A endogamia, um tema em foco

João Vasconcelos Costa 

A endogamia está em foco. Há uns tempos, João Cravinho escreveu a “boutade” de uma reforma da educação superior limitada a um único decreto com um único artigo, a proibir a contratação como professor auxiliar de qualquer doutorado há menos de dois anos pela universidade em causa. Maria Manuel Mota, em artigo recente do Público, parece ir mais longe quando larga a questão da endogamia a todas as categorias de pessoal docente. Curiosamente, acompanha em certo aspecto o artigo de Cravinho, pois é o único problema que aborda em relação ao défice de qualidade da nossa educação superior. É curto, como tantos outros escritos/casacos sobre a educação superior que me ficam com s mangas curtas. O tema também tem gerado discussão pelo menos num blogue, o “ubiversidade”.

É evidente que considero nefasta a endogamia, mas tenho alguma moderação pragmática em relação a isso. Saber de experiência/reflexão feito, nem sempre compatível com lançar “sound bytes” para a comunicação social. A política não se pode fazer  com princípios. Para além de alguns factores objectivos que discutirei adiante, acho que a endogamia é principalmente uma manifestação da cultura corporativa universitária e não acredito que as culturas mudem por decreto, muito menos por decretos com um único e linear artigo. Depois, parece-me que é muito diferente, como mostra a experiência internacional, o problema da endogamia a nível de ingresso e a nível mais avançado. Tentarei discutir distintamente os dois níveis.

1. A endogamia no ingresso

Creio que há entre nós um grande equívoco, misturando duas situações bem diferentes, embora as tenha de tratar num perspectiva indiscutível, para mim e creio que para quase todos: o ingresso só a nível doutoral. As duas situações são a dos doutorados enquanto assistentes universitários e a dos doutorados bolseiros, sem vínculo institucional.

Creio que os protestos contra a mobilidade obrigatória pós-doutoral vêm fundamentalmente dos assistentes e dos sindicatos que os defendem. Quanto a estes casos, sou taxativo pelo menos num ponto: devia ser imediatamente abolida a disposição legal que os promove automaticamente a professores auxiliares um vez concluído o doutoramento. Na prática, é aos assistentes que se aplicam os argumentos geralmente avançados: reconhecimento da dedicação à universidade, sua desvantagem por terem de acumular trabalho de tese e aulas, idade em que já se assumiram compromissos familiares, de compra de casa, etc. (e quem tem culpa de que se doutorem tão tarde?).

É por isso que esta é a situação mais nefasta. São gente “da casa”, são credores de agradecimento dos professores pelo alívio que propiciaram das suas tarefas docentes, estiveram envolvidos juntos em muitos jogos de poder académico, muito mais. Mas também aprenderam com isso todos os vícios. Realisticamente, aceito que algumas áreas ainda necessitem de assistentes, mas a sua contratação deve ser bem controlada.

Bem diferente é  situação do que vou chamar, simplisticamente, os doutores-bolseiros. Assumem um espírito de estudante e não os choca que, após a sua formação, neste caso levada ao doutoramento, tenham de ir procurar trabalho onde houver, como qualquer outro diplomado. Em geral, são mais jovens, sem os tais problemas familiares. E creio que até os melhores nem querem é poder concorrer à universidade de doutoramento, querem é ir fazer um bom pós-doutoramento no estrangeiro. Claro que isto não é a situação geral, mas já hoje marcante nas ciências e nas engenharias.

