Nos últimos dias, Mário Centeno parece ser o primeiro ministro. Mal lembrando, salvo seja…, já nos aconteceu um ministro das Finanças que era a autoridade máxima do governo.
Digo isto de Mário Centeno porque, na polémica sobre o défice orçamental, um ministro tem de vir dizer “somos todos Centeno” e o primeiro ministro entra mudo e sai calado. Por outro lado, é sobre Centeno, individualizadamente, que se têm centrado as críticas dos parceiros de apoio a este governo do PS (num entendimento caracterizável como de centro-esquerda).
A questão tem-se posto, em números, na diferença entre a previsão inicial do governo – 1,1% do PIB de défice em 2018 – e a atual meta de 0,7%. Esta diferença, que quer mostrar uma atitude ortodoxa mais papista do que o papa, permitiria o investimento de cerca de 800 milhões de euros, essencial para os que entendem que a relativa recuperação da austeridade tem como contrapartida a falta de investimento e mesmo o corte em despesas intermédias de setores essenciais do estado social de bem estar.
Falta-me espaço e competência para discutir esta questão do ponto de vista económico. No entanto, já é mais do domínio da política defender-se, como faz a esquerda com diferentes matizes, que a raiz do problema não está no grau de acomodação a um objetivo estrito de equilíbrio orçamental mas sim na política económica, financeira e orçamental que reduz a pensamento único centro-europeu as possíveis políticas nacionais. As décimas são o sintoma de doença muito mais séria.
Não está em causa a virtude de um princípio de equilíbrio orçamental, mas ele não pode ser adotado como um dogma ou coisa rígida que passa a ser um fim em si, desligando o orçamento do seu uso instrumental conforme a conjuntura ou mesmo a estrutura económica.
Também é desejável que esta discussão, pela importância que tem para o país, não seja contaminada por eventuais preocupações eleitoralistas. Pode-se querer juntar a fome e a vontade de comer, usando o dogma do equilíbrio orçamental também como argumento eleitoral. O milagre de “verdadeira social-democracia” de contas certas e política social, num momento em que a solução portuguesa, por recuada que seja, é uma exceção no quadro europeu de cedência social-democrata ao neoliberalismo ou à sua versão alemã de ordoliberalismo.
Passando finalmente ao essencial deste artigo, parto aqui do princípio de que a contradição principal desta plataforma de centro-esquerda é, por parte do governo, a obediência ao pensamento político-económico europeu e suas normas consagradas nas disposições da UE, direta ou indiretamente.
Desde a criação do euro, os chamados critérios de Maastricht têm condicionado toda a política orçamental dos países membros, retirando-lhes parte substancial dos alicerces da sua soberania. Como é bem conhecido, são o estabelecimento de percentagens máximas do PIB para o défice orçamental e para a dívida pública, respetivamente 3% e 60%.
Pode-se dizer que este constrangimento é só parte do condicionamento de fundo que é a própria pertença ao sistema do euro, associada à prática impossibilidade, no quadro institucional, de reestruturação da dívida. Assim, uma posição fundamentalista centraria a luta política na questão do euro, desvalorizando porventura a ação tática de combate aos critérios limitativos da soberania orçamental. É do que vamos tratar, focando-nos no Tratado Orçamental (TO), formalmente designado como Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária.
O TO foi o passo mais recente no desenho da cela prisional dos países do euro, mas teve antecedentes. Em 2011, foi acordado o chamado “Six Pack” como primeira regulação dos critérios orçamentais na zona euro:
i. consagra o “semestre europeu”, em que cada país submete à Comissão as bases do orçamento para o ano seguinte;
ii. introduz um padrão de despesa pública em função da previsão orçamental a médio prazo;
iii. faz supervisar tanto os países com défice orçamental como os países com superávite;
iv. alarga a aplicação do procedimento de défice excessivo também ao excesso da dívida pública, acima dos 60% do PIB;
v. permite à Comissão emitir recomendações e, no caso de não cumprimento, exigir um plano de correção;
vi. impõe sanções financeiras que podem ir até 0,5% do PIB do país “faltoso”.
A este acordo, que não teve a dignidade de tratado, seguiu-se dois anos depois o chamado “Two Pack”, que acrescentou duas novas regulamentações, uma para os países do euro e outra para os restantes. Reforçou-se o mecanismo de vigilância e o procedimento por défice excessivo e o semestre europeu passou a ser mais formal, com envio a Bruxelas de um plano de estabilidade a médio prazo – o PE ou PEC tão discutido nestes dias por causa da previsão de um défice muito baixo.
