A autonomia das universidades privadas

João Vasconcelos Costa

João Vasconcelos Costa

As décadas de oitenta e noventa foram de reformas universitárias convergentes por toda a Europa, entre as quais avulta a da concessão de autonomia, de maior ou menor grau, incluindo a autonomia estatutária. Na nomenclatura de Neave e van Vught, passou-se da fase de “Estado intervencionista” para “Estado facilitador”. Vários factores contribuiram para isto: o sector privado passou a ser o maior empregador e a determinar mais fortemente a função e política das universidades, a anterior homogeneidade legal passou a ser um entrave à diversidade e à capacidade de mudança e adaptação aos desafios, a burocracia central deixou de conseguir lidar com os problemas postos às políticas e à gestão pela massificação e cada vez mais as universidades passaram a ter de recorrer a financiamentos não provenientes do Estado.

A tendência actual é a de o controlo pelo Estado ser substituído pela autonomia com supervisão pelo Estado. Os Estados, em maior ou menor grau, transferem para as instituições de ensino superior (IES) a capacidade de se organizarem das formas mais adequadas às suas especificidades, de definirem os seus objectivos estratégicos e as vias práticas de os alcançar, de elaborar os seus planos de desenvolvimento, de efectuarem a gestão corrente. Reservam para si, como garantes do interesse público, as grandes decisões normativas e ordenadoras do sistema. 

A autonomia é o reconhecimento da dificuldade do Estado de lidar com a complexidade do ensino superior. Para além das autonomias instrumentais (administrativa e pedagógica), a autonomia estatutária, que sendo a mais problemática na teoria do Estado, é um factor essencial de adaptação e diversidade. Por isto, a autonomia deve ser também a forma de as IES melhor poderem corresponder à enorme diversidade de condicionalismos internos e externos e de exigências que lhes são postas pela sociedade. A autonomia estatutária deve permitir às universidades e politécnicos organizarem-se estatutariamente da melhor forma para corresponderem a esses diferentes condicionalismos, deve ser a forma de respeitar a diversidade e de permitir às IES experiências organizativas e de governação inovadoras, promotoras de políticas mais prontas e eficazes, devendo ser também um factor da desejável competição entre as IES. 

No entanto, a autonomia é, em geral, na Europa, uma autonomia “quanto baste”, a necessária para que o sistema funcione nas novas condições de complexidade e diversidade. Contra uma ideia demasiado ampla da autonomia universitária (como em Portugal), joga a necessidade de garantia da qualidade da educação superior como bem público, o controlo de uma eventual anarquia do sistema deixado entregue à auto-regulação, o peso do conservadorismo corporativo e uma nova filosofia política de maior intervenção da sociedade civil nos assuntos de Estado.

A autonomia das IES públicas portuguesas, universidades e politécnicos, é regulada por instrumentos legais diferentes. O grau mais alto de autonomia é o das universidades públicas, segundo a Lei nº 108/88, de 24 de Setembro. A sua autonomia estatutária está só dependente do cumprimento da lei, embora esta seja de tal forma pormenorizada em relação à organização das universidades que pouco fica de margem de variabilidade. A autonomia pedagógica vai até à liberdade de criação de cursos, sujeitos só a registo. Os efeitos perversos desta ampla margem de autonomia são bem conhecidos, com a criação de um bom número de cursos irrelevantes e sem procura.

O estatuto do ensino superior politécnico (Lei nº 54/90, de 5 de Setembro) é mais restritivo, atribuindo aos institutos politécnicos autonomia estatutária, administrativa, financeira e patrimonial, mas conferindo autonomia pedagógica e científica não aos institutos mas sim às escolas que os integram. Os estatutos são homologados pelo Governo, mas sem a restrição de essa homologação só poder ser negada por incumprimento da lei da autonomia. Também ao contrário das universidades públicas, os politécnicos não são livres de criar cursos, que têm que ser aprovados pelo Ministério.

A autonomia das instituições privadas face ao Estado

A autonomia das instituições privadas é matéria do Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo (EESPC) publicado como Decreto-Lei nº 16/94, de 22 de Janeiro. Pela sua natureza de instituições dependentes de uma entidade privada instituidora, o Estatuto contempla dois tipos de autonomia, face ao Estado e face à entidade instituidora.

