Maria da Ilha
Recordo com saudade e respeito o dia, já há longos anos, em que pela primeira vez vi, estrada fora, um grupo de romeiros da ilha de São Miguel, na sua peregrinação de Fé e Amor a Deus e à Virgem. A concentração espiritual de todo aquele que toma parte nestas romarias quaresmais micaelenses é digna de ser bem observada e, principalmente, bem meditada.
Os romeiros dão-nos um exemplo e testemunho da profunda fé e amor fraterno que os conduz a uma semana de sacrifícios, a beirar o limite das forças humanas na sua dureza e despojamento.
Descrever as romarias quaresmais da ilha de São Miguel é viver uma religiosidade sincera e sem ornamentos e subterfúgios, é tentar compreendê-las e respeitá-las na sua pureza espiritual sem paralelo na modernidade das peregrinações.
Este profundo valor espiritual da minha ilha levou-me a tentar alinhavar no papel o que já sabia destas romarias e do seu profundo sentido religioso, ajudada pelo que anteriormente já haviam escrito os cronistas e historiadores da açorianeidade, como o fez Gaspar Frutuoso nas suas “Saudades da Terra”.
É uma homenagem ao povo micaelense que, apesar dos já muitos anos de ausência, trago sempre comigo … “o ilhéu, mesmo longe, nunca esquece a sua ilha e o seu mar”.
As romarias tiveram começo no ano de 1522, em consequência das convulções vulcânicas de 22 de Outubro daquele ano, que, mais uma vez, reesculpiram a ilha. Nesse dia, um vulcão adormecido furiosamente despertou e, tremendo as terras e os céus, desvastou a costa sul e, perante um povo espavorido, arrasou a principal povoação da ilha – Vila Franca do Campo.
Como disse Gaspar Frutuoso, o povo, em choro e altos berros, correu pelos campos além, pedindo ao Céu, através de Maria, perdão e clemência pelas supostas faltas cometidas. Acalmada a crise, compreendeu então terem sido ouvidas as suas preces e rogos e, de pronto, se organizou uma procissão de acção de graças. Da sua continuidade, ao longo dos anos, e da ligação do espírito da regeneração da alma à penitência da Quaresma, resultou a passagem de procissão a romaria quaresmal, cuja autenticidade se tem mantido graças às regras firmes de organização e participação por que se pautam.
Inicialmente mistas, viram-se as mulheres delas arredadas, acompanhando o movimento eclesiástico mais conservador. Recentemente, fruto de maior abertura de espírito, a hierarquia católica já acolhe a formação de ranchos femininos, em romarias autónomas das dos homens.
A preparação para a romaria faz-se com bastante antecedência, desde após o Natal. Cada romeiro é instruído sobre as regras e comportamentos, faz o seu retiro espiritual amparado pelo Mestre – seu “irmão mais velho” – e prepara-se para uma profunda vivência religiosa, comungando todos os dias. Sabe que o espera uma semana de romaria, de grande sacrifício físico e elevação espiritual. O romeiro não vai “para ver aquilo como é …”, pelo contrário, encara a sua participação como manifestação do seu muito respeito a Deus e à Virgem Maria, em união com profundo sentimento de humildade, caridade e fraternidade, que se traduz no cumprimento tradicional de se beijarem mutuamente as mãos. Ao longo desta preparação, trocadas as experiências, afinados os cânticos e orações, são atribuídas a cada romeiro, de acordo com a idade, saúde e características pessoais demonstradas, as tarefas que irá desempenhar ao longo da semana de romaria.
Os ranchos de romeiros, de 20 a 50 homens, têm a duração duma semana, durante a qual percorrem, em redor da ilha, no sentido do movimento do sol, todas as igrejas e ermidas com altar Mariano. São também pontos de paragem e oração todos os nichos com imagem da Virgem.
O rancho forma-se em duas fila paralelas, em andamento compassado, levando à cabeça de cada fila um “Guia”, que lhes marca a cadência e cumpre o itinerário. Ao meio deles vai o “Porta Cruz”, que é o romeiro mais novo, normalmente ainda uma criança, carregando ao peito o crucifíxo – virado para o peito durante a marcha e virado para fora quando o rancho pára para rezar. Logo atrás, e também entre as filas, segue o “Contra-Mestre”, que auxilia o Mestre e se responsabiliza pela ordem no rancho. A meio da formação fica o “Mestre”, responsável máximo pelo rancho e pela sua organização. Trata-se de uma pessoa experiente em romarias, considerado na freguesia como homem honesto, sério, com elevado de espírito de mando, impondo respeito mas com amor fraterno. Logo atrás do Mestre, na ala central, fica o “Lembrador das Almas”, que é o apontador dos nomes por alma de quem as orações serão feitas e quem lembra ao rancho a intenção de cada Avé Maria. Fechando a ala, está o “Procurador das Almas”, que recebe dos populares as Avé Marias pedidas, contando-as até preencherem um terço ou dois, para então serem rezadas. Na rectaguarda das filas laterais de romeiros ficam os “Despenseiros” ou “Irmãos da Loja”, responsabilizados pela alimentação e compras do rancho, sendo, para o efeito, os únicos a poderem afastar-se do grupo quando chegados aos locais de repouso. Quando o rancho integra um sacerdote, atribui-se-lhe o estatuto de “Guia Espiritual”. Para além dos romeiros, integram ainda o rancho três entidades espirituais, comuns em cada ano a todos os ranchos que se formam na ilha – Pai, Filho e Espírito Santo – Jesus, Maria e José, por exemplo.
