A acreditação – em resposta a Vital Moreira

João Vasconcelos Costa

No seu habitual artigo de opinião no Público, em 4 de Dezembro, Vital Moreira põe em questão que os organismos profissionais públicos, nomeadamente as ordens, possam contestar a formação académica dos candidatos ao exercício da profissão. Trata-se da chamada acreditação profissional dos cursos, cuja única justificação, para Vital Moreira, “está em estabelecer mais um filtro à entrada na profissão, com o risco de ser instrumentalizado como um meio encapotado de limitação corporativa do acesso à profissão, em benefício dos que já lá estão”.

Como escreve Vital Moreira, “algumas ordens profissionais permitem-se submeter os candidatos à profissão a um exame de entrada tendente a aferir a sua formação académica” e “isto quer dizer que o grau académico na licenciatura legalmente elegível para dar acesso a uma profissão não é aceite pela respectiva ordem profissional”. Só dispensam do exame à ordem os diplomados com cursos aprovados na acreditação, isto é, o processo de avaliação pelo qual elas consideram que um determinado curso é, por si só, condição de inscrição na ordem, com direito ao exercício da profissão. 

A meu ver, Vital Moreira tem razão e não tem. Tem razão quando se insurge contra a acreditação pelas ordens, que é um processo que reconheço que tem grandes riscos de corporativismo e duvidosa legitimidade política. Além disto, as ordens têm tendência a seguir os processos de acreditação definidos pelas suas associações europeias, eventualmente nivelados por baixo, e em qualquer caso potencialmente homogenizadores e lesivos da diversidade. A diversidade é um valor importante de enriquecimento do sistema de ensino superior, aumentando o leque de escolhas pelos estudantes, ajustando-se à evolução rápida das exigências do mercado do trabalho, criando condições para experiências inovadoras e estimulando a procura de padrões de excelência próprios de cada universidade. Por tudo isto, como Vital Moreira escreve, estou de acordo em que não é aceitável que as ordens se “arroguem o direito de controlar “a posteriori” (JVC — mas não “a priori”) a formação obtida pelos graduados nesses cursos”.

Mas já não tem razão quando contrapõe que os graus académicos conferidos por universidades públicas ou por universidades privadas oficialmente reconhecidas “por definição, são dignos de todo o crédito e de fé pública quanto à formação de nível superior numa determinada área de conhecimento”. Isto não é obrigatoriamente verdade, pelo menos em relação às universidades públicas, que são livres de oferecer cursos sem qualquer avaliação prévia e sem acreditação, que se define como “uma declaração formal e pública relativa à qualidade de uma instituição ou de um programa, na sequência de avaliação baseada em padrões acordados” (CRE). Mas a acreditação que defendo nada tem a ver com a acreditação pelas ordens, como se verá.

Em Portugal, o Estado regula rigidamente e com grande uniformidade alguns aspectos da vida universitária, como o acesso, o sistema de graus e a carreira docente, mas deixa inteiramente às universidades a liberdade programática. A diversidade programática, isto é, o conjunto dos cursos oferecidos, é deixada à auto-regulação pelas universidades, que são livres de criar novas licenciaturas, mestrados e áreas de doutoramento. Nestas condições, não é correcto garantir-se, como faz Vital Moreira, a qualidade “a priori” de qualquer curso.

Diz Vital Moreira que “hoje, porém, recuperou-se alguma racionalidade na criação de cursos”. Não concordo. O catálogo de cursos é vastíssimo e redundante, em grande número de casos assente numa grande especialização. Muitos cursos de banda estreita são irrelevantes socialmente, ficam com um número de alunos abaixo do numerus clausus, muitas vezes com qualificações muito baixas, quando não ficam mesmo desertos. Em muitos outros casos, são cursos desajustados das necessidades do mercado de trabalho, lançando jovens para o desemprego. No entanto, mesmo que sujeitos a avaliação negativa, contam da mesma forma como os melhores e mais relevantes para o financiamento em bloco das universidades, pelo método da fórmula. Numa época de dificuldades de financiamento, que tende a perdurar e mesmo a agravar-se, é uma situação insustentável. Esta é uma questão que tenho abordado repetidamente em outros textos desta página da “net”.

Como já escrevi, os dados relativos à primeira fase de colocações de 2001-2 são reveladores. Nos 490 cursos oferecidos pelo ensino universitário, havia 26721 vagas, tendo sido colocados apenas 20901 candidatos, correspondendo a uma taxa de colocação de 78,2%. Do total de cursos, apenas 239 (48,8%) ficaram totalmente preenchidos; 144 (29,4%) foram ocupados a menos de 50%, 61 (12,5%) a menos de 20% e 19 (3,9%) a menos de 10%. Dez cursos ficaram apenas com um aluno e chegou mesmo a haver 4 cursos que ficaram totalmente desertos.