A autonomia face ao Estado das instituições privadas é, como seria de esperar de entidades privadas, a mais ampla em matéria de elaboração dos seus estatutos, que apenas necessitam de registo. A flexibilidade estatutária é muito grande, porque a lei apenas determina que os estatutos devem enunciar os seus objectivos pedagógicos e científicos, concretizar a sua autonomia e definir a sua estrutura orgânica e que os estatutos devem contemplar a participação de docentes e discentes na gestão dos estabelecimentos de ensino. Estabelece-se também como reserva de estatuto “as regras a que obedecem as relações entre a entidade instituidora e o estabelecimento, bem como os demais aspectos fundamentais da organização e funcionamento destes, designadamente a forma de designação e a duração do mandato dos titulares dos órgãos”. Deve ainda constar, no domínio do ensino a ministrar, a definição do regime de matrículas, de inscrições, de frequência e de avaliação dos alunos, bem como os deveres e direitos do pessoal docente.

Mas estas reservas de estatuto, ao contrário da lei da autonomia universitária, quase que não são acompanhadas de disposições obrigatórias (apenas a enumeração dos órgãos obrigatórios e alguns princípios genéricos sobre a sua composição). É por isto que há diferenças consideráveis entre as soluções organizativas e funcionais previstas nos estatutos das IES privadas, ao contrário dos estatutos das universidades públicas, quase cópia uns dos outros nas matérias essenciais, por necessidade de respeito pelo disposto na lei da autonomia.

A par da autonomia estatutária, pode-se discutir o regime de aprovação da criação de um estabelecimento privado de ensino superior. Não parece ser matéria controversa ou que tenha alguma vez causado polémica. Só por exagero se pode eventualmente defender a criação totalmente livre de um estabelecimento. É certo que na sociedade em que vivemos, a lógica fundamental é a da iniciativa privada, com intervenção do Estado reduzida ao essencial para garantia do interesse público. A regra de criação de qualquer empresa é a de não necessitar de autorização pelo Estado, excepto na sua conformidade a leis que defendam interesses gerais dos cidadãos, como os da saúde pública ou a defesa do ambiente. Pode por isso a criação de um estabelecimento ser sujeita a licenciamento, como no caso das farmácias (mas aqui as razões são menos transparentes) ou das clínicas privadas. Vivemos numa economia de mercado mas em que o Estado desempenha funções importantes na regulação do mercado e na iniciativa de empresa. A criação de uma IES privada está neste caso.

A constituição garante o direito de criação de escolas particulares e cooperativas, mas ao mesmo tempo diz que o Estado fiscaliza o ensino particular e cooperativo. Não parece abusivo admitir-se que esta acção fiscalizadora comece logo na criação dos estabelecimentos, garantindo-se as condições mínimas de qualidade da actividade docente a desenvolver. Na prática, segundo o EESPC, o aval do Estado à criação de uma IES privada faz-se pelo seu reconhecimento como de interesse público. O pedido, de que consta a informação pertinente sobre as condições de funcionamento do estabelecimento, é apreciado por uma comissão de especialistas, o que dá alguma confiança em relação a ser apreciado pela burocracia do Ministério.

Também as condições mínimas para a criação de uma universidade ou de um instituto politécnico privados não são de molde a causar grande dificuldade à sua criação. Uma universidade tem que leccionar seis licenciaturas, em três áreas diferentes, sendo dessas licenciaturas duas técnico-laboratoriais. Um politécnico tem que ter pelo menos duas escolas, leccionando pelo menos quatro bacharelatos, um dos quais técnico-laboratorial. É neste ponto dos cursos técnico-laboratoriais que tem havido interpretações muito liberais da lei e, embora se aceite bem o desejo de diversidade que esta disposição tem por detrás, não parece uma questão líquida. Há em outros lados universidades com gamas restritas de acção, com especialização numa ou noutra grande área do saber. Pode haver uma universidade de humanidades de grande qualidade, assim como, pelo contrário, uma universidade tecnológica, só com engenharias e ciências conexas. Mas também é verdade que isto, que se passa, por exemplo, nos EUA, se dilui na diversidade geral, enquanto que em Portugal uma concentração exclusiva das universidades privadas nas áreas não tecnológicas desequilibraria a rede de ensino superior.

