A crise da democracia representativa

João Vasconcelos Costa

Nos anos sessenta, nos meios de esquerda, quase não havia conversa política que não evocasse a alienação. Tanto mais que era o país dos três fff, fado, futebol e Fátima, com o poder político ter encontrado pouco antes um novo e grande instrumento, a televisão.

Alienação entendida, simplificadamente, como desvio à consciência dos interesses populares e correspondentes lutas. Mantendo-se essa natureza, múltiplos fatores a partir do domínio do neoliberalismo acrescentaram-lhe características novas.

Já se conhecia bem o “emburguesamento” de frações ou camadas de trabalhadores, mas mantinha-se, globalmente, o confronto político e ideológico. De certa forma, a alienação era “pela negativa”, roubando gente ao campo oposto. 

Com a implosão do edifício comunista, a globalização, a crise económica e os sucessivos “consensos” para a resolver, mais um aparelho educativo, cultural e informativo formatador, passa a haver também a alienação “pela positiva, uma assimilação. Destaque-se, no sistema educativo, o papel de formatação pelas escolas tecnocráticas da área social (economia, gestão, sociologia, etc.), prolongada pela cultura generalizada das empresas.

Estabelece-se um pensamento único ou dominante, bem como um padrão unificador de comportamentos e objetivos pessoais-sociais, interpenetrados, com destaque também para o consumismo (com contributo do crédito, marketing, gadgetismo, aquisição de símbolos de status, etc.), a inculturação, a estupidificarão dos lazeres, a mercantilização de toda a vida social e mesmo individual. 

A vida converteu-se num imenso supermercado, com seleção por “competitividade interna” que deixa de fora, tudo o que não renda ou não se encaixe, na política, no estudo, na informação, na cultura, na habitação, na saúde. Esta exclusão já não afeta só as camadas trabalhadoras, que ainda resistiam, mas agora também muitas camadas de classe média, mais timoratas e assimiláveis ao sistema de pão e circo.

É o homem unidimensional de que falava o filósofo marxista ocidental Herbert Marcuse, no seu livro homónimo de 1964.

assimilação, esta alienação levada ao extremo, é assim um sistema de ideias, atitudes e valores que configura uma forma de “toda a gente sabe que…”, de senso comum, de memes intocáveis. Toda a gente sabe que, em relação a quase tudo, “não há alternativa” (o TINA da Sra. Thatcher).

Um caso paradoxal de um desses tabus é o da democracia. Indiscutível! E, no entanto, quase sempre precisa de explicação ou clarificação. O que quer dizer? Um sistema conforme com os direitos humanos? O trio liberdade-igualdade-fraternidade? O estado de direito? A conformidade com uma constituição aprovada com legitimidade? É tudo isto e mais, em doses variáveis conforme o entendimento das pessoas. O que se pode ter como certo é que, na cultura hoje hegemónica, é aquilo que se verifica na prática como democracia representativa, em particular no antes chamado “mundo ocidental”.

E, no entanto, sendo tido como indiscutível, nunca esse sistema de democracia representativa esteve tão em crise. A baixa estima pela política e seus agentes, a perceção da corrupção entranhada na política, a falta de ética republicana, o partidarismo clientelar, são muitos dos fatores que explicam os bem patentes desvios à norma democrática, seja o desinteresse e a abstenção, sejam os sucessos de variadas formas de cesarismo demagógico.

Mas, só podendo resolver a crise os detentores de poderes legislativo ou constitucional, afinal os responsáveis pela crise, como abrir este ciclo vicioso?

O segundo problema é o da natureza e alcance da correção necessária. Há quem pense que a crise é resolúvel no quadro do seu próprio sistema e normas, por ser a crise apenas a falta de cumprimento pleno do ideal democrático.

Não é que não seja positiva uma reclamação mais simples de mais democracia, mas há a alternativa de uma alteração mais profunda do contexto político, social e económico em que ela actua. 

Embora a democracia não se esgote no Estado, ele é a sua expressão essencial. A questão central é o poder e que parte tem o sistema institucional político nesse poder. Até há pouco, o poder político refletia o económico, mas o capital não o detinha diretamente, daí o aspeto essencial de representatividade no sistema democrático.

O capitalismo, nesta sua fase de afirmação hegemónica sob a forma de neoliberalismo, apropriou-se diretamente da democracia, reduzindo-a um jogo em que a cidadania não tem significado real.

Assim, a regeneração revolucionária da democracia teria de ser a construção de uma democracia real, em que as pessoas sejam cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas mas que não impeçam a afirmação de fatores de participação democrática dos cidadãos, sem exclusividade da representação do sistema partidário. Que garanta a separação dos sectores privado e público da vida pessoal. Que reconcilie as pessoas com a política, contra a corrupção e a promiscuidade política com os negócios. Que promove a libertação da ditadura das verdades feitas.

Em termos gerais, trata-se de democracia participativa, mais larga do que a mera democracia representativa formal.

É fácil definir democracia participativa como o conjunto de princípios e mecanismos que permitem a intervenção dos cidadãos nos procedimentos de tomada de decisão e de controle do exercício do Poder.

Ademais, permite-lhes terem acesso aos seus representantes em permanência, fazer ouvir as suas opiniões de forma institucionalizada, prévia à tomada de decisões e beneficiar de mecanismos eficazes de controle exercidos pela sociedade civil sobre a administração pública.

Sendo tão transparentes estes princípios definidores, porque não são frequentes os casos sucedidos de democracia participativa, com excepção dos orçamentos participativos? Por exemplo, a nossa Constituição prevê a participação teórica, mas que na prática não é marcante, enquanto que outros mecanismos, como o reconhecimento das organizações populares de base, foram suprimidos.

Bobbio identificou três factores limitantes: a especialidade, que diz respeito ao aumento de necessidade de competências técnicas; a burocracia; e a lentidão de processo, um problema intrínseco do próprio sistema democrático.

Acresce também a falta de organizações, colectividades ou movimentos sociais e comunitários, assim como um maior sentido de colectividade por parte da população.

Com isto, e apesar de numerosas experiências estrangeiras, pontuais, não há ainda propostas consistentes ou sistematizadas para uma democracia participativa portuguesa. Talvez seja melhor começar por procurar o caminho e não a chegada.

(13.11.17)