É necessário introduzir a regulação das ofertas educativas das universidades públicas, com aprovação da criação de cursos financiados pelo Estado (ficando elas livres de criarem os cursos que quiserem sujeitar ao mercado e ao financiamento privado). Os objectivos da regulação são o da garantia da qualidade, que é também um factor de defesa dos consumidores, sejam eles os estudantes sejam os empregadores e, indirectamente, toda a sociedade; o da relevância, também essencial do ponto de vista da defesa do consumidor e medida em várias vertentes, académica, cultural e social; e o de combate ao desperdício e de economia de recursos, num sistema em que a universidade é livre de criar os cursos mas com isto o Estado fica obrigado a financiá-los. É verdade que a necessidade de aprovação de novos cursos é um recuo em relação à actual autonomia. De uma forma geral, as universidades têm sabido merecer a autonomia, mas este é um caso manifesto em que a autonomia deve ser controlada.

Hoje, em muitos países, a regulação da oferta, isto é, a aprovação de novos cursos, está dependente da acreditação (mas não pelas ordens profissionais). Mesmo nos Estados Unidos, onde imperam as leis do mercado, ou mesmo por causa disto, para ganho de posição no mercado, é vulgar as universidades procurarem acreditação para os seus cursos, existindo diversas agências de acreditação bem estabelecidas, por exemplo, para as engenharias (ABET – “Accreditation Board for Engineering and Technology”) ou para os cursos de gestão, incluindo os MBA (AACSB – “American Accreditation Agency for Business Management Education” ou AMBA – “Association of MBAs”). Algumas destas agências já fazem também a acreditação internacional de cursos de universidades europeias, bem como, muito frequentemente, das universidades dos “tigres da Ásia”. Isto não quer dizer que esta tendência para a acreditação, de que as grandes universidades americanas nunca precisaram, não seja talvez mais do que uma moda ou até um negócio, em contraponto à indiscutível importância das avaliações institucionais ou “quality audits”.

Na Europa, a tendência para a acreditação por agências independentes é crescente, não só a nível nacional mas também internacional. Ela está bem estabelecida, por exemplo, na Inglaterra, na Irlanda, na Suécia, na Finlândia e nos países de leste e, mais recentemente, está em lançamento na Alemanha e na Holanda, assim como é proposta no novo projecto de lei orgânica das universidades na Espanha. Como exemplos de iniciativas europeias supra-nacionais, existem o sistema EQUIS de acreditação de cursos de gestão pela Fundação Europeia para o Desenvolvimento da Gestão (EFMD), o projecto ECIU/EQR do Consórcio Europeu das Universidades Inovativas, a que pertence a Universidade de Aveiro, e o projecto da antiga CRE (agora fundida na “European University Association”) de um quadro de referência dos sistemas de acreditação.

A regulação pelo Estado continua a ser, directa ou indirectamente, em maior ou menor hibridismo com o mercado, o sistema dominante na Europa. E não pode deixar de ser, quando o peso determinante do financiamento na Europa ainda continua a caber ao Estado. O oposto, a regulação pelo mercado, exige um verdadeiro mercado de ensino superior, como nos Estados Unidos, que é inseparável de um sistema de financiamento também dependente do mercado, isto é, o financiamento pelas propinas. A regulação pelo Estado não consente a sobreposição total pelas corporações, como diz Vital Moreira: “as corporações são o meio pelo qual a sociedade civil ambiciona transformar-se em Estado. Mais precisamente, elas são o meio pelo qual os interesses de grupo se sobrepõem ao interesse público geral, que só os órgãos representativos do Estado podem representar e promover”.

A meu ver, isto precisa de alguma mitigação, à luz das relações entre o Estado e a sociedade civil. É certo que, na Europa, a regulação pelo Estado ainda cabe geralmente aos governos. No entanto, em alguns países, como os que referi atrás, o papel do Estado é entregue a agências ou órgãos com maior ou menor dependência do Ministério. Estes organismos tendem a associar a representação da sociedade civil, num crescente reconhecimento do papel dos parceiros sociais (“stakeholders”) da universidade. É aqui que podem e devem entrar as associações profissionais. Em alguns desses países, a independência da agência de acreditação em relação ao governo é total e a acreditação vale como aprovação e reconhecimento nacional da criação de um curso, sem necessidade de aprovação ministerial. Esta é a solução que tenho defendido para Portugal.

Talvez Vital Moreira não ande muito longe desta ideia, quando escreve que “a intervenção relevante (dos organismos profissionais) deve ser feita a montante, primeiro aquando da criação dos cursos, no momento da sua aprovação oficial e depois no processo de avaliação levado a cabo pelas estruturas estabelecidas para o efeito”.

Essa é também a minha posição, no sentido dos exemplos recentes europeus que referi. Ela tem a ver com a desconfiança na burocracia e na sua incapacidade de lidar com a rica complexidade do ensino superior, tem a ver com a concepção da concertação como factor da democracia participada e com a necessidade de envolvimento dos parceiros sociais da universidade, até no próprio interesse desta. A própria lei do ordenamento prevê a intervenção na regulação da criação de cursos de uma entidade independente, embora não a caracterize nem lhe atribua funções explícitas. Já tive ocasião de propor uma entidade deste tipo, reunindo representantes do Estado, das instituições de ensino superior e dos parceiros sociais, incluindo as ordens (ou o CNAVES reformulado), à qual competiria a aprovação da criação de novos cursos, mediante avaliação “a priori” e acreditação, em lugar de um processo de aprovação de novos cursos exclusivamente ou em última instância a cargo do Governo.

12.12.2001