João Vasconcelos Costa
Os aspetos a considerar no que respeita à preparação de reagentes, equipamento, requisitos de treino de pessoal, biossegurança e procedimentos técnicos, de forma a permitir a avaliação rigorosa das possibilidades de contribuição de cada instituto ou laboratório, diferem muito conforme o tipo e objetivo dos testes.
Embora seja de conhecimento básico, relembro os diferentes tipos de teste e os seus objetivos:
- Para diagnóstico da infeção:
- Testes moleculares de amplificação de DNA (RT-PCR ou PCR em tempo real) para deteção do RNA viral;
- Testes imunológicos com anticorpos, para deteção de antigénios virais (testes rápidos ou de point-of-care, POC);
- Para investigação do estado imune da população:
Testes usando antigénios virais para estudo serológico.
I. RT-PCR e PCR em tempo real
O teste pretende identificar a presença de RNA viral nas amostras de exsudados mediante a sua cópia em cDNA (DNA complementar) por meio da transcritas reversa e amplificação deste DNA por PCR, quer pela técnica convencional ou, como é agora regra neste caso, pela técnica de PCR em tempo real, em que o cDNA amplificado é detetado por uma sonda interna marcada com um fluorocromo.
Outra técnica possível, ainda não em uso para o SARS-CoV-2 mas em que se baseia o diagnóstico molecular POCT da Abbott (ID NOW COVID-19) já licenciado nos EUA, é a amplificação isotérmica, que utiliza a polimerase do bacteriófago phi29. Dispensa a desnaturação do DNA por essa polimerase ter atividade de deslocação de cadeia (“strand displacement”) e ser ativa sobre cadeias simples de DNA. Não é fácil ser desenvolvida por nenhum laboratório português.
1. Disponibilidade e preparação de reagentes para PCR em tempo real.
A quantidade de kits que podem ser produzidos em Portugal é diminuta em relação à necessidade crescente de análise, com a expansão da epidemia. Mas também se pode dizer, pelo contrário, que, nessa situação de grande carência, toda a ajuda é importante, por menor que seja.
Tem sido apontada como uma vantagem da preparação de kits em Portugal a independência daí resultante em relação aos fornecedores estrangeiros de reagentes. A questão é mais complicada e desdobra-se em duas: os reagentes finais e os reagentes primários. Em Portugal, qualquer bom laboratório de biologia molecular bem equipado pode sintetizar os oligonucleótidos a usar como “primers” e como sonda e marcar com o fluorocromo (FAM, por exemplo) o extremo 5’ aminado da sonda.
Mas não se afigura possível produzir em Portugal os dois enzimas fundamentais do método, a transcritase reversa e a polimerase Taq. Em relação a estes e aos nucleótidos para a síntese de “primers” e sonda, bem como ao fluorocromo, ficamos sempre dependentes do exterior, mas nada indica que venha a haver falta destes reagentes.
Mais duvidosa é a independência em relação a outro reagente fundamental, a mistura de extração do RNA viral (também dita de inativação porque, na mesma operação se está também a inativar o vírus). Na prática é impossível, a curto prazo, prepará-la em Portugal, sendo confidencial de empresa a composição dos vários produtos comerciais que estão a ser usados. Alguns incluem componentes de alta tecnologia, como membranas para ligação de RNA, microesferas de vidro ou nanopartículas. Os kits usados em vários países e preparados por institutos nacionais da área da saúde (CDC dos EUA, Instituto Pasteur, Charité de Berlim, Universidade de Hong Kong, por exemplo) usam todos misturas de extração comerciais, tais como a QIAamp da Qiagen, a mistura do kit NxTAG Luminex, a mistura de extração do MagNA da Roche, etc. Há notícias recentes de estes reagentes poderem acusar falta.
Da mesma forma, não é viável, sem recurso à compra, fornecer a hospitais ou laboratórios de análises as misturas de extração/inativação para eles complementarem kits produzidos em Portugal que porventura não incluam a mistura de extração (o que, evidentemente, não se afigura possível).
2. Biossegurança
Não há restrições de biossegurança na preparação dos kits, exceto na fase prévia do estudo da sua sensibilidade, especificidade e reproducibilidade, para validação, em que é necessário testar amostras positivas. A execução dos testes só levanta problemas na fase de extração com inativação do vírus (no mesmo passo do método), antes da amplificação. É consensual que exige segurança de tipo BSL-2, com cuidados pessoais de manipulação geradoras de aerossóis. Como equipamento de proteção, é necessário o trabalho com câmara de fluxo laminar de tipo BH-II. Não parece aconselhável elevar o nível de biossegurança, por isto poder suscitar dúvidas injustificadas sobre os procedimentos de todos os que, usando BSL-2 para os milhares de testes realizados diariamente em Portugal, estão a cumprir as normas recomendadas.
3. Equipamento
Sintetizador de oligonucleótidos; aparelhos de PCR em tempo real.
II. Testes de deteção de antigénios virais
O seu objetivo é principalmente permitir um diagnóstico mais rápido, “point-of-care” e com equipamento barato. Contra estas vantagens, joga a provável menor sensibilidade e o facto de ser mais problemática a deteção de antigénio em amostras complexas e com muito “ruido”, como são as de muco nasal ou faríngeo. A generalidade dos testes rápidos que estão a ser preparados aplica-se a amostras de sangue. Isto implica que haja uma fase de virémia. É provável que haja, dado que o vírus causa lesões à distância da porta de entrada, nomeadamente no miocárdio e no rim, mas não está ainda bem estudada a cronologia da virémia.
