As cozinhas das ilhas dos Açores

alcatraHá muitos entendimentos sobre a escrita de gastronomia. Pode ser quase que só uma compilação de receitas, muitas vezes com grande esforço a desenterrar coisas esquecidas. No caso dos Açores, é indispensável recordar Augusto Gomes. Pode ser um exercício etnográfico, de recolha de ditos, tradições, passagens de textos populares, também de referências literárias. E pode e deve ser, obrigatoriamente, o melhor discurso possível, aquele que é feito à mesa do restaurante, vivendo ou revivendo os sabores ancestrais. Mais desafiador ainda é tudo isto no contexto da história, da antropologia, do estudo dos recursos naturais ao longo dos tempos, da economia doméstica e comunitária.

É tarefa a encarar com humildade e sentido do risco. Começo por lembrar que, quando em jovem comecei a tomar gosto por estas coisas de gosto de bem comer, não havia os saltos de avião de ilha para ilha, imperava o isolamento. Se isso não impedia um sentimento geral de açorianidade, mais difícil era dominar na prática as realidades locais de forma a solidificar uma elaboração da gastronomia açoriana. Só me posso considerar relativamente conhecedor das cozinhas micaelense e terceirense. Admito que todo este escrito fique condicionado por esta minha limitação. Mas também não posso ser acusado de não deixar bem clara uma coisa importante. Não há uma cozinha açoriana. Há cozinha de cada ilha, embora com uma matriz comum.

Não conheço nenhum estudo rigoroso sobre as origens da culinária das ilhas açorianas. Ao tentar caracterizá-la, assumo o risco de alguma especulação. É razoável pensar que ela deriva das tradições locais portuguesas trazidas pelos primeiros povoadores, mas depois condicionada pelos produtos locais e por alguns factores históricos, como, eventualmente, o comércio das especiarias. Sendo leigo em História, quero evitar que muitas das ideias tiradas das minhas leituras sejam infundadas. Socorro-me para isto da leitura de um trabalho inédito de um reputado historiador terceirense, o Prof. Avelino Meneses, da Universidade dos Açores, que amavelmente mo facultou.

Sabe-se mais da origem social dos povoadores do séc. XV que da geográfica, que mais nos interessa para estabelecer relações entre a cozinha açoriana e outras cozinhas regionais portuguesas. O povoamento, que foi difícil, passando por viagens antecedentes só para lançamento de gado, criação e sementes, fez-se inicialmente em pequenos povoados, com pesado trabalho de arroteia das terras. Talvez não passasse das centenas ou muito poucos milhares a população dos primeiros povoados, mas expandiu-se rapidamente. S. Miguel, ao fim de algumas dezenas de anos, já contava com duas povoações importantes, Vila Franca do Campo e Ponta Delgada, para além da inicial do povoamento, a então chamada Povoação Velha. Na Terceira, já com o séc. XV adiantado, Angra e Praia eram núcleos importantes de povoamento, a justificarem ser cada uma sede de uma capitania do donatário. 

Alguns grupos de flamengos, provavelmente por influência da infanta D. Isabel, duquesa da Borgonha, participaram no povoamento das ilhas centrais. Algumas lendas locais sobrevalorizam a importância desses povoadores flamengos e dos seus costumes. Como a lenda dos moinhos ancestralmente flamengos, quando afinal foram uma invenção erudita do século XVII, depois de grande luta contra os direitos senhoriais de moagem hidráulica. Talvez os flamengos tenham deixado algumas influências, como no caso do queijo de S. Jorge, quando Willem Vanderhaagen (ou van der Haagen), que adoptou o nome português de Guilherme da Silveira, colonizou a zona do Topo. De qualquer forma, a pecuária e os lacticínios jorgenses devem-se muito mais, certamente, ao clima, à orografia particular da ilha e à riqueza dos pastos, de tal forma que, desde muito cedo, S. Jorge foi um abastecedor de carne de outras ilhas. De qualquer forma, os flamengos tiveram muito menor importância do que os povoadores reinóis, e particularmente no povoamento mais antigo das duas ilhas orientais, S. Maria e S. Miguel.