Para além de outras exigências indiscutíveis em relação a instalações, bibliotecas, laboratórios, actividade científica (o que também falta depois na prática, em muitos casos) e cultural, o EESPC é, a meu ver, muito liberal em relação às exigências de pessoal docente qualificado. Por exemplo, para a criação de uma universidade só são necessários um doutor por cada 200 alunos e curso e um mestre por cada 150 alunos e curso. Ainda por cima, só se exige que metade desse pessoal é que esteja a tempo inteiro, o que contribui para o tão falado problema das acumulações e falta de dedicação institucional. Podia dizer-se que esta liberalidade tem a ver com a eventual dificuldade de recrutamento no início das actividades, mas de facto são números para uma situação estabilizada, pois o EESPC prevê um período de instalação com ainda menores exigências.

Este quadro poderá mudar com a aplicação da nova lei do desenvolvimento e qualidade. Não se pode ainda avaliar os critérios práticos, porque, segundo a lei, os requisitos gerais de criação de estabelecimentos, sejam públicos sejam privados, são genéricos e indiscutíveis, tudo dependendo do que será matéria de despacho ministerial regulamentador, nomeadamente no que se refere a instalações e recursos materiais, bem como à existência de um corpo docente próprio adequado em número e em qualificação à natureza do estabelecimento e aos graus conferidos. Anote-se, como ponto positivo, que este despacho ministerial será precedido de parecer do Conselho Nacional do Ensino Superior, em que estão representadas as instituições e agora, na versão final da lei, também representantes sociais.

Se o regime de criação de estabelecimentos e de declaração de interesse público pode não levantar grandes objecções, já o mesmo não se pode dizer da aprovação da criação de cursos. Comparada com a autonomia das universidades públicas, que podem criar livremente os seus cursos, a autonomia pedagógica das instituições privadas é reduzida e do mesmo nível da dos politécnicos, necessitando a criação de cursos de aprovação ministerial, na prática porventura mais exigente do que no caso dos politécnicos públicos, em que a aprovação é só em termos genéricos. É também o Ministério que fixa as vagas para a primeira matrícula nos cursos autorizados. A autorização é dada após apreciação por uma comissão de especialistas de um processo descritivo do curso, com uma longa lista de ítens que pode permitir uma grande variabilidade de critérios.

Esta situação vai alterar-se com a nova lei do desenvolvimento e qualidade, que uniformiza para todos os subsistemas o processo de aprovação da criação de cursos (embora lhe chame registo), mas até à sua próxima promulgação, as instituições privadas viveram num regime diminuído, ainda por cima moroso e lesivo da flexibilidade e rapidez de resposta das instituições. Novamente, a lei do desenvolvimento e qualidade é muito geral e os critérios específicos para a criação ou acreditação de um curso serão estabelecidos por portaria ministerial, ouvido o Conselho Nacional do Ensino Superior. O principal receio é que, tendo em conta a visível preocupação da nova lei e do Ministro com as chamadas medidas de racionalização, não venham a ser determinantes os critérios que têm a ver com a relevância, por mais difícil que seja defini-la. É certo que, pela lei, essas medidas só se aplicam à rede pública, mas nada obsta a que a mesma filosofia seja estendida à aprovação ou registo dos cursos do ensino privado ou à fixação das vagas.

A grande questão que se põe aqui é a de se saber se entidades que estão dependentes do mercado e que não dependem do financiamento público devem necessitar de aprovação prévia dos seus “produtos”, isto é, os seus cursos. À primeira vista, enquanto as instituições privadas forem financiadas apenas pelos seus estudantes, a regulação devia ser deixada fundamentalmente ao mercado. Desde que os estudantes consumidores estejam bem informados, o mercado é, para as instituições privadas, o grande regulador, com todas as suas vantagens. Favorece a competição pela qualidade, elimina experiências de pouco valor que de outra forma se perpetuariam e fomenta uma proveitosa emulação com o sector público, embora este não esteja fundamentalmente dependente do mercado. A questão só se porá diferentemente com novos modelos de financiamento, em que as instituições privadas sejam também financiadas parcialmente pelo Estado (como vimos no caso dos cheques ou dos empréstimos).

