Cinquenta anos volvidos, o dia 3 de Outubro de 1953 continua inesquecível. Era o meu primeiro dia de liceu. Como mais velho da família, até tive escolta dos meus irmãos mais novos, no curto trajecto de casa para o liceu, a quererem testemunhar acontecimento tão memorável. Bata nova toda resplandecente de branco, pasta nova com os livros e os cadernos cujas capas o meu pai se tinha esmerado a escrever com a sua melhor letra de desenhador, e ainda alguns acessórios de que já me tinham prevenido: um pião e alguns berlindes.
Naquele tempo, passar para o liceu era muito diferente da actual passagem do 4° para o 5° ano do ensino básico. O liceu, numa pequena capital de distrito, era uma instituição única e central na vida da terra. Os seus professores gozavam de grande consideração social e estava associada ao liceu uma certa imagem de elite porque os estudantes de menos recursos optavam pela escola industrial e comercial. Associava-se também à entrada no liceu um ritual de iniciação menos agradável e com alguma ansiedade, o dos exames: para além do exame da quarta classe, era necessário também fazer um exame de admissão ao liceu, para que nos preparávamos especialmente no fim da escola primária.
Instalado numa magnífica casa senhorial do princípio do século XIX, dos barões de Fonte Bela, o liceu de Ponta Delgada, que já tinha sido de Antero de Quental e que, muito depois, assim voltou a ser chamado, parecia-me um palácio real. Ainda hoje, descontada a imaginação infantil, sempre que visito a minha terra, impressiona-me a grandeza e a qualidade arquitectónica do meu velho liceu. Poucos alunos que éramos, vivíamos nele à larga e tínhamos aulas nas salas nobres do antigo solar, magnificamente pintadas a fresco e com estuques encomendados a mestres italianos. Grandes recreios, um ginásio moderno e um bom campo de jogos completavam as instalações, que certamente não eram vulgares no resto do país.
Mas a minha memória mais grata é a dos professores que me formaram. Tive um pouco de tudo, mas, em geral, tive professores notáveis, homens voltados à terra como profissionais muitas vezes depois de alguns anos como assistentes universitários, e cujos interesses intelectuais, que nos transmitiam, iam muito para além do ensino obrigatório das matérias. Deles destaco Armando Cortes Rodrigues, que tinha tanto de excêntrico (o que nós, miúdos, adorávamos, com histórias que me encheriam páginas e me recordam o tio tenente dos Sinais de Fogo) como de excelente poeta (injustamente esquecido), amigo de Pessoa e fundador do Orfeu, onde escrevia como Violante de Cysneiros. Ou Eufrásio de Oliveira, que mais do que professor de inglês, era um professor de cultura inglesa e nos ensinava o que era um “gentleman” ou o “british way of life”. Também Mário Rego Costa, meu professor de sempre de matemática, que me desafiava a saltar os passos evidentes na demonstração de teoremas. Outros, como José de Almeida Pavão e Rui Galvão de Carvalho, estudiosos da literatura açoriana e anterianos eméritos, foram mais tarde professores convidados da nova Universidade dos Açores e não pediam meças a outros professores com credenciais académicas.
A estes e outros se juntavam um grupo de professores em situação particular: eram os professores com estágio e que iam para o meu liceu aproveitar, para se efectivarem, um quadro generoso de vagas de efectivos de que o liceu dispunha. Eram, em regra, excelentes professores. Lembro-me, por exemplo, de Oliveira Guimarães, que tinha a coragem de nos ensinar filosofia por dois livros em paralelo: o oficial, de que já nem me lembro, e o de Magalhães Vilhena, que tínhamos obviamente grande dificuldade em obter. De outra, que não foi minha professora, Alba Monteiro, sei que também subvertia o seu ensino de filosofia. Não sei se a figura bonacheirona e de excelente homem que era o reitor, João Anglin, fazia alguma ideia do que isso significava ou se fechava os olhos, como fazia a tantas coisas, dentro dos limites razoáveis da disciplina, para ele temperada por uma sábia compreensão da psicologia juvenil.