O povoamento com base nas capitanias do donatário (nunca houve “capitães donatários”, mas sim “capitães do donatário”, sendo donatários os dois infantes, tio e sobrinho, mas isto desviar-nos-ia), com a origem diversificada dos capitães, provavelmente complica a elucidação das origens do povoamento. Os líderes do povoamento, a começar pelos capitães do donatário, eram provavelmente cavaleiros e escudeiros, em todo o caso não de alta nobreza, “criados” (no sentido histórico, não no actual) das casas dos donatários, primeiro o infante D. Henrique e depois o seu sobrinho e herdeiro, o infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V. Tendo-me referido aos flamengos como possível excepção, até mesmo o misteriosamente desaparecido Jácome de Bruges, o primeiro povoador da Terceira, parece ter estado ligado à casa do infante D. Henrique e não ter nada a ver com o movimento posterior de flamengos para as ilhas do meio. Mas nada garante que esses membros das casas dos donatários tivessem origens geográficas comuns. Sabe-se que o infante acolhe em Lagos (a sua verdadeira “escola”, mais prosaicamente “corte” senhorial, porque a de Sagres nunca existiu) gente de variadas origens, seus criados oriundos das muitas terras de seu domínio.

Não é desrazoável pensar-se que esses capitães tenham chamado ao povoamento principalmente os seus próximos e dependentes, domésticos e do campo. Se assim foi, as origens geográficas dos povoadores devem ser diversificadas, em função da origem dos líderes do povoamento. Infelizmente, enquanto que se conhece muito bem a genealogia posterior das principais famílias povoadoras, como exaustivamente descrita, “a fresco”, ainda no séc. XVI, na enorme obra de Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”, já a genealogia pretérita desses mesmos povoadores é muito incerta e não é geralmente referida por Frutuoso ou por outros cronistas posteriores. Convinha, porque, a crer-se em Frutuoso, que escrevia/louvava já em tempos de terceira geração de povoadores, foi a mais ínclita nobreza do reino que povoou as ilhas!…

Por outro lado, é de admitir, com boa base histórica, que, com o sucesso do povoamento e com a notícia da riqueza das terras, levas sucessivas de povoadores, isolados ou em grupo, tenham procurado a aventura dos Açores, vindos de origens incertas. De entre as conhecidas, sobressai a de povoadores madeirenses, com partilha até hoje de nomes de família comuns, como Câmara, Bettencourt, Viveiros (entretanto, perdido na Madeira). Com eles vem o melaço, o único adoçante usado nos Açores durante os tempos do povoamento. 

Essa população difusa foi acrescentada com um número significativo de degredados, obviamente oriundos de todo o pais, embora esses degredados só tenham sido enviados para S. Miguel e apenas durante o tempo da regência do infante D. Pedro.

Finalmente, outro componente do povoamento, pela sua especificidade cultural, ainda traz outras dificuldades à caracterização do fundo antropológico, físico (que começa a ser estudado, em termos genéticos) e cultural, das gentes açorianas. Este outro componente é o da colónia mourisca, que foi significativa nas ilhas de S. Miguel e S. Maria, seguida depois por um número incerto de escravos africanos, que vieram a miscigenar-se por completo, certamente miscigenando também as suas influências culturais, entre as quais as gastronómicas (o cuscus de S. Maria? Ou este vem dos frequentes contatos com os corsários magrebinos, que, abrigando-se, nem sempre eram hostis?). 

A referência a escravos negros é muito antiga. Já Gaspar Frutuoso conta que a ilha de S. Miguel foi avistada pela primeira vez, de S. Maria, por um escravo preto de Gonçalo Velho, já muitos anos depois do estabelecimento dos povoadores em S. Maria (o que me parece inverosímil, dada a proximidade e dimensão da ilha de S. Miguel, vista de S. Maria).

Faltam os judeus, ou melhor, os cristãos novos, em fase mais tardia do povoamento (séc. XVI). Conheço poucas referências, ao contrário da grande importância que tiveram os judeus sefarditas de Marrocos, um deles meu trisavô, na economia das ilhas mas em tempos muito mais recentes, do século XIX. Cristãos-novos dos tempos iniciais terão alguma coisa a ver com a bem típica alheira de S. Maria?