Os romeiros não conversam entre si e, quando estritamente necessário, usam sempre o tratamento de “irmão”. Não podem fumar, comer ou beber com o rancho em marcha e fora dos pontos de repouso e, sem autorização do Mestre, não podem fazer penitências pessoais, dar esmolas, afastar-se do rancho, visitar parentes e amigos ou sair de noite após o recolhimento.
Quanto ao vestuário, leva pelos ombros um xaile quente para abafo, que lhes recordará a túnica de Cristo, pela cabeça como abrigo ou ao pescoço, por cima do xaile, um lenço de lã que simboliza a coroa de espinhos, na mão um bordão de madeira ferrado na ponta, lembrando-lhes a vara de canas do martírio de Jesus e, às costas, uma saca de fazenda com a muda de roupa e comida, que lhes recordará a cruz carregada no caminho do Calvário. Cada romeiro leva dois terços, um ao pescoço junto do lenço e outro na mão, com que rezam. O lenço e o terço ao pescoço só podem ser retirados ao deitar. O bordão é levado, durante a marcha, em pé e do lado de fora da fila mas, dentro das localidades, é transportado deitado e do lado de dentro de cada fila.
Durante a romaria, os romeiros, em máxima concentração, rezam, cantam, meditam e fazem petições à Virgem pelos seus familiares, amigos e pelo mundo inteiro, em grande espírito de amor fraterno, sempre compenetrados de que, no seu semelhante, têm Cristo a seu lado. O terço é rezado em cantilena ritmada, dedicando as Avé Marias segundo o lembrete do Encomendador das Almas. A toada é muito impressiva, porque enquanto uma fila do rancho reza interiormente a primeira parte da Avé Maria, a outra fila canta a segunda parte e vice-versa.
Chegados a cada povoação,os romeiros dão conhecimento da sua presença orando numa toada semelhante à dos tempos medievais. Os populares que se abeiram encomendam ao Procurador das Almas as suas orações por intenção dos seus e, em paga, rezarão uma Avé Maria por cada romeiro e por cada uma das três entidades espirituais. Assim se estabelece um intercâmbio de orações entre uns e outros, perpetuando de geração para geração, a cadeia de espiritualidade.
Uma vez chegados à igreja deixam no adro o bordão segundo o seu posicionamento no rancho e fazem a primeira oração, que é igual para todas as romarias. Esta oração, muito simples no texto, é cantada como sendo eco de tempos longínquos e, na sua toada arcaica, impõe uma atmosfera de grande espiritualidade que toca qualquer um, mesmo que menos crente ou até alheio à religião. Conheço testemunhos dados de como esta oração singela pode criar no ouvinte um estado de grande meditação e interioridade.
Terminadas as orações e petições por alma, os romeiros entoam as suas cantigas tradicionais, tão simples como se deve encontrar a alma do penitente durante aquela manifestação de fé.
Cito dois exemplos dessas toadas de grande singeleza mas, também, de grande sentimento :
“Nossa oração já fizemos
Senhora em Vossa presença
Ir embora já nós queremos
Senhora dá-nos licença”
“Romeiro alegre, cansado
Duma longa caminhada
Recorda o teu passado
Numa promessa sagrada”
Chegados a cada freguesia, normalmente ao fim da tarde, os romeiros são depois acolhidos por famílias que, deste modo, se associam à romaria. (Em nossa casa, também recebíamos romeiros e o meu marido, pelo grande amor que tinha aos filhos ausentes, pedia ao Mestre a preferência por três romeiros das mesmas idades dos nossos filhos, estudantes no continente).
Ao entrar na casa que os acolhe, o romeiro faz a saudação tradicional e, sem nunca pedir nada, recebe com humildade e reconhecimento fraterno o banho, a mesa e a cama que lhe queiram oferecer. Muitas famílias, em sinal de humildade e caridade, imitam o gesto de Cristo, lavando-lhe os pés. O romeiro reza um terço em intenção da família que o abriga e, ao deitar, tira pela única vez no dia o terço que traz ao pescoço e dá-o a guardar ao chefe da família. De manhã muito cedo, pelas 5 horas, o Mestre percorre a freguesia chamando os romeiros que, retomando ao pescoço o terço, se agrupam para nova jornada.
Cumprida a volta à ilha, a chegada à freguesia é dia festivo, com os familiares e amigos à sua espera na igreja engalanada, onde se reza a missa de agradecimento à Virgem e ao Deus Pai.
Despedem-se os romeiros uns dos outros, com alguma tristeza pelo fim daquela jornada de fé, que os uniu em profunda igualdade e fraternidade. Ficam ligados por laços muito intensos e, uma vez romeiro, neles permanecerá a marca duma espiritualidade reforçada e a benção do seu sacrifício.
Os romeiros da ilha de São Miguel são, repito, uma das maiores e mais respeitosas manifestações da profunda religiosidade do povo micaelense, uma muito sincera e sofrida expressão da sua fé, talvez um pouco pesada para o ritual dos nossos dias, mas verdadeiro e puro testemunho de amor a Deus e ao próximo.