade é assim, não há que ter receios de Bolonha, antes há que olhar para este processo como um desafio estimulante e a ganhar.

28.10.2019