Com grande falta de fontes históricas documentais, creio que temos que nos socorrer de fontes indirectas para tentar estabelecer as relações geográficas do povoamento dos Açores e, com isto, o que aqui nos interessa e que é a origem da sua cozinha. Elas são muito variadas, mas creio que ainda não foram estudadas numa perspectiva integrada e interdisciplinar ou então aparentam dar resultados contraditórios. São a música popular, a linguística (tanto no que se refere ao vocabulário como às pronúncias), o cancioneiro e o teatro popular, a arquitectura, os utensílios agrícolas. 

No caso de S. Miguel, tenho a impressão, mas volto a dizer que de leigo, que uma origem importante do povoamento é o Alto Tejo, nos extremos sul da região de Castelo Branco e norte da região portalegrense. Quando vou a Nisa ou Castelo de Vide, ouço muito do sotaque micaelense, com o “u” e “ou” característicos e a generalizada monovocalização dos ditongos, vejo parecenças na arquitectura e parece-me, sem ser especialista, que há semelhanças na música popular. 

Há também relações muito evidentes na frequência de alguns nomes de família, menos vulgares noutras regiões do continente. Comparem-se as listas telefónicas de Portalegre e Castelo Branco com a de S. Miguel (uma coisa que fiz numa tarde de descanso em Castelo de Vide, entre duas partidas de golfe, mas que sugiro que seja feito com rigor científico). Mas posso estar a ver as coisas às avessas, porque o fluxo populacional pode ter sido em sentido inverso. De facto, muito mais tarde, no tempo de Pina Manique, sabe-se que muitos casais açorianos participaram na colonização do Alentejo interior, assim como, umas dezenas de anos antes, Pombal tinha promovido uma importante colonização açoriana do Brasil, especialmente de S. Catarina, onde ainda hoje se notam muitas influências açorianas. 

Mas diz-me quem sabe que não se pode esquecer o Algarve, onde é lógico que o Infante fosse recrutar povoadores. Se falei das semelhanças de pronúncia, que dizer da típica pronúncia de “á” como “ó”, comum a S. Miguel e ao barlavento algarvio, a cidade de “Logos” e o queijo de “cobra” micaelense? E mesmo as nortenhas parecem ter sido importantes numa fase posterior do povoamento, segundo Avelino Meneses. Por exemplo, parece-me ver isso na arquitectura popular, estranhamente muito variada numa simples ilha, S. Miguel. Na costa sul, as casas baixas, caiadas e com molduras das portas e janelas em cantaria ou pintadas com cores vivas, viradas para os caminhos e com telhado de quatro abas, parecem-me esmeridionais. Mas já em algumas freguesias da zona ocidental da ilha aparecem as casas de dois pisos, de pedra não revestida, perpendiculares ao caminho e com o piso térreo reservado aos animais e às alfaias, que me parecem de influência nortenha, salvo melhor opinião e mais abalizada.

Talvez seja mais simples mas também mais correcto considerar os Açores como uma grande mescla histórica e antropológica, a que o tempo, o isolamento em balanço com o contacto entre ilhas próximas deram uma coesão e unidade na diversidade bem características.

No domínio que agora me interessa, o da cozinha tradicional, volto a pensar que há semelhanças básicas significativas entre a cozinha meridional, alentejana e algarvia, e a cozinha de S. Miguel. Na base, são cozinhas em que avulta o pão, com grande profusão de açordas, de carnes pré-temperadas (no Alentejo com o pimentão, em S. Miguel com temperos com predominância do colorau, afinal também o pimentão) e com bom uso de ervas variadas. É claro que há adaptações provavelmente seculares à realidade local. Em relação à cozinha alentejana e do Alto Tejo, há na cozinha micaelense maior equilíbrio entre a carne de vaca e a de porco. E também maior uso do vinho [1]. As gorduras são principalmente a manteiga e a banha, em vez do azeite, produto importado e usado com algum luxo, só para temperar com azeite e vinagre peixe cozido e saladas. 

Se passarmos a olhar para todas as ilhas, a incerteza sobre as origens acresce ainda mais e causa alguns paradoxos interessantes, na relação entre a unidade e a diversidade, também no domínio da culinária, mas também em muitos outros aspectos etnográficos. Se, só em S. Miguel, o povoamento parece ter sido muito diverso, muito mais de ilha para ilha. Daí que seja entendível a diversidade de costumes, de tradições musicais, de cozinha, de festas populares, de frequência de nomes de família. 