No entanto, a liberdade de empresa e as leis do mercado não impedem alguma acção reguladora do Estado. A defesa da qualidade e a protecção do consumidor, especialmente num mercado que é muito assimétrico, justificam mecanismos de regulação que vemos em acção em outros domínios: na energia, na banca, nos seguros, na licenciação de medicamentos e na fixação do seu preço, etc. A própria Constituição, no seu artº 75º, estipula que o Estado fiscaliza o ensino particular e cooperativo. Também a Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86, de 14 de Outubro) articula estreitamente os vários subsistemas e parece dar considerável capacidade de intervenção e regulação ao Estado, estipulando no seu artº 55º, nº 2, que “no alargamento ou no ajustamento da rede o Estado terá também em consideração as iniciativas e os estabelecimentos particulares e cooperativos, numa perspectiva de racionalização de meios, de aproveitamento de recursos e de garantia de qualidade”. Tudo isto justifica a aprovação ministerial da criação de cursos ou deve ser antes entendido como a sua avaliação regular, a posteriori?

Como escrevi num artigo anterior, a questão é aqui de equilíbrio e de bom senso. O papel do Estado, como agente não financiador, não deve ir mais além da garantia da qualidade do sistema e da informação do mercado. Colocadas claramente no mercado as instituições privadas e sujeitas aos seus mecanismos e assumindo os seus riscos, não parece admissível que o papel regulador do Estado seja o mesmo, muito menos mais forte, do que em relação ao subsistema público. Também é inadmissível e sem precedentes no mercado que o Estado regule a quantidade de bens oferecidos no mercado, isto é, o número de vagas do ensino privado. Cremos que as instituições de ensino superior privado deviam ser totalmente livres de criar os seus cursos, sujeitando-se ao mercado, e de fixarem livremente o número de vagas, com a restrição de, para fiscalização do Estado e de defesa do consumidor, esses cursos deverem ser sujeitos a priori a um processo de avaliação/acreditação, com classificação, a cargo da entidade independente que discutimos nesse artigo, mas não carecendo de uma decisão ministerial.

A autonomia face à entidade instituidora

Se, no ensino público, só falamos de autonomia em relação ao Governo, no privado temos que considerar também a autonomia em relação às entidades instituidoras, tanto mais que são elas que detêm a personalidade jurídica e o poder económico. 

O EESPC estabelece uma distinção inequívoca, em princípio, entre a entidade instituidora e o estabelecimento de ensino, dispondo, por um lado, que a primeira apenas “organiza e gere os respectivos estabelecimentos de ensino, designadamente nos domínios administrativo, económico e financeiro” (artº 5, nº 1) e que “os estabelecimentos de ensino gozam de autonomia pedagógica, científica e cultural” (artº 5º, nº 2). A preocupação de separação das duas entidades era manifesta na proibição de poderem ser titulares dos órgãos de estabelecimentos de ensino os titulares de órgãos de direcção ou fiscalização da entidade instituidora (artº 5º, nº 4), mas esta disposição foi alterada pela Lei nº 37/94, de 22 de Janeiro, que restringe aquela proibição apenas aos titulares dos órgãos de fiscalização financeira da entidade instituidora.

Apesar de parecer garantida, em princípio, a autonomia em relação à entidade instituidora, são disposições do próprio EESPC, para além da prática, que a limitam. Os poderes da entidade instituidora, estabelecidos no artº 19º, são bastante largos e podem entrar em conflito com a autonomia do estabelecimento: “a) criar e assegurar as condições para o normal funcionamento do estabelecimento de ensino, assegurando a sua gestão administrativa, económica e financeira; b) submeter a registo o estatuto do estabelecimento de ensino e as suas alterações; c) afectar ao estabelecimento de ensino um património específico em instalações e equipamento; d) designar, nos termos do estatuto, os titulares do órgão de direcção do estabelecimento de ensino e destitui-los livremente; e) aprovar os planos de actividade e os orçamentos elaborados pelos órgãos do estabelecimento de ensino; f) contratar docentes, ouvido o órgão científico do estabelecimento de ensino; g) contratar pessoal não docente, ouvido o órgão de direcção do estabelecimento de ensino; h) requerer autorização de funcionamento de cursos e reconhecimento de graus, precedendo parecer favorável do órgão científico do estabelecimento de ensino”.