As propostas de orçamento são obrigatoriamente sujeitas à apreciação de Bruxelas entre outubro e dezembro de cada ano, que é discutida pelo Eurogrupo. A Comissão passou a ter poderes de vigilância regular da execução orçamental e de emissão de recomendações, em particular no que respeita a países com programas de assistência (leia-se “troika”) em que a posição da Comissão, na prática, condiciona os termos dessa assistência.
Articulando todas estas disposições, foi assinado em 2013 o TO, firmado pelos membros do sistema do euro e mais outros oito estados membros da UE. Não foi portanto assinado por todos os membros da UE e, assim, não é um tratado constitutivo da União. Veremos adiante a importância disto.
Coerentemente com a sua posição sistemática de bom aluno europeu, seguida também pelo atual governo, Portugal foi o primeiro signatário do TO a ratificá-lo no parlamento. Também, por proposta do PS, integrou as disposições do TO na ordem interna, como lei reforçada (o que exige maioria de dois terços para revogação). Diga-se que podia ter sido pior, porque o TO recomenda que, de preferência, ele seja transcrito para as constituições dos países signatários. Foi o que aconteceu, por exemplo, em Espanha, com a criação do novo artigo 135º da constituição. É espantoso que uma questão política conjuntural, como a decisão sobre o défice e a dívida em cada ano, tenha dignidade constitucional, constrangendo enormemente a capacidade de cumprimento do programa de governo sufragado pelos eleitores.
Fora isto, o TO não trouxe novidades de monta, em relação aos critérios de Maastricht, a não ser a substituição do limite máximo de 3% do PIB para o défice nominal por 0,5% do défice estrutural, um parâmetro muito discutível pela sua ambiguidade e dificuldade de cálculo, segundo dizem os especialistas. Segundo o tratado, o défice estrutural é “o saldo anual corrigido das variações cíclicas e líquido de medidas extraordinárias e temporárias”.
Novidade é também a imposição da redução de 1/20 ao ano da diferença entre a dívida pública e a meta de 60% do PIB. É uma regra que afeta enormemente a nossa economia, porque tal redução do excesso de cerca de 70% do PIB da nossa dívida, sem reestruturação, só é possível – e mesmo assim “miraculosamente” – com saldos primários enormes, ou por carga fiscal muito elevada ou por contração da despesa pública, quer de investimento quer de funcionamento do estado social (educação, saúde, segurança social)
Também significativo é o reforço dos poderes de supervisão da Comissão, que passou a ser determinante como fator de ponderação para a decisão de submeter um país a procedimento de défice excessivo. A Comissão passou também a acompanhar os planos de emissão de dívida.
Seria fastidioso enumerar todos os pormenores do TO, mas é muito importante um que já foi referido atrás: o TO é um tratado vulgar, como tantos. É diferente do Tratado de Lisboa por este prever taxativamente o processo e consequências de denúncia do tratado, isto é, a saída da UE, como se está a ver com o Brexit.
Sendo omisso em relação a cláusulas que limitem a denúncia, esta fica livre, no quadro da Convenção de Viena. E o que tem isto a ver com o título deste artigo? É que o TO estabelece (artigo 16º) que:
“O mais tardar cinco anos após a data de entrada em vigor do presente Tratado e com base numa avaliação da experiência adquirida com a sua aplicação, são adotadas as medidas necessárias, em conformidade com o Tratado da União Europeia e com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, com o objetivo de incorporar o teor do presente Tratado no quadro jurídico da União Europeia.”
Ora os cinco anos cumpriram-se em 1 de janeiro deste ano. Está portanto aberto o processo de transformação do TO de tratado ordinário em tratado no quadro jurídico da UE. Ele agora ainda é denunciável, mas depois fica abrangido pelo célebre artigo 50º do Tratado da União, que regula a saída de um estado membro.
Denunciar o TO pode não ser o essencial ou o remédio definitivo, a saber a recuperação da nossa soberania económica e financeira. Mas seria um enorme passo, não só pelo significado económico nacional mas também pelo efeito de perturbação da pseudo-harmonia determinada pelo pensamento único europeu (ou ocidental).
Em princípio, o balanço para nós do TO, prós para uns, contras para outros, devia já estar no centro do debate político. Claro que estou a fazer exercício de estilo de ingenuidade. O TO não será nunca posto em causa pelo arco do nosso europeísmo bem comportado e venerador, incluindo a direita e o PS.
Mais incompreensível é que este debate não esteja a ser lançado pela esquerda. Pragmatismo, por razões de estabilidade da plataforma de centro-esquerda? Ou de se pensar que não vale a pena lutar contra impossibilidades? Mas quando é que a esquerda deixou de travar lutas necessárias mesmo sem perspetiva de vitória imediata?
(18,4.18)