Embora tenha havido povoamento de ilha para ilha, principalmente no grupo central, de ilhas muito próximas, o secular isolamento ilhéu justifica esta variedade. Recordemos que a primeira experiência de abrangência política e administrativa de todas as ilhas, depois da descentralização das capitanias dos donatários, data só dos tempos pombalinos, com a criação do cargo de capitão-general dos Açores. Mesmo no meu tempo, viajar de ilha para ilha era um dispêndio que só os privilegiados se podiam permitir. Pena tive eu, por exemplo, de, em 1957-58, não ter visto a erupção dos Capelinhos. Mais pitoresca mas impressionantemente, lembro-me de que conheci no vale das Sete Cidades uma mulher já idosa que não conhecia a cidade de Ponta Delgada, a cerca de vinte quilómetros de distância.

Mas, nessa diversidade de entidades ilhoas, há um indiscutível fundo comum da cultura e identidade açorianas. Começando por falar da cozinha, o meu leit-motif, não só os pratos típicos locais se enxertam numa óbvia matriz comum, como há muitos pratos que são usados, com ligeiras variantes, em todas as ilhas. Dou como exemplo as morcelas, ricas de especiarias e inconfundíveis com as do continente, o polvo guisado com vinho de cheiro (embora esta da variante americana do vinho date só do século XIX), os torresmos de porco, os vários fritos/estufados de porco ou vaca com fígado e miudezas (torresmos de molho de fígado de S. Miguel, caçoila de S. Jorge e outras), as variantes de carne assada em vinho tipificadas pela conhecida alcatra da Terceira, os chicharros de salsa verde, as receitas do Espírito Santo, o peixe recheado, vários pratos de lapas, que são, entre muitos outros, pratos desconhecidos da cozinha continental e, embora com variantes, comuns a todas as ilhas açorianas. Mas também pratos únicos de algumas ilhas, como a alheira ou a sopa de nabos de S. Maria, a fava de taberna de S. Miguel, as espécies de S. Jorge, o peixe com molho de ferrado do Pico, obviamente a alcatra terceirense, entre muito mais exemplos de diversidade culinária.

Como refiro adiante, exemplarmente, em relação à unidade e diversidade simultâneas do traço identificador açoriano de grande importância que é o culto do Espírito Santo, este tema da unidade na diversidade, talvez já esmiuçado pelos especialistas, continua a ser para mim um mistério, mas muito importante porque vai ao fundo do problema da identidade açoriana. Ele foi teorizado por pessoas notáveis, como Nemésio e Natália Correia, mas as suas elaborações intuitivas não satisfazem a minha necessidade de racionalização desse sentimento profundo, acentuado com o passar dos anos, que é o de me sentir cada vez mais açoriano, de forma indefinível. Mas também, porque cada vez mais açoriano, cada vez mais português.

Dando por findo este devaneio, meio histórico meio filosófico, mas de amador, voltemos à cozinha das ilhas (que me desculpem os meus amigos madeirenses, mas para mim as ilhas são os Açores, esquecidamente chamadas também de as Terceiras).

Além do que já disse, saliento que é uma cozinha que difere da nossa cozinha continental do litoral, que claramente privilegia o peixe. A cozinha açoriana é muito uma cozinha de carne, e também de capoeira. É de estranhar em ilhas, perdidas entre tanto mar. Mas a costa alcantilada das ilhas vulcânicas, em que o mar comeu a terra jovem acrescentada pelos vulcões, não propicia bons portos de pesca. Apesar do excelente peixe que aí se pesca, muitas vezes sem comparação de qualidade com o disponível no continente (com destaque para o carapau – lá o chicharrinho -, a garoupa, a abrótea, o rocaz, o boca-negra, o cherne, o mero, o lírio, o atum albacora ou a bicuda/barracuda, e também o marisco), o açoriano, particularmente o micaelense, esteve sempre mais voltado para a terra do que para o mar. Sobre essas quase duas culturas antagónicas, Armando Côrtes-Rodrigues, poeta micaelense de grande mérito e membro na juventude do grupo do Orfeu, escreveu uma notável peça de teatro, “Quando o mar galgou a terra”, de um enorme dramatismo telúrico, hoje injustamente esquecida.