É certo que o EESCP diz a seguir que estas competências devem ser exercidas sem prejuízo da autonomia pedagógica, científica e cultural do estabelecimento de ensino, mas na prática isso pode ser difícil e gerador de conflitos, naturalmente resolvidos a favor de quem tem o verdadeiro poder. 

Um dos aspectos mais críticos da autonomia em relação à entidade instituidora é o da total incapacidade administrativa dos estabelecimentos. Provavelmente, para a terem, seria necessário que possuissem personalidade jurídica, mas isto não parece um problema intransponível. O que parece inaceitável é a dissociação entre a gestão estratégica (neste caso, a pedagógica, científica e cultural) e a gestão administrativa e financeira. Uma sem outra não fazem sentido. As decisões políticas têm que ser vistas à luz dos custos-benefícios, e portanto, à luz da gestão, e esta não pode ser uma gestão cega, mas sim dependente dos objectivos políticos. A entidade instituidora tem a competência de aprovação do orçamento proposto pelo estabelecimento, mas devia transferir a respectiva verba para a gestão administrativa e financeira do próprio estabelecimento. Pode-se admitir, para maior controlo, que a entidade instituidora nomeie o administrador, ouvido o reitor, e que se crie um conselho fiscal, da confiança da entidade instituidora.

Na prática, o exclusivo da competência de gestão da entidade instituidora pode ser atenuado. Por exemplo, nas universidades Atlântica, Lusófona e Portucalense, a gestão é supervisionada pela entidade instituidora mas operacionalizada pela própria universidade. Também a Atlântica e a Lusíada dispõem nos seus estatutos que decisões que envolvem simultaneamente aspectos financeiros e pedagógicos devem ser tomadas por acordo entre o reitor e o presidente da entidade instituidora.

Da mesma forma, desde que com cabimento no orçamento aprovado, devem ser da competência exclusiva do estabelecimento as propostas ao Ministério de criação de novos cursos e a contratação de pessoal (embora juridicamente a contratação tenha que ser feita pela entidade instituidora, mas devendo isto ser apenas um proforma). Estes são requisitos mínimos para dar consistência à autonomia do estabelecimento em relação à entidade instituidora.

Adiante, ao discutirmos a governação, voltaremos a outros aspectos da autonomia em relação à entidade instituidora.

Os fundamentos da autonomia em relação à entidade instituidora

Curiosamente, sendo matéria polémica e da maior importância, o estatuto não discute no seu preâmbulo os fundamentos da autonomia e as razões que justificam a sua formulação legal. Por um lado, vivendo-se em sistema capitalista, é o detentor do capital da empresa que exerce o poder. Os membros da entidade instituidora, sejam accionistas ou cooperantes, investiram o seu capital e, como em qualquer negócio, querem gerir esse investimento e tirar dele o maior rendimento. Admita-se que esse investimento é acompanhado de uma estratégia e de um projecto educativo e logo decorre que esses fundadores têm o direito de controlar a execução prática desse projecto, tanto mais que, muito frequentemente, são professores e não simples homens de negócios.

Mas, por outro lado, o ensino não pode ser visto apenas como um negócio. A liberdade de estabelecimento no ensino pressupõe o cumprimento dos objectivos nacionais do sistema educativo e o ensino privado tem que se inserir na rede nacional de educação. É por isto que tem direito ao reconhecimento legal da sua importância e ao apoio financeiro e outro do Estado. Públicas ou privadas, as universidades têm as mesmas missões e devem ter os mesmos meios para as cumprir. A sua missão pedagógica, científica e cultural não pode ficar exclusivamente dependente dos factores de mercado, o que seria agravado se o estabelecimento de ensino dependesse fortemente dos eventuais interesses economicistas da entidade instituidora.

Este problema põe-se agudamente no reino por excelência da universidade privada, que são os Estados Unidos. É certo que há uma diferença importante, que é o carácter fundacional das principais universidades históricas americanas, enquanto que cá as entidades instituidoras são entidades com fins lucrativos. A solução nos Estados Unidos para a garantia dos valores académicos e culturais contra os interesses económicos é a da quase total autonomia, mas exercida por um “board of trustees”, não pela comunidade académica. Em regra, os “boards” são verdadeiros zeladores da qualidade e independência da universidade. Têm o poder máximo sobre a política da universidade e têm também um papel relevante na procura de financiamentos para a universidade, principalmente doações.