Um factor importante a ter em conta é a pequenez da nossa comunidade académica. Uma universidade americana pode adoptar a regra da não contratação dos seus doutorados porque as vantagens compensam a desvantagem de, com isto, perder jovens de qualidade excepcional. O sistema acaba por funcionar principalmente porque, ao contrário da nossa situação, há um aspecto critico associado, a obrigatoriedade do “postdoc”. Nesses dois anos, todos rodam, mas nada impede, bem pelo contrario que, ao fim desses dois ou três nos, o doutor seja contratado como professor auxiliar (por comodidade, uso a nossa nomenclatura) pela universidade em que fez o doutoramento. Tudo isto é diferente da nossa situação: i. as ofertas do mercado de trabalho são muito estreitas; ii. não há o padrão de exigência de um bom “postdoc” para contratação como professor auxiliar (isto sim, já o defendi, é que seria uma medida importante); iii. não parece correcto que, sendo necessário estabelecer rapidamente um sistema de competitividade entre as universidades, elas não possam dispor do instrumento de contratação dos bons doutorados em que investiram.

Em conclusão, pragmaticamente, parece-me que:

a) a contratação de assistentes deve ser excepcional e bem controlada;
b) os assistentes doutorados não devem ter acesso automático ao professorado;
c) enquanto não for garantido que a contratação directa pelas universidades se pauta, dominantemente, por critérios de qualidade, o concurso (não previsto no ECDU) para professor auxiliar deve ser exigente;
d) por enquanto, não deve ser restrito o acesso a concurso aos doutorados pela universidade que abre o concurso;
e) em contrapartida, para controlo relativo do proteccionismo endogâmico, o júri desses concursos abertos deve incluir membros externos (embora isto não seja para mim panaceia, como discutirei adiante) e deve ser obrigatória a apreciação de dois pareceres de professores estrangeiros.

2. A endogamia a níveis superiores

Antes da discussão da nossa situação, parece valer a pena alguma coisa sobre práticas internacionais. Discuto apenas os exemplos dos EUA e do RU, porque os conheço melhor no concreto, principalmente por muitas informações práticas de amigos desses países.

É certo que há grande mobilidade inter-institucional, mas não é verdade que isto se deva à política das universidades, excepto no que respeita à oferta de condições preferenciais e competitivas. A grande maioria dos professores que se desloca fá-lo por “promoção”, por vontade própria, para obtenção de maior prestígio, de melhores condições científicas e também, obviamente, por melhor remuneração. Mas a demissão de um professor não é tão fácil e corrente como por vezes se diz. Aliás, não há necessidade disso, porque a contratação inicial é tão exigente que só um situação aberrante de degradação das capacidades justificaria o despedimento.

Depois, não há confusão entre promoção e recrutamento, como nos nossos concursos públicos. Em primeiro lugar, não há concursos como os nossos. São processos de política institucional de qualidade e com grande peso hierárquico de decisão (mas também as hierarquias são outras!). promove-se individualmente um professor por estímulo ao mérito, ou, mais pragmaticamente, para impedir que ele aceite uma melhor oferta. Mas, simultaneamente, recruta-se por variados factores de política institucional. Claro que se há um novo Nobel em Idaho, Cambridge faz o possível por o contratar. Mas isto não obriga à demissão de nenhum dos existentes. Admito que não seja bem assim. Conheço três casos de professores que foram contratados por outras universidades para dirigir departamentos cujos directores tinham saído ou reformado, e em que esses meus três colegas impuseram como condição a renovação integral do departamento. 

a) A nomeação definitiva

É o ponto critico da carreira, ao fim do contrato inicial de cinco anos como professor auxiliar. Ao contrário do que tem vindo a ser escrito, considero que este é que é o momento decisivo da luta contra a endogamia. Todas as razões que referi atrás justificativas da protecção caseira dos assistentes se potencializam em relação aos professores auxiliares. Ainda por cima, já são do mesmo clube professoral, já se sentam todos juntos no conselho científico, em algumas universidades até podem ser presidentes de departamento. No caso que vivi, apesar das minhas tentativas frustradas de introdução de rigor, era o mais automático e complacente dos processos. Fosse ele rigoroso e nenhum dos catedráticos aí teria chegado.