Outro aspecto típico, em especial em S. Miguel e provavelmente relacionado com a navegação africana, com passagem obrigatória nos Açores na volta da Guiné, é o uso ubíquo da malagueta [2], ou pimenta da terra, com origens nas costas da Guiné e do Benim (a nossa pimenta em grão, preta ou branca, ainda é chamada pelos mais velhos como pimenta do reino, tal como também se diz ainda no Brasil). Uma outra especiaria essencial na cozinha micaelense, e também das outras ilhas, é a açaflor [3], a que o povo da minha ilha também chama açafroa. São os estames do açafrão, típicos da cozinha meridional espanhola e de outras zonas mediterrânicas, de que também temos exemplos certos de colonização. Hoje é uma preciosidade de alto valor, o que justifica o preço das “paellas” valencianas genuínas.

A outra tónica da cozinha açoriana, comum a todas as ilhas, é o uso variado e imaginativo de especiarias. A pimenta preta, o cravinho, a pimenta da Jamaica, a canela, os cominhos, a noz moscada, a erva doce, entram na culinária açoriana a um grau muito maior do que no continente. Talvez isto tenha a ver com a rota das Índias. A passagem pelos Açores era obrigatória, na volta de largo no regresso. Será que os capitães das esquadras trocavam especiarias por produtos frescos das ilhas? Ou faziam contrabando? Os historiadores que o digam.

Também o uso largo de produtos exóticos, que só recentemente os continentais se habituaram a comer: frutas tropicais – não se faz uma boa salada de frutas nos Açores sem goiaba – batata doce (indispensável num cozido), caiota (chuchu), inhame [4].

Não se pode deixar de falar nos enchidos de porco açorianos, que estou convencido que fariam cá grande sucesso se alguém resolvesse importá-los, para lá da escala reduzida das duas lojas de produtos açorianos em Lisboa. Em primeiro lugar, nas minhas predileções, a morcela. A pequena mala de viagem para as minhas curtas deslocações a Ponta Delgada vem sempre com uns quilos a mais, de morcelas e também de bolos lêvedos e de queijo de S. Jorge do produtor, escolhido em prova cuidadosa na minha velha mercearia Alvernaz. As morcelas açorianas, com destaque muito especial para as micaelenses, são uma especialidade sem rival no continente. Com a mesma base de sangue de porco e um refogado, são profusamente temperadas com malagueta e uma variedade de especiarias, nomeadamente canela, erva doce, pimenta preta, cravinho e noz moscada. Servem-se fritas (o ponto certo da fritura é uma arte do bom cozinheiro micaelense), com ovo estrelado e batatas fritas ou só com inhames cozidos. Hoje, nos restaurantes de Ponta Delgada, está na moda a morcela com ananás. Liga bem, mas não é a tradição. O outro enchido notável é a linguiça, que é completamente diferente da continental, desde logo pela sua grossura, como a dos chouriços continentais. É muito rica de carnes e é temperada com muita malagueta, alho, colorau, vinho branco, limão galego [5] e laranja.

Finalmente, a vinha de alhos [1], também usada no continente, embora com composições diferentes. Julgo que está presente nas cozinhas das ilhas, Madeira incluída, com muito maior relevo do que no continente. Daí que eu use tanto marinadas diversas nas minhas próprias receitas.

Todavia, dito tudo isto, é preciso notar que, como em quase todas as cozinhas, há três níveis diferentes na cozinha das ilhas. Em primeiro lugar de qualidade, a cozinha aristocrática ou da burguesia rica. Refira-se, porém, que a aristocracia açoriana é de fidalgos menores, embora frequentemente muito ricos, numa sociedade historicamente muito assimétrica. Ainda hoje, em S. Miguel, ao ler os antigos contratos de foreiros, se pode vislumbrar a divisão da terra em grandes fatias, de costa a costa, distribuídas por meia dúzia de grandes proprietários. Mas isto não correspondia a títulos de nobreza. Até ao liberalismo, em que proliferaram as fornadas de títulos (“Foge, cão, que te fazem barão / Para onde, se me fazem visconde?”), o único titular açoriano, que eu saiba, era o conde de Vila Franca, descendente do segundo capitão do donatário, um Câmara da Madeira, de seu nome Rui, filho de João Gonçalves Zargo. Passaram a usar mais tarde o título de condes e depois marqueses da Ribeira Grande – com o palácio em Lisboa que é hoje a Escola Rainha D. Amélia, na Junqueira – para esquecer a triste história de um conde da Vila Franca, valido de D. João IV, condenado pela Inquisição pelo “nefando crime”. 