Mas nos Estados Unidos, onde muitas das universidades privadas pertencem a entidades lucrativas (as “for profit universities”), podíamos também falar do papel dos “stockholders” ou proprietários, como cá. Nem aí isto é verdade, e é por intermédio de “boards” com membros externos, embora da sua confiança, que os proprietários exercem os seus poderes. Esta ênfase na independência do órgão de funções políticas da universidade tem a ver com o paradigma relativamente recente na Europa mas antigo nos EUA dos “stakeholders”, todos os agentes e corpos sociais que têm legitimidade para se preocuparem e intervirem na vida das universidades, nomeadamente membros externos à universidade: autarquias e poderes regionais, empresas e empregadores, ordens e associações profissionais e sindicais, antigos alunos, doadores, personalidades eminentes da vida social, económica e cultural, etc. É um reflexo da relação da universidade com a sociedade. 

Os membros externos nos órgãos de governo das universidades desempenham na prática um papel importante porque são isentos na garantia da qualidade, porque levam a visão da sociedade para dentro da universidade, desenquistando a visão corporativa estreita e normalmente conservadora e porque neutralizam ou atenuam os tão frequentes conflitos entre académicos.

A dependência directa da universidade em relação aos proprietários tem o risco de conduzir à mercantilização do ensino e à sujeição da universidade a interesses económicos. Talvez em Portugal isto não seja tão marcante, porque muitos dos proprietários ou cooperantes também são professores. É por aquele risco que, na generalidade dos casos americanos, mesmo nas “for profit universities” (embora em algum compromisso com os proprietários) os membros externos, nos seus “boards”, nomeados pelos proprietários mas com grande independência, têm por função compensar o peso dos valores do mercado e os interesses económicos dos proprietários. São em regra os próprios proprietários que reconhecem que este mecanismo de governação por um órgão autónomo, segundo o paradigma dos “stakeholders”, garante melhor a qualidade da universidade e, concomitantemente, também a sua competitividade e lucratividade, com maior retorno aos proprietários.

A governação

Esquematicamente, há dois modelos de governação das universidades: o modelo tradicional e colegial europeu e o modelo americano, de inspiração empresarial. Digo esquematicamente porque hoje na Europa cada vez mais se ensaiam experiências híbridas, de compromisso entre a tradição académica europeia e a eficácia do modelo americano.

O modelo colegial tradicional, ainda seguido na sua forma “pura” pelas nossas universidades públicas, caracteriza-se pelo predomínio de órgãos colectivos (senados, conselhos científicos) com funções de governo e decisão, de dimensão geralmente inadequada à tomada de decisão rápida e eficiente; a composição destes órgãos colegiais não com base de competência mas principalmente por representação dos vários corpos sociais e profissionais da universidade; a eleição dos dirigentes por assembleias; a divisão de poderes entre os vários órgãos. É um modelo que estimula o corporativismo, tem dificuldade em fazer emergir um pensamento estratégico e políticas consequentes com esse pensamento, tem capacidade reduzida de resposta pronta aos desafios e não garante a eficiência e coerência da gestão. Os senados universitários são de facto grandes assembleias gerais e não verdadeiros “conselhos de administração”, para dar uma analogia empresarial.

O modelo alternativo é o reinante nos Estados Unidos, está também fortemente implantado no Reino Unido e nos seus domínios, embora com alguns compromissos com a colegialidade, e está a ganhar posição na Europa (Espanha, Holanda, Suíça, países escandinavos e bálticos, alguns de leste, etc.). As características essenciais deste novo modelo são: as funções de direcção e gestão competem, em grande parte, a órgãos unipessoais; o governo compete ao “board of trustees” ou conselho de governo, equivalente aos conselhos de administração, de dimensão reduzida e eficiente e com participação exclusiva (nos EUA) ou significativa (na Europa) de membros externos, na lógica do paradigma dos “stakeholders”; os órgãos colectivos representativos (senados ou conselhos científicos) são órgãos consultivos e de acompanhamento ou de decisão mas apenas sobre matérias tipicamente académicas; os detentores de cargos executivos, inclusivamente o reitor, são nomeados pelo órgão máximo de governo (“board of trustees” ou conselho de governo) ou, pelo menos, este tem um papel muito determinante na sua selecção.