1. Disponibilidade e preparação de reagentes.
Os reagentes principais são os anticorpos anti-SARS-CoV-2, conjugados segundo métodos de rotina que não levantam problemas. Os testes que estão a ser preparados, no estrangeiro, são “propriedade” e não se conhece o tipo e especificidade dos anticorpos usados. Não há condições mínimas para a sua produção a curto prazo em Portugal e sem um investimento muito avultado de investigação.
É necessário determinar qual ou quais os antigénios em maior quantidade ou mais facilmente detetáveis no material a analisar. A análise do sangue implica a existência de partícula virais ou de antigénios circulantes. É necessário saber se há e qual ou quais, de entre as 4 proteínas estruturais do vírus.
Em seguida, há que garantir a reproducibilidade do teste e, logo, a constância de características dos anticorpos utilizados, para o que tem de se produzir anticorpos monoclonais. É tecnicamente possível com os nossos recursos (o meu laboratório fazia-o de rotina há 30 anos), mas implica antes a cultura do vírus, a sua purificação, a produção dos anticorpos e a sua caracterização e análise da eficácia, sensibilidade, especificidade e reproducibilidade. Nas nossas condições, é um trabalho de muitos meses, com uma equipa numerosa e com grande financiamento.
Para produzir os anticorpos monoclonais é necessário começar por se dispor de antigénios, como é óbvio. Para este objetivo, e ao contrário do que se discutirá na secção seguinte, não é necessário dispor-se de antigénios purificados, bastando preparações de vírus purificado.
Para obtenção de vírus, pode-se cultivá-lo em culturas celulares, estando-se a fazê-lo em linha celular Vero. A concentração do vírus pode ser feita pior precipitação, separação por membranas ou cromatografia e a purificação do vírus pode ser obtida por diferentes técnicas, já bem conhecidas para outros coronavírus, e que, em geral, assentam na separação por ultracentrifugação em gradientes de concentração de diversas soluções (sacarose, tartarato, Percoll ou outras).
2. Biossegurança
O trabalho com culturas celulares infetadas e com vírus concentrado ou purificado exige norma BSL-3, com utilização de instalações laboratoriais e equipamentos de nível P-3, bem como de pessoal muito bem treinado para trabalho nestas condições. O restante equipamento laboratorial é o de rotina num laboratório de bioquímica viral, desde que contido no laboratório P-3 quando necessário.
3. Equipamento e experiência
É necessária experiência em virologia e em imunologia laboratorial. O equipamento é o de um laboratório padrão de virologia, culturas celulares e imunologia.
III. Testes serológicos para deteção de anticorpos.
Não têm utilidade diagnóstica, sendo necessários numa fase avançada do estudo epidemiológico para determinação do grau e extensão da imunidade contra o vírus na população, nomeadamente para avaliação da imunidade de grupo.
1. Disponibilidade e preparação de reagentes.
Põe-se o problema inverso do caso anterior, o da produção de antigénios. Isto, evidentemente, se se pretender um teste nacional, sem recurso à compra de kits fabricados no estrangeiro.
Ao contrário dos antigénios para a preparação de anticorpos para testes rápidos ou POCT, os antigénios para testes serológicos devem ser específicos ou purificados, o que implica muito maiores condicionalismos técnicos e domínio de metodologias muito mais avançadas.
É certo que se pode utilizar como antimónio um simples lisado de células em cultura infetadas com ovírus, mas há problemas prováveis de especificidade e de reproducibilidade. Também é necessário garantir a total intimação do vírus.
Teoricamente, poderia utilizar-se como antigénio vírus purificado. No entanto, há semore o risco, mesmo que diminuto, de infeciosidade residual. Os antigénios podem ser preparados por a) purificação de antigénios; b) síntese de péptidos com antigenicidade; c) clonagem em vetores de expressão.
a) A purificação dos antigénios é a fase seguinte à purificação do vírus, após a sua disfunção por processos físicos ou químicos, bem conhecidos mas ainda não experimentados neste caso concreto. A principal limitação é a da grande quantidade de material viral purificado para a preparação de testes em larga escala.
b) A síntese de péptidos sintéticos, desprovidos de infeciosidade, é um processo cientificamente muito difícil. Por análise computacional de sequências proteicas derivadas da sequência genómica, pode-se ter uma ideia probabilística da antigenicidade de cada região da proteína, pelo chamado índice de antigenicidade, mas a realidade pode ser muito diferente, principalmente por fatores conformacionais da proteína e interação de péptidos separados espacialmente na estrutura primária. É necessário um trabalho moroso e exaustivo de síntese de muitos péptidos possíveis e análise da antigenicidade, in vitro e in vivo, de cada péptido.
c) A produção de antigénios por engenharia genética de DNA recombinante, que é o processo seguido pela generalidade dos fabricantes dos testes serológicos já comercializados, exige a utilização de sistemas de clonagem de expressão. A transcrição e expressão de genes eucarióticos ou de vírus de eucariotas não é possível nos sistemas vulgares de engenharia genética, em bactérias, por estas não reconhecerem os promotores eucarióticos nem as suas sequências reguladoras. Os sistemas de clonagem de expressão são variados, mais complexos do que a engenharia genética convencional e requerem experiência específica, bem como o domínio dos processos pós-produção (extração e purificação do produto da expressão genética).
2. Condições de biossegurança; equipamento
Como no caso anterior. A mais, sintetizador de péptidos.
3. Experiência
Requere-se uma equipa pluridisciplinar com comprovada competência em virologia, biologia molecular, bioquímica de proteínas, análise estrutural computorizada, imunologia fundamental laboratorial.