Na evocação destes professores de arribação, tenho um lugar muito especial para um homem que me marcou pela vida fora: Ilídio Sardoeira, antigo assistente da Universidade do Porto demitido pelo salazarismo, amarantino e grande amigo de Teixeira de Pascoais e de Abel Salazar, colaborador da Biblioteca Cosmos. Foi meu professor de ciências naturais no meu terceiro ciclo, chegado a Ponta Delgada para se efectivar, quando já andaria pelos quarenta. Como professor de ciências naturais, dava muito mais importância à prática, incutindo-nos o gosto pela observação e pela limitada experimentação para que tinha magros recursos. Boa parte das nossas aulas era de campo, muitas vezes ao fim de semana, calcorreando a ilha em cata de exemplares da flora e da fauna típicas da Macaronésia. A matéria do programa que a estudássemos no livro, que era para isso que o tínhamos, compensando esse estudo pessoal com uma ou outra sessão de “tirar dúvidas”. Mas muito mais lhe devemos, eu e os meus colegas, de que aqui ficam só alguns exemplos: as aulas teóricas em que se tratavam de todos os assuntos menos ciências naturais, fosse a poesia de Pascoais, as ideias essenciais da teoria da relatividade, os perigos da guerra nuclear, a vida e obra de Ghandi, eu sei lá que mais. E para não esquecer a formação de um grupo de jograis (uma coisa hoje esquecida) a que pertenci, que se exibiu frequentemente dizendo principalmente poesia de Antero – por nosso orgulho micaelense – e de Camões, Pascoais e Torga – por seu gosto. E já que falo de poesia, a ele devo esta coisa escandalosa de preferir Cesário Verde a Pessoa!
Não admira que, neste clima de muito boa qualidade intelectual, também nós, alunos, principalmente os mais velhos, tivéssemos um papel activo. Como jovens que éramos, fazíamos uma mistura disparatada de coisas. Patuscávamos, víamos passar as meninas no canto do Clube, mas ao mesmo tempo fundámos o Círculo Cultural Antero de Quental, em instalações que o reitor nos cedeu. A lista de iniciativas foi longa e nelas pusemos, mais de duas dúzias de nós, o maior empenhamento, como só os jovens sabem. Organizámos exposições de “pintura”, para que fornecíamos reproduções que tínhamos em casa, e que eram acompanhadas de palestras sobre pintura moderna (um moderno que, para a terra, começava no impressionismo). Formámos um grupo de teatro (que faliu prematuramente, porque, no nosso entusiasmo, esquecemo-nos de como custear adereços e cenários).
Escrevíamos para os jornais locais. Organizámos conferências para toda a cidade convidando os profissionais mais distintos para falarem de assuntos de momento (lembro-me de um cirurgião ter feito uma conferência sobre o impacto das transplantações logo a seguir à primeira operação de Barnard), criámos um grupo cénico, etc.
Sem que ele estivesse relacionado directamente com o liceu, não posso deixar de me lembrar, com comovida amizade, de um jovem militar colocado em Ponta Delgada, com quem muitos de nós tínhamos relações, espantados com a cultura e inteligência desse jovem que tanto nos estimulava na nossa acção e que nos ensinava a ouvir Beethoven, em longos serões de música gravada com explicações e comentários entre andamentos. Entrou depois na nossa história. Chamava-se Ernesto Melo Antunes.
Ao chegar aqui, o leitor certamente estranhará que eu não tenha falado no obscurantismo desses tempos, do ensino ao serviço do regime, da obrigação da Mocidade Portuguesa (de que eu a princípio gostava, pelo campismo e pelo aparato de jogo de soldadinhos), da mentalidade estreita de alguns professores, da disciplina obsoleta (separação dos sexos – embora eu tenha estado, como menino bem comportado, sempre em turmas mistas, que as havia no meu liceu –, uso obrigatório da gravata no 3° ciclo, etc.). Tudo isto é verdade. Mas, como viram, tenho outras tão boas memórias que não me apetece falar de tristezas.