Este modelo de governação é reconhecido como um dos factores principais da qualidade das universidades americanas. Favorece a definição de estratégias, permite respostas rápidas, dá coesão institucional, responsabiliza os órgãos de governo, facilita a adopção fundamentada de políticas proactivas. A principal marca distintiva do modelo são os amplos poderes políticos do “board of trustees”: definição da estratégia e das respectivas políticas de concretização, aprovação do orçamento e do plano de actividades, “fund raising”, contratos de investigação e serviços, criação de novos cursos, contratação de directores de departamento e de professores, relações com a sociedade, etc.

A maioria das universidades privadas portuguesas seguem a tradição do modelo colegial das universidades públicas, com um órgão de política institucional do tipo dos senados, composto por representações e de grandes dimensões. Pode-se suspeitar que corram os riscos dos mesmos males de inércia e dificuldade de tomada de decisão por órgãos de composição e dimensão desadequadas de que sofrem as universidades públicas. No entanto, digo isto com prudência, porque não tenho um conhecimento vivido das nossas universidades privadas, apenas o estudo dos seus estatutos. E dos estatutos à realidade pode ir uma grande distância. 

Um bom exemplo em relação ao “basismo” eleitoralista das públicas é a designação por nomeação dos directores das unidades orgânicas, em quase todas as universidades privadas, o que vai ao encontro da garantia de competência e da responsabilização desses dirigentes, como se faz praticamente em toda a parte. Departamentos fortes e com boa capacidade de definição de políticas, com liderança, até podem suprir algum défice teórico de definição estratégica e política de universidades que adoptam o modelo colegial tradicional. Onde as privadas não fazem grande diferença das públicas é na composição e competências dos conselhos científicos e pedagógicos, que, em alguns estatutos das universidades privadas, parecem copiados do sector público, em que estes órgãos já mostraram largamente a sua ineficiência. 

Um aspecto que me parece positivo do EESPC é obrigar à existência do conselho de direcção. Nada diz sobre a dimensão e composição deste órgão, mas é o órgão que as universidades podiam aproveitar para se aproximar dos modelos modernos de gestão, atribuindo-lhes as competências dos “boards” estrangeiros, embora sob a tutela da entidade instituidora. Seriam órgãos de pequena dimensão, adequada a uma discussão aprofundada da estratégia e política da universidade. A eles deviam caber as propostas de orçamento, de plano de desenvolvimento e de actividades, de criação de cursos de todos os tipos, de actividades inovadoras, como a aprendizagem ao longo da vida, de contratação de professores, de política de investigação e formação de quadros, de relações com a sociedade, de relações internacionais, etc. Os órgãos colegiais de tipo senado seriam órgãos consultivos e de acompanhamento da actividade do conselho de direcção.

No entanto, só duas universidades (Atlântica e Fernando Pessoa) é que atribuiram aos seus conselhos de direcção funções políticas desse tipo. Nestes dois casos, descontada a falta de capacidade de decisão do conselho de direcção, ele pode ser visto como uma aproximação aos “boards” dos modelos modernos. Nas restantes universidades, os conselhos de direcção, com este ou outro nome, têm funções principalmente administrativas e de gestão, competindo as funções de proposta política, como se disse, a órgãos colegiais alargados, na tradição do nosso modelo de governação universitária e com os défices de funcionalidade que os novos modelos de gestão pretendem corrigir. 

A composição do conselho de direcção nos dois casos referidos de conselhos com competência política é que pode não ser a mais adequada. Em ambos os casos, são compostos exclusivamente por autoridades internas. Ganha-se em competência e informação política mas perde-se na ligação à comunidade académica e principalmente à entidade instituidora, com maior rigidez dos circuitos de informação e de proposta/decisão entre a universidade e a entidade instituidora. 