Volto a repetir, com adaptações, propostas anteriores:
i. a nomeação definitiva não deve ser competência do conselho científico, mas de um júri;
ii. o júri tem de analisar obrigatoriamente os pareceres de dois estrangeiros;
iii. o júri só pode ser composto por professores classificados com “muito bom” (discutirei isto adiante);
iv. a nomeação definitiva implica automaticamente a promoção a professor associado.

A alternativa, mantendo as regras anteriores, seria a de a agregação (melhor, habilitação) ser um título exigido, evidentemente que com adaptações, não para o concurso a catedrático, em que, a meu ver, não faz sentido, mas sim para a concessão de nomeação definitiva.

b) Professores do quadro

Teoricamente, não devia haver problemas de endogamia a este nível. Se o recrutamento inicial fosse de grande exigência, não seria vulgar encontrar professores em fase superior da carreira que não demonstrassem qualidade. Mas não vivemos num sistema perfeito e a verdade é que o ECDU e a cultura universitária favorecem o proteccionismo dos da casa nos concursos de promoção.

Concursos de promoção: aqui está o problema central, o da nossa confusão entre promoção e recrutamento. A primeira é justa, o segundo é politicamente desejável. Como compatibilizar? Começa logo por haver entraves orçamentais. A fórmula prevê apenas 2% de incremento anual das despesas de promoções, incluindo as passagens automáticas de escalão. Claro que, em tempo de vacas magras, nem esses 2% vão para o seu destino. Mais importante são as possíveis consequências financeiras de um concurso. Por exemplo, abre-se um para catedrático e concorrem um associado da casa, com nomeação definitiva, e um externo. Se este ganhar o concurso, a universidade tem de assegurar ambos os vencimentos.

Uma possibilidade é um sistema de quotas, com uma relação definida entre concursos de promoção e de recrutamento. Não me agrada, porque, como disse, parecem-me coisas bem distintas. A promoção é questão de carreira, enquanto que o recrutamento é politico, para criação de novas áreas ou para reforço de outras. Também tudo isto depende dos quadros orgânicos. Devia discutir agora esta questão essencial e os seus critérios, mas levar-nos-ia muito longe.

3. Os júris

Já participei em número suficiente para tirar algumas conclusões. Começo logo pelo caso anedótico de uma autoridade académica, visceralmente antagónico a um candidato a agregação (com dois artigos publicados em revistas internacionais!) que me aconselhou a propor um júri exigente. Passou no conselho científico, era um júri grande, cerca de uma dúzia de membros. O presidente disse-me que falaria com os membros, coisa que não fez. Fiquei sozinho na arena. Mesmo os catedráticos da minha escola, que diziam cobras e lagartos do homem, apoiaram-no. Quase todos os outros também, que era um bom homem, numa idade que merecia reconhecimento, muito dedicado à escola. Um dos membros externos, tido como fera de exigência nos concursos na sua escola, argumentou que a minha tinha um padrão histórico muito baixo de qualificações e que era injusto estar então a alterar essa situação. Eu tive de pedir que ficasse em acta o que considerava uma ofensa à escola de que era director. O presidente fez uma intervenção defendendo vivamente o consenso dos pares, como critério académico. No fim, dois votos contra, o meu e o de uma muito prezada colega (não tivesse ela sido formada na escola do Instituto Gulbenkian!).

Mas, fora estes casos anedóticos, tenho experiência do papel, embora ingrato, dos membros externos. No último concurso em que participei, tudo parecia vir preparado. Creio que foram os externos que conseguiram dar a volta, porque, por maiores que sejam os interesses internos, ainda vai havendo alguma vergonha.

O que queria lançar para discussão é uma medida já em vigor em Espanha, embora com muitos protestos corporativos e de mediocridade académica. Actualmente, todos os professores são avaliados individualmente e classificados, coisa que não acontece entre nós nem me parece que venha a acontecer a curto prazo. Só podem participar em júris de concurso ou “habilitación” (agregação) os classificados com muito bom. Não seria este um decreto importante, dos tais de um só artigo?

11.1.2006