As famílias dessa pequena aristocracia rural cultivavam uma cozinha de qualidade, com melhoria dos ingredientes e qualidade de confecção das receitas tradicionais e com um grande sentido de posse em relação ao património culinário familiar. Ao mesmo tempo, sendo pessoas viajadas, importavam muitas receitas da boa cozinha, principalmente francesa ou de hotel. Mas, no dia a dia, não descuravam a cozinha tradicional, em versão rica. 

A segunda cozinha é a burguesa, em que incluo a das famílias de camponeses endinheirados. É esta que hoje mais vulgarmente designamos como a cozinha tradicional açoriana. Abaixo, a cozinha do povo de pé descalço, secularmente de grande pobreza, mas também de grande nobreza, naquilo em que esta estava no homem e não dependia de alvará régio ou de herança de sangue. Era uma cozinha de açordas ou de sopa de couves, com feijão, batata, batata doce, abóbora, inhame e outros produtos da horta. Acrescentar-lhe algum toucinho ou torresmos de porco conservados em banha já era um luxo. As carnes ficavam só para os dias de festa.

Notas:

1. O vinho tinto usado desde há século e meio em muitos pratos é o vinho de cheiro, aqui dito de uva americana ou morangueiro e de venda proibida. Não deve ser substituído por qualquer vinho tinto, mas só por vinho verde tinto, bem carrascão, mais próximo em taninos e acidez. Eu faço de outra forma, mas não a aconselho, porque exige bom conhecimento e a memória do sabor do vinho de cheiro. Compro um vinho tinto bem carrascão possível, por exemplo do Cartaxo, abro-o e aguardo uns bons dias até ele começar a avinagrar muito ligeiramente.

2. A malagueta açoriana não tem equivalente. É um condimento essencial da cozinha micaelense e também, em menor grau, da cozinha das outras ilhas (como dizem depreciativamente os orgulhosos micaelenses, as “ilhas de baixo”). A sua origem é ancestral, do tempo das descobertas, trazida das costas da Guiné e do Benim. Nem sempre era um condimento. Ainda me lembro, em criança, no tempo da “Gente feliz com lágrimas” tão bem retratada pelo meu patrício João de Melo, de os operários e camponeses assalariados terem como almoço um pão recheado só com malagueta, com o picante a puxar a boca para as calorias baratas de uma garrafa de vinho de cheiro. Chili, piripiri e outras, só têm em comum com a malagueta açoriana o picante, nada do seu gosto característico. Se encontrarem cá malaguetas grandes, abram-nas ao meio, retirem as pevidese a polpa branca junto ao pedículo, deixem em bastante sal durante duas semanas no frigorífico, a macerar e moam no mixer. Usem esta massa em muito menor quantidade do que indico para a malagueta açoriana porque é muito mais picante, mesmo sem as pevides. Com parecença distante com a malagueta, mas mesmo assim a menos afastada por parte de todas as “pimentas” que conheço, sugiro a pimenta da Caiena, que se encontra facilmente entre nós, em pó, usada em dose que resulte num picante marcado mas não excessivamente forte. 

3. A açaflor não é o tempero indiano, pó amarelo de moagem das sementes. É o açafrão que aqui se compra muito caro, importado de Espanha, obtido dos estames da flor, em pequenos fios avermelhados. Se quiserem ser rigorosos com a cozinha açoriana, abram a bolsa. Se não, podem usar, mas com moderação porque é um tempero muito forte, o tal açafrão indiano, um pó amarelo obtido das sementes. Mas não se compara!

4. Um acompanhamento típico da cozinha micaelense (com peixe frito, enchidos, torresmos de porco, etc.) é o inhame cozido. É exótico e talvez muitos, sem os meus hábitos de infância, não o apreciem. Mas como já se encontram facilmente nos bons supermercados, experimente, embora o que aqui tenho comprado fique muito longe da delicadeza de sabor do inhame açoriano.

5. O limão galego açoriano, que nunca vi cá, pode ser substituído, em partes iguais, por limão, lima e laranja. 

(Adaptado de J. V. Costa, “O gosto de Bem Comer”, ed. Caminho, 2005)