Ganhar-se-ia em flexibilidade e agilidade de governação e também em largueza de visão se o conselho de direcção fosse composto (à semelhança de algumas novas experiências europeias, apesar de universidades públicas, em que se leia Estado em vez de entidade instituidora) pelo reitor e vice-reitores, por um pequeno número de professores escolhidos em função da sua capacidade de política universitária, por membros nomeados pela entidade instituidora, a facilitar a ligação entre ela e a universidade, e, fundamentalmente, por individualidades externas designadas, por exemplo, por acordo entre a entidade instituidora e os órgãos académicos. 

As razões para este papel dos externos ficaram bem explicadas quando discuti atrás o novo paradigma dos “stakeholders”. A falta de membros externos na sua governação é um aspecto em que as privadas estão em atraso, dado que metade das universidades públicas incluem membros externos nos seus senados, embora, de facto, com número e significado quase simbólicos. É certo que algumas universidades privadas contam com membros externos, mas em conselhos gerais da entidade instituidora, não nos seus próprios órgãos de governo.

Em resumo, o que se tem vindo a sugerir acerca dos conselhos de direcção fazem deles o principal órgão de proposta política à entidade instituidora, enquanto que os órgãos representativos da comunidade académica seriam consultivos e de acompanhamento. Este modelo só difere do modelo moderno de governação existente noutros países por o conselho não ter poder de decisão.

Mas podemos ir mais longe. Se forem estes conselhos os órgãos máximos de governação da universidade, e da confiança da entidade instituidora, julgo que se deve aprofundar a autonomia em relação à entidade instituidora, dando alguns poderes de decisão ao conselho de governo, com as características e composição que propus, e indo no caminho dos novos modelos de governação. Pode-se dizer que o “board” desses modelos já existe nas nossas universidades privadas, se assim o considerarmos o conselho de administração da entidade instituidora. Mas o que afasta o conselho de administração da entidade instituidora dos “boards” das universidades modernas são precisamente as características essenciais destes últimos: a independência em relação aos proprietários e a presença determinante de membros externos.

Salvaguardadas quatro competências indiscutíveis da entidade instituidora (decidir do montante do financiamento, velar pelo cumprimento do projecto educativo, nomear o administrador e controlar a gestão), as universidades privadas deviam ter maior grau de afastamento e autonomia em relação à entidade instituidora, na lógica que defendi atrás de compromisso entre a missão e os valores universitários, por um lado e, por outro, a legitimidade do poder e os interesses empresariais da instituidora. 

Assim, das competências da entidade instituidora estabelecidas no EESPC, deviam passar para os conselhos de direcção remodelados a estratégia e a decisão política (sujeita ao orçamento e à aprovação do plano de actividade pela entidade instituidora), a responsabilidade pela gestão (mas, como disse, sob controlo da entidade instituidora, nomeadamente pela nomeação do administrador – embora este deva ficar sob a dependência hierárquica do reitor – e pela existência de um conselho fiscal por ela nomeado), a nomeação do reitor e dos directores das unidades orgânicas, a contratação de pessoal (dentro de um plano financeiro a médio prazo para contratações aprovado pela entidade instituidora) e as propostas ao Ministério de criação de novos cursos.

Esta proposta de maior autonomia pode parecer contraditória com os direitos de propriedade da entidade instituidora. Parece-me que, com um compromisso razoável com esse direito e com as responsabilidades de gestão que dele derivam, esta proposta garante melhor a salvaguarda do espírito, missão e valores próprios de uma universidade, seja ela pública ou privada. Pelo menos teoricamente, pois é possível que, na prática, as nossas entidades instituidoras não interfiram significativamente com a natureza da universidade. Também não é uma proposta irrealista e despropositada. Este modelo está em prática em muitos países europeus, neste caso em relação a uma “entidade instituidora” especial que é o Estado, que tem em geral os poderes que proponho para as entidades instituidoras, como referido no parágrafo anterior. Ele é também o paradigma nos Estados Unidos, descontando embora o facto de aí as universidades privadas serem, muito frequentemente fundacionais e sem fins lucrativos e não ser claro que haja uma entidade instituidora.

Mas só uma análise prática e de cada realidade é que dirá se de facto é necessário um maior afastamento entre as universidades e as entidades instituidoras, com uma ponte constituída pelo conselho de direcção quase-autónomo, ou se o actual EESPC e os estatutos universitários e a sua execução prática garantem eficazmente o respeito pela natureza e missões das universidades. Fica aberto o debate.

11.11.2002