A Universidade do Atlântico

João Vasconcelos Costa 

Não pensem os leitores que isto é outra “brincadeira a sério”, como foi a Universidade de Lisboa Oriental. Infelizmente, é mesmo a sério e sem razões para brincar.

Ao que sei, reina alguma agitação na Universidade dos Açores (UAc) por causa de uma estranha ideia, cuja autoria é incerta: a criação de uma Universidade do Atlântico por fusão da UAc e da U. Madeira (UMa). Disseram-me ter sido dito pelo ministro, mas este já o desmentiu. A notícia ainda não tinha chegado à Madeira mas, depois de a referir num Apontamento, já recebi manifestações de preocupação. Deve, portanto, ser coisa sem fundamento, mas serve-me pra reflectir sobre a solução hoje tão falada das fusões institucionais. Mesmo sem fundamento, sirvo-me do exemplo hipotético dessa falada fusão insular. 

Décadas de irresponsabilidade conduziram a um sistema universitário desordenado, o que se agrava pela coexistência de um sector privado regido apenas pelo mercado. É certo que muita coisa na evolução da educação superior não era previsível com segurança; a evolução demográfica, a rarefacção populacional do interior, alterações no mercado de trabalho, factores sociais na procura de cursos, etc. Mas a verdade é que nada disto foi estudado seriamente ou conduziu a decisões políticas. Faltou uma entidade de regulação com autoridade consensual, o governo desresponsabilizou-se, a autonomia adormeceu as universidades.

A situação actual, principalmente nas universidades interiores e insulares, é bem conhecida: redução da procura, cursos desertos, diminuição do financiamento (per capita), excesso relativo de professores não mobilizáveis.

Com isto, vêm ao de cima algumas “recomendações”: extinção de instituições, fusões, novos projectos, maior inserção social. Adiante irei às fusões, tema deste artigo. Agora, brevemente, a minha manifestação de cepticismo em relação às outras propostas. Extinção? Alguém acredita nisto? Mesmo o PRACE só está a ser aceite porque sempre envolvido na afirmação de que não haverá despedimentos. E as reacções autárquicas e de interesses regionais em relação à extinção da sua universidade? Novos projectos? Por exemplo, na educação ao longo da vida. Muito bem, mas é idealismo. Já há vários anos que dediquei todo um capítulo do “A universidade no seu labirinto” a este assunto, chamando a atenção para as grandes dificuldades institucionais, financeiras, técnicas, de comunicações de banda larga, até de cultura universitária. Não vou repetir. Inserção social? Só a vi bem feita pelas boas universidades que não estão em riscos. Quanto às outras, pergunto-me se esse défice é a causa (teoricamente remediável) da sua situação débil ou se é a consequência.

Passo então às fusões. Creio que as devemos ver numa perspectiva empresarial, de OPA. Não sendo homem de negócios, arrisco-me a dizer que só têm vantagens nas seguintes situações básicas: 1. acréscimo da posição no mercado; 2. conquista de novas posições; 3. optimização de recursos e economias de escala; 4. contracção das despesas de pessoal. É nesta perspectiva que me proponho discutir a tal fusão das duas universidades insulares.

1. Acréscimo da posição no mercado

Ambas as universidades, UAc e UMA,  têm reduzida procura em muitos cursos, que poderão ser encerrados – alguns já o foram – de acordo com o mínimo de 10 alunos inscritos no 1º ano. Na UAc, são muitos, creio que alguns até já extintos: 

  • Engenharia do Ambiente
  • Biotecnologia Agrícola
  • Agricultura Ecológica
  • Ciências da Nutrição (Preparatórios)
  • Tecnologia Agro-Alimentar
  • Biologia
  • Engenharia Civil (Preparatórios)
  • Engenharia Mecânica (Preparatórios)
  • Filosofia
  • Física e Química
  • História
  • Ensino Básico – 1.º Ciclo
  • Ciência e Tecnologia da Computação
  • Engenharia e Gestão da Construção
  • Engenharia Informática e de Computadores (Preparatórios)
  • Estatística e Apoio à Decisão
  • Línguas e Literaturas Europeias
  • Línguas Modernas Aplicadas

Na UMA, são menos:

  • Biologia
  • Artes Plásticas
  • Informática (Ensino de)
  • Matemática
  • Psicologia
  • Química

Daqui se conclui que apenas um curso, Biologia, é que poderia beneficiar da fusão. No entanto, isto significa esquecer um factor fundamental. Fosse o curso nos Açores ou na Madeira, os estudantes do outro arquipélago teriam de se deslocar. Com excepção das viagens, uma ou duas vezes por ano, é tão caro para um jovem açoriano viver no Funchal como em Lisboa. Como não é difícil entrar em Biologia em Lisboa, quem é que hesitará?

2. Conquista de novas posições

Não se pode excluir, à partida, é que grupos disciplinares, em cada uma das universidades, possam adquirir, em conjunto, massa critica para fornecimento de novas ofertas educativas. Mais uma vez, na prática, isto não é verdade, mesmo sem considerar o argumento anterior da dificuldade da mobilidade. Não vou expandir-me, porque os leitores têm acesso aos dados. Há uma muito grande sobreposição de áreas de competência científica nas duas universidades. Vejam a lista dos departamentos da UAc e da UMa. Pouco se ganha em complementaridade. Os casos mais manifestos não são significativos na actual situação da procura da educação superior: a UAc vence a UMA na história, na sismologia e vulcanologia, na biologia marinha. Por sua vez, a UMa ultrapassa na matemática, na informática, nas artes e na química. É muito pouco para justificar uma fusão.

3. Optimização de recursos e economias de escala

Aqui é que me defronto mais claramente com a leviandade de toda esta ideia. Sabem o que é a tripolaridade da UAc? Por razões mesquinhas mas inultrapassáveis de bairrismo, a universidade foi distribuída pelas três principais ilhas, sempre rivais, S. Miguel, Terceira e Faial. Não pensem que é ir de Évora a Beja, são muitas milhas de avião e a preços bem altos. Pelas mesmas razões, vice-reitores e pró-reitores também estão descentralizados e viajam semanalmente para a reunião da reitoria. Depois, o senado e o conselho científico, estes envolvendo dezenas de viagens e hospedagens em hotel. Passem agora de três para quatro, incluindo a Madeira, e tendo em conta que a deslocação dos Açores para a Madeira é consideravelmente mais cara do que as viagens inter-ilhas açorianas.

Depois, algumas coisas idiossincráticas e praticamente inevitáveis, em instituições com a sua história e a sua cultura. Por exemplo, a escolha do reitor. Adivinho uma regra de rotatividade, independentemente da competência. Também os vice-reitores, obrigatoriamente paritários. Seria um fartote semanal de viagens entre os dois arquipélagos.

 4. Contracção das despesas de pessoal.

Nunca se confessa, mas é sempre um objectivo da “racionalização” das fusões. Até posso admitir, só como princípio, que a concentração das ofertas educativas poderia significar uma contracção dos quadros, com redução do enorme peso percentual das despesas de pessoal, 90% ou mais. Isto é possível na educação superior? Só há um momento da gestão da carreira docente em que pode haver uma intervenção decisiva na contracção dos quadros: a concessão da nomeação definitiva a um professor auxiliar, findo o seu primeiro contrato de cinco anos. Salvo casos excepcionais, ela é automática, graças à cultura endogâmica. Aliás, ao ECDU só permite a não concessão de nomeação definitiva por razões de mérito académico, não por constrições orçamentais. 

A outra ocasião é a da rescisão do contrato a um assistente que não se doutore. Não me parece significativo. As informações que tenho, tanto dos Açores como da Madeira, vão no sentido de me dizerem que os assistentes que ainda existem estão adiantados nas suas teses de doutoramento e, portanto, vão ser obrigatoriamente promovidos a professores auxiliares.

Então, como reduzir excedentes? Como substituir os incapazes pela nova geração de doutorados e de “postdocs” de qualidade? 

Talvez pudesse a fusão resultar em alguma racionalização dos quadros de funcionários, mas não tenho dados para me pronunciar. De qualquer forma, não acredito que fosse financeiramente significativo.

Concluindo

E que fazer, porque não há dúvida de que as universidades insulares se defrontam com grandes desafios? Ir andando, com umas adequações a Bolonha, à portuguesa? Não sei muito bem o que se passa na UAç, a universidade da minha terra. Pelo que sei e para meu desgosto, não irá longe e não tem um projecto estratégico para os próximos dez ou vinte anos, se calhar só um projecto táctico para os próximos dois, à Bolonha.

A situação da UMa é, para mim, muito mais triste. Um excelente projecto estratégico, virado para o futuro, que motivou a minha colaboração entusiástica e que colocaria a UMa em grande posição competitiva, a destacar-se das dificuldades das universidades periféricas. Lamentavelmente, parece ir ficar esquecido. Peço que reflictam sobre o que tenho escrito sobre a governação das universidades.